Não me lembro de termos discutido por
esses dias, não, julgo que não, até andavas calmo, se bem me lembro, então, o
que te levou a… Cheguei mais cedo nesse dia, parece que há um fado a ditar uma
surpresa sempre que nos antecipamos, é bem verdade, como se desafiássemos, pelo
nosso adiantamento, a sequência natural do acontecer, a porta só no trinco,
eras tão cioso pela segurança, nunca de esquecias de dar duas voltas, às vezes,
já no elevador, voltavas atrás, destrancavas e repetias as duas voltas, sempre em
apneia, mas com um esgar vitorioso, eu a reter o elevador, algures entre a
preocupação (não sei porquê, mas num canto cá meu, questionava se seria um
comportamento inteiramente ajustado) e o orgulho (enchias o peito de ar, como
se de um cerimonial se tratasse), às vezes, o vizinho do quarto andar,
impaciente pela espera, aos murros à porta do elevador, mas tu não te ficavas Vamos a ter calminha, muita calminha,
logo vi que estavas em casa, estranhei pela hora, geralmente, por estes dias,
em que o teu horizonte se restringiu a um copo incansavelmente sorvido num
balcão esconso, só regressavas ao jantar, e pouco passava das quinze, a casa
numa imobilidade de suspense, são aqueles silêncios que aguardam
impacientemente pelo seu fim, geralmente na forma de um grito abafado, pousei a
carteira na mesinha da entrada, de facto, estranhei o temor que os olhos das
coisas me devolviam, não ousei chamar-te, dirigi-me logo para o nosso quarto, a
porta estava aberta, de resto, tudo arrumado conforme deixara nessa manhã, antes
de sair, a única imagem que retive, ainda hoje me habita, é a de uns pés
suspensos, numa palidez indesmentível de que a vida dali partira, há já algum
tempo, há qualquer coisa de ridículo nuns pés suspensos, talvez por o seu
destino ser fincar a solidez da terra e não a imaterialidade do ar, havia,
também, nessa imagem, um pouco da infância na forma de um boneco desarticulado,
algures esquecido na sombra de um armário, estes e outros pensamentos
sobrepunham-se às emoções, ainda anestesiadas pelo véu do espanto, corri para o
telefone de casa, nem me lembrei do telemóvel, o pânico vive longe da
modernice, na mesinha da entrada, com a urgência de movimentos, a minha
carteira caiu, objectos rolaram pelo soalho, o acelerado galope da minha
impaciência a contrastar com a impassibilidade daquela voz, que lançava
questões numa cadência exasperante, não me lembro de ter pousado o auscultador,
da chegada das urgências, da invasão de minha casa, de quantas vezes me
repetirem, também numa cadência exasperante, Sente-se e acalme-se, apenas recordo a passagem dele numa maca,
coberto com um lençol, porém, os pés à vista, numa palidez indesmentível de que
a vida dali partira, há já algum tempo, enquanto assistia a tudo, de longe,
parecia estar sentada no ramo de uma árvore imensa, a contemplar o quintal de
uma família alheia, ao mesmo tempo, faziam-me me engolir cilindros coloridos, a
goles de água de um copito de plástico branco, que viajava, por mãos alheias,
incansavelmente entre a minha boca e a torneira da cozinha, ainda apareceu a
polícia, também com mais perguntas, lembro-me de uma voz a sobrepor-se às
restantes Desculpem, mas talvez não seja
o momento adequado, nesta altura, sentada no ramo de uma árvore imensa, a
contemplar o quintal de uma família alheia, sorria para a distância das coisas,
uma voz preocupada disse Está a entrar em
choque, é melhor levá-la para o hospital, sei que continuei a sorrir, ouvia
a melodia das folhas embaladas pela brisa, raras são as que ultrapassam em
beleza a harmonia destes sons, a minha casa já não me pertence, é um entra e
sai muito para além da insignificância da minha vontade, nisto, alguém se senta
a meu lado, no ramo da árvore imensa, Nem
te despediste, digo-lhe eu, Fui-me
despedindo, um pouco todos os dias… Mas tu na surdez do hoje, respondeu-me
ele, Alguém tem de se preocupar em encher
o frigorífico, arrependi-me, mas as palavras anteciparam-se-me ao pensar, Não tenho culpa da fábrica se ter mudado
para terras distantes, pouso-lhe o indicador nos lábios, Eu sei, eu sei, mas nunca pensei que isso…
Parecias, ainda ontem, tão bem-disposto, segura-me a mão, Desculpa-me, mas perdi o meu lugar no mundo,
insisto com ele, Anda. Desce comigo,
ainda vamos a tempo, sorri-me, Já é
tarde. Vai. Desce devagar. Não te esqueças das horas, por causa dos miúdos.
Fico aqui à tua espera. Percebo-lhe a convicção, no entanto, com uma voz
que o tempo ainda não me silenciara, peço-lhe Antes de ir, deixa-me só pousar, por uns instantes, a cabeça no teu
ombro, enquanto ouvimos estes acordes que a brisa embala…
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