Livros do Escritor

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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Queria um pouco do ontem no hoje


 

Tudo começa no imperceptível que não iluminamos, aquelas coisas que só emergem com a luz do presente feito passado, como aquele dia em particular, ela sempre na pressa (de quê?), emprego, compras, filhos, uma conta esquecida por pagar, a ordem de corte já no segundo aviso, tinha chegado a casa, acho que se lembra deste pormenor, pois voltou a sair na pressa (de quê?), e, já dentro do carro, a chave a demorar-se, ainda se baixou, a ignição sob o alcance do olhar, mas não do gesto, o tempo a esfumar-se, os nervos em crescendo, o olhar cansado de desenhar o gesto, mas a chave a acompanhar as ondas hesitantes da mão, por fim, capitula, sai do carro, regressa a casa, telefona ao marido, não lhe conta o sucedido, apenas lhe relembra uma pressa (de quê) que não pôde cumprir, foi para o quarto, baixou o estore, antes abriu o pequeno armário que destinou aos medicamentos na casa de banho, havia-os para todos os destinos, optou, desta vez, pelo do sono, e assim foi, até o marido lhe relembrar que já passava da hora do jantar, se não se levantasse, nem os filhos via, aguardavam-na, no quarto deles, para se despedirem, não se lembra porquê, mas ocultou aquelas ondas da mão que o olhar alcançava, mas sempre para além do gesto desejado, uns tempos depois (dias? Semanas? Um mês? Dois meses?), é curioso, a partir de certa altura, os dias apenas nos ensinam a perder o tempo, com o marido ao lado, de novo, a mão em ondas de hesitação face à porta de casa, ele com os sacos de compras, a pedir-lhe rapidez, o gesto desenhado na sua mente, mas a mão a contrariá-lo numa sucessão de vagas, foi ele, após pousar os sacos, que acabou por abrir a porta, não atribuiu especial relevo àquelas ondas da mão que o olhar alcançava, mas sempre para além do gesto desejado, atribuiu ao cansaço do dia-a-dia, à pressa (de quê?), emprego, compras, filhos, uma conta esquecida por pagar, a ordem de corte já no segundo aviso, contudo, desta vez, ela já demorava o olhar pelas falanges, olhava os dedos na delicadeza musical de um pianista, foi o marido, desta feita, quem foi ao pequeno armário destinado aos medicamentos na casa de banho, havia-os para todos os destinos, optou, desta vez, também pelo do sono, regressou munido de um copo com água e do respectivo comprimido, disse-lhe que seria melhor repousar, que andava sob um grande stresse (de quê), ela aquiesceu, porém,  a aurora de uma certeza iluminava-se na madrugada interior das suas dúvidas, uma vez mais, fechou o estore do quarto apesar da luz lá fora ainda convidar à vida, só foi ao médico quando, no emprego, perante a obscenidade dos olhares dos colegas, foi-lhe impossível disfarçar a sucessão das vagas, percebeu ali, face à impassibilidade daquelas expressões, um diagnóstico tornado veredicto, o futuro, dessa vez, pertenceu-lhes, foi o médico que o confirmou, após semanas em que o horizonte se restringiu a batas brancas e lâmpadas fluorescentes, nem procurou encetar uma luta cansada de tanto se conhecer o final, não, nunca procurou heroísmos ingénuos, pelo contrário, nessa noite, no quarto, perante o mutismo  condoído do marido, que há muito se sentara a olhar os sapatos, baixou-se, deu-lhe as mãos, e apenas prometeu uma coisa, por segundos, o rosto dele percorrido por passos de luz,  é curioso, a partir de certa altura, os dias apenas nos ensinam a perder o tempo, mas, apesar disso, ela cumpriu esta promessa: sempre que luz lá fora ainda convidar à vida, nunca mais se fechou um estore naquela casa.

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