Tudo começa no imperceptível que não
iluminamos, aquelas coisas que só emergem com a luz do presente feito passado,
como aquele dia em particular, ela sempre na pressa (de quê?), emprego,
compras, filhos, uma conta esquecida por pagar, a ordem de corte já no segundo
aviso, tinha chegado a casa, acho que se lembra deste pormenor, pois voltou a
sair na pressa (de quê?), e, já dentro do carro, a chave a demorar-se, ainda se
baixou, a ignição sob o alcance do olhar, mas não do gesto, o tempo a esfumar-se,
os nervos em crescendo, o olhar cansado de desenhar o gesto, mas a chave a
acompanhar as ondas hesitantes da mão, por fim, capitula, sai do carro,
regressa a casa, telefona ao marido, não lhe conta o sucedido, apenas lhe
relembra uma pressa (de quê) que não pôde cumprir, foi para o quarto, baixou o
estore, antes abriu o pequeno armário que destinou aos medicamentos na casa de
banho, havia-os para todos os destinos, optou, desta vez, pelo do sono, e assim
foi, até o marido lhe relembrar que já passava da hora do jantar, se não se
levantasse, nem os filhos via, aguardavam-na, no quarto deles, para se
despedirem, não se lembra porquê, mas ocultou aquelas ondas da mão que o olhar
alcançava, mas sempre para além do gesto desejado, uns tempos depois (dias?
Semanas? Um mês? Dois meses?), é curioso, a partir de certa altura, os dias
apenas nos ensinam a perder o tempo, com o marido ao lado, de novo, a mão em
ondas de hesitação face à porta de casa, ele com os sacos de compras, a
pedir-lhe rapidez, o gesto desenhado na sua mente, mas a mão a contrariá-lo
numa sucessão de vagas, foi ele, após pousar os sacos, que acabou por abrir a
porta, não atribuiu especial relevo àquelas ondas da mão que o olhar alcançava,
mas sempre para além do gesto desejado, atribuiu ao cansaço do dia-a-dia, à
pressa (de quê?), emprego, compras, filhos, uma conta esquecida por pagar, a
ordem de corte já no segundo aviso, contudo, desta vez, ela já demorava o olhar
pelas falanges, olhava os dedos na delicadeza musical de um pianista, foi o
marido, desta feita, quem foi ao pequeno armário destinado aos medicamentos na
casa de banho, havia-os para todos os destinos, optou, desta vez, também pelo
do sono, regressou munido de um copo com água e do respectivo comprimido,
disse-lhe que seria melhor repousar, que andava sob um grande stresse (de quê),
ela aquiesceu, porém, a aurora de uma
certeza iluminava-se na madrugada interior das suas dúvidas, uma vez mais,
fechou o estore do quarto apesar da luz lá fora ainda convidar à vida, só foi
ao médico quando, no emprego, perante a obscenidade dos olhares dos colegas,
foi-lhe impossível disfarçar a sucessão das vagas, percebeu ali, face à
impassibilidade daquelas expressões, um diagnóstico tornado veredicto, o
futuro, dessa vez, pertenceu-lhes, foi o médico que o confirmou, após semanas
em que o horizonte se restringiu a batas brancas e lâmpadas fluorescentes, nem
procurou encetar uma luta cansada de tanto se conhecer o final, não, nunca
procurou heroísmos ingénuos, pelo contrário, nessa noite, no quarto, perante o
mutismo condoído do marido, que há muito
se sentara a olhar os sapatos, baixou-se, deu-lhe as mãos, e apenas prometeu
uma coisa, por segundos, o rosto dele percorrido por passos de luz, é curioso, a partir de certa altura, os dias
apenas nos ensinam a perder o tempo, mas, apesar disso, ela cumpriu esta
promessa: sempre que luz lá fora ainda convidar à vida, nunca mais se fechou um
estore naquela casa.
Livros do Escritor
sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023
Queria um pouco do ontem no hoje
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