Livros do Escritor

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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

Se ao menos me tivesses deixado ver a cor da tua alma…

 


Não me lembro de termos discutido por esses dias, não, julgo que não, até andavas calmo, se bem me lembro, então, o que te levou a… Cheguei mais cedo nesse dia, parece que há um fado a ditar uma surpresa sempre que nos antecipamos, é bem verdade, como se desafiássemos, pelo nosso adiantamento, a sequência natural do acontecer, a porta só no trinco, eras tão cioso pela segurança, nunca de esquecias de dar duas voltas, às vezes, já no elevador, voltavas atrás, destrancavas e repetias as duas voltas, sempre em apneia, mas com um esgar vitorioso, eu a reter o elevador, algures entre a preocupação (não sei porquê, mas num canto cá meu, questionava se seria um comportamento inteiramente ajustado) e o orgulho (enchias o peito de ar, como se de um cerimonial se tratasse), às vezes, o vizinho do quarto andar, impaciente pela espera, aos murros à porta do elevador, mas tu não te ficavas Vamos a ter calminha, muita calminha, logo vi que estavas em casa, estranhei pela hora, geralmente, por estes dias, em que o teu horizonte se restringiu a um copo incansavelmente sorvido num balcão esconso, só regressavas ao jantar, e pouco passava das quinze, a casa numa imobilidade de suspense, são aqueles silêncios que aguardam impacientemente pelo seu fim, geralmente na forma de um grito abafado, pousei a carteira na mesinha da entrada, de facto, estranhei o temor que os olhos das coisas me devolviam, não ousei chamar-te, dirigi-me logo para o nosso quarto, a porta estava aberta, de resto, tudo arrumado conforme deixara nessa manhã, antes de sair, a única imagem que retive, ainda hoje me habita, é a de uns pés suspensos, numa palidez indesmentível de que a vida dali partira, há já algum tempo, há qualquer coisa de ridículo nuns pés suspensos, talvez por o seu destino ser fincar a solidez da terra e não a imaterialidade do ar, havia, também, nessa imagem, um pouco da infância na forma de um boneco desarticulado, algures esquecido na sombra de um armário, estes e outros pensamentos sobrepunham-se às emoções, ainda anestesiadas pelo véu do espanto, corri para o telefone de casa, nem me lembrei do telemóvel, o pânico vive longe da modernice, na mesinha da entrada, com a urgência de movimentos, a minha carteira caiu, objectos rolaram pelo soalho, o acelerado galope da minha impaciência a contrastar com a impassibilidade daquela voz, que lançava questões numa cadência exasperante, não me lembro de ter pousado o auscultador, da chegada das urgências, da invasão de minha casa, de quantas vezes me repetirem, também numa cadência exasperante, Sente-se e acalme-se, apenas recordo a passagem dele numa maca, coberto com um lençol, porém, os pés à vista, numa palidez indesmentível de que a vida dali partira, há já algum tempo, enquanto assistia a tudo, de longe, parecia estar sentada no ramo de uma árvore imensa, a contemplar o quintal de uma família alheia, ao mesmo tempo, faziam-me me engolir cilindros coloridos, a goles de água de um copito de plástico branco, que viajava, por mãos alheias, incansavelmente entre a minha boca e a torneira da cozinha, ainda apareceu a polícia, também com mais perguntas, lembro-me de uma voz a sobrepor-se às restantes Desculpem, mas talvez não seja o momento adequado, nesta altura, sentada no ramo de uma árvore imensa, a contemplar o quintal de uma família alheia, sorria para a distância das coisas, uma voz preocupada disse Está a entrar em choque, é melhor levá-la para o hospital, sei que continuei a sorrir, ouvia a melodia das folhas embaladas pela brisa, raras são as que ultrapassam em beleza a harmonia destes sons, a minha casa já não me pertence, é um entra e sai muito para além da insignificância da minha vontade, nisto, alguém se senta a meu lado, no ramo da árvore imensa, Nem te despediste, digo-lhe eu, Fui-me despedindo, um pouco todos os dias… Mas tu na surdez do hoje, respondeu-me ele, Alguém tem de se preocupar em encher o frigorífico, arrependi-me, mas as palavras anteciparam-se-me ao pensar, Não tenho culpa da fábrica se ter mudado para terras distantes, pouso-lhe o indicador nos lábios, Eu sei, eu sei, mas nunca pensei que isso… Parecias, ainda ontem, tão bem-disposto, segura-me a mão, Desculpa-me, mas perdi o meu lugar no mundo, insisto com ele, Anda. Desce comigo, ainda vamos a tempo, sorri-me, Já é tarde. Vai. Desce devagar. Não te esqueças das horas, por causa dos miúdos. Fico aqui à tua espera. Percebo-lhe a convicção, no entanto, com uma voz que o tempo ainda não me silenciara, peço-lhe Antes de ir, deixa-me só pousar, por uns instantes, a cabeça no teu ombro, enquanto ouvimos estes acordes que a brisa embala…

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