Algo me despertou, como se uma
urgência, de qualquer coisa, nunca chegada, percebo-lhe a ausência, não sei se
do vazio devolvido pelos lençóis, se pela moldura iluminada da porta da casa de
banho em frente, procuro as horas nos números vermelhos tremeluzentes da
mesa-de-cabeceira, aproxima-se o jantar, ela regressa, aprecio-lhe a silhueta
enquanto os seus dedos tacteiam pelo interruptor, anicha-se, de novo, a meu
lado, Tens de ir, não é? Não esperava
já a questão, pensei que, antes, falasse de qualquer outra coisa, não sei bem o
quê, mas a questão persiste, suspensa, entre nós, como se, ao mínimo movimento
falso, desabasse, não há qualquer fuga, ela bem o sabia, opto pela temeridade, Sim, não é nada de novo, pois não? Já viste
as horas? Percebo-lhe a surpresa pela entoação assertiva, ou talvez por não
ter uma resposta pronta para tal, a cada descida das pálpebras uma
possibilidade de resposta, por fim, E
isto vai durar até quando? Quantas vidas se repetem numa vida, de novo,
esta cena extenuada, já lhe conhecia a sequência frásica, as expressões que as
acompanhavam, contudo, hoje havia qualquer coisa de diferente, sem dúvida, ela
parecia estar numa amurada, as frases advinham-lhe com a distância, cheirava-me
a maresia, eu no cais, estarrecido pelas emoções que se agigantam em mim,
enquanto as imagens que amo se subtraem diante do meu olhar, só me lembro de Chega! Também quero viver contigo na
vertical, assim que se calou, juro, pareceu-me ouvir o canto rouco de um
barco, as asas de uma gaivota, o trepar de uma onda pelo cais, ela já se
vestia, eu ainda abraçava o calor dos lençóis, embora diminuísse num galope
desenfreado, avançou até à única cadeira da divisão, pegou na minha roupa e
depositou-ma em cima da colcha, não era de descidas abruptas, sempre lhe
apreciei esta característica, mas também sabia quando me encurralavam,
levantei-me, nestes momentos, a intimidade torna-se quase obscena, e a roupa
resiste a cobrir-nos como se um grito pelas palavras que silenciamos, uma frase
escapa-se-me Nunca te menti, ela E depois? Cansei-me… Sabes, nada é mais
doloroso que a espera, pelo menos, concedi-lhe parte da razão, mas nada
mais podia fazer, àquela hora, como nas restantes que dura a vida de um dia,
sabia-a em casa, de olhar faminto na porta, também ela esperava, embora de uma
outra forma, ou formas, para ser ainda mais preciso, agora, na sua mobilidade,
chocava com as coisas, deixava-as cair, praguejava em surdina, nunca gostou de
falar alto, ainda menos de palavrões, sempre lhe apreciei estas
características, desde aquela coisa na cabeça, foi num feriado, a seguir ao
almoço, queixava-se, há umas semanas, de dores de cabeça, lá se ia safando a analgésicos,
pensei que fosse coisa de mulheres, da altura do mês, não liguei, sentou-se no
sofá, eu a insistir com o café, ela Deixa-me
só estar aqui um bocadinho de olhos fechados, que já vamos, deixei-a estar,
de repente, aquele baque que ainda hoje ecoa para me arrefecer, valeu-me ter o
telefone à mão, seguiu-se o hospital, e, até hoje, a fisioterapia, mais de meio
ano nisto, os médicos asseguram que, se tiver vontade e disciplina, voltará a
ser independente, vontade e disciplina, eu acrescentaria sorte, ou talvez outra
coisa, uma coisa só minha que procuro quando ela dorme, está na primeira gaveta
da minha mesa-de-cabeceira, deu-me a minha avó paterna, uma pagela com um Pai Nosso, e a imagem de Jesus Cristo,
guardei-a até hoje, não sei porquê, mas sinto-me melhor depois de lhe pedir que
ela deixe a cadeira de rodas, nessas alturas, acredito mesmo que ela vá deixar,
custa-me tanto vê-la assim, claro que procuro disfarçar, no entanto, é tão
difícil mentir com os olhos, ainda hoje, coitada, não se ajeita com aquilo, a
nossa casa também não é grande, não tem sido nada fácil, para nenhum de nós,
claro que, por vezes, talvez demasiadas, tem havido discussões, foi aí que
comecei a sair mais cedo e a entrar cada vez mais tarde, porém, atenção, nunca
passei uma noite fora de casa, conheci a Dora há uns meses, o marido emigrou
para lhes preparar uma vida melhor, contudo, há seis meses que não dá notícias,
ela também não quis saber do paradeiro, nem tão pouco o chorou, pelo contrário,
optou por arregaçar as mangas e foi ajudar os pais na padaria, os pais já
sabiam do estado da minha mulher, até se ofereceram para lhe ir levar o pão de
todos os dias, assim que eu saísse, são muito boas pessoas, por isso continuo
sem compreender as exigências dela (como se pode ter cansado de esperar?),
tenho de ir, ela mal consegue chegar ao fogão, bem tenta, que eu já vi, um dia
ainda há um acidente sério lá em casa, tenho de ir, antes de abrir a porta,
digo-lhe Desculpa, mas há uma coisa bem
pior que a espera… É quando já ninguém nos vem abrir uma porta, queria
dizer outra coisa, mas a frase saiu-me assim, não sei porquê, fechei a porta e
saí, quando entrei em casa, a cadeira, como sempre àquela hora, chocava
repetidamente com o fogão, no esforço de cozer o arroz, assim que percebeu a minha
chegada, olhou-me, corro em seu auxílio, após o arroz, o jantar, a louça
arrumada, vejo o saco do pão sobre a mesa, e, juro, por breves instantes,
brevíssimos mesmo, pareceu-me ver a minha pagela depositada a seu lado…
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