O que leva aquela mulher a sair de
casa a estas horas? Lá vai ela, um saco de plástico na mão direita, um casaco
vestido na pressa de acautelar frios e ventos da noite, na sala da sua casa,
uma luz apaga-se enquanto o estore sobe, uma silhueta reflexiva segue-lhe os
passos, talvez mais próxima da apreensão, atravessa a rua, vira à esquerda,
desce uma escadas, e dilui-se num horizonte sem luar… Ao mesmo tempo que ela
deixava a entrada do prédio, um comboio desacelerava à vista de uma estação, na
segunda carruagem, um sujeito levanta-se num esforço de equilíbrios, também de
casaco, embora, pelos visíveis passos do tempo, apenas um sorriso tímido para
aquelas noites demasiado lentas, caminha, agora, passos do possível, sempre que
pode, uma mão estendida numa súplica muda por um apoio, os escassos passageiros
já com a distância, na pressa de um regressar por se saberem talvez esperados,
ele sempre com o possível de si, a deixar a estação, a alcançar o passeio, de
novo a contorcer-se, há dores que sempre nos pertenceram, mas obstina-se
passeio fora, até que se imobiliza ao perceber que alguém caminha, àquela hora,
na sua direcção, quem sabe ainda perdure numa certa memória, por vezes, o
singular é o suficiente, há quem lhe chame o mundo, ela pára à distância de um
olhar seguro, observa-o com esmero, e sempre desagua na derrota da ilusão,
estende-lhe o saco, o gesto suplicante de há pouco cai, no seu lugar a
sofreguidão, abre o saco, e vai-se sentar a comer naquele banco próximo, ela
segue-o, mas chegada ao banco permanece de pé, mãos nos bolsos (Seria do frio
da hora? Da escassez de verbo? Por um pudor que tolhe gestos e silencia os
lábios?), ele na distância de lisuras e de etiquetas, em cada gesto apenas
sobrevivência, (Em que momento nos
perdemos?) pensava ela, enquanto assiste àquele degradante assomo de
sobrevivência, horas antes, de certeza, ele caminhava em direcção contrária,
num qualquer vão de escada, ou numa esquina insular dos preceitos urbanos, ou
mesmo atrás da sebe de um jardim, sim, em todos os jardins há sombras onde não
ecoam risos de brincadeiras e acenos ao futuro, terá estado algures por aí, a
beber o esquecimento de si (Em que
momento se quis esquecer de si?), ela
não sabe precisar, porque tudo é sempre demasiado rápido, e há sempre aquelas
coisas em que insistimos na cegueira, a casa a despir-se, a despir-se,
primeiro, mais espaços nos tampos das camilhas, a seguir nas prateleiras, o
faqueiro de casamento oferecido pela sogra (ainda se recorda da frase que o
acompanhou: Toma bem conta disto. Já vem
da minha avó. Quero que um dia, o passes à minha neta) também uma ausência,
a contínua repetição da palavra dinheiro, sempre numa cadência obstinada, o pai
um dia a saber dele na faculdade, a garantirem-lhe que não o viam desde o
início do semestre, ainda repetiu o nome, embora num tom mais baixo, como se
receasse o veredicto, de novo, a confirmação: Sim, este semestre ainda não o vimos por cá. Mudou de curso? Sobem
ombros e enterram-se mãos nos bolsos, enquanto o olhar procura em desespero por
uma saída, à noite apresentaram-se-lhe os factos, mas ele já não se lembrava,
afinal, há muito que batalhava pelo esquecimento, refugiou-se na contínua
repetição da palavra dinheiro, sempre numa cadência obstinada, como se náufrago
de embarcação desconhecida, certa tarde, assim que entraram, perceberam que o
serão não seria televisivo, mudou-se a fechadura, o pai inflexível, ela ainda
renitente, apesar das mãos nos bolsos, peito e cabeça travaram uma cansada
batalha, sim, por ali nunca se falou de vitórias, assim que ele percebeu a
impossibilidade definitiva do regresso, houve gritos, a porta abanou sob
pontapés, murros, ela fechada na casa de banho, de luz apagada, a encadear
palavras para também se esquecer de si, há quem lhe chame orar, por fim, um
vizinho exasperado com o barulho apela às autoridades, desde então, deixou de
haver ausências da casa, vizinhos exasperados, apenas um saco de plástico parte
todas as noites, um estore sobe, uma silhueta reflexiva segue-lhe os passos,
talvez mais próxima da apreensão, e, de vez em quando, numa divisão da casa, de
luz apagada, alguém encadeia palavras para também se esquecer de si, há quem
lhe chame orar, e uma questão suplicante brota dos seus lábios Em que momento nos perdemos?
Livros do Escritor
segunda-feira, 16 de maio de 2022
Um amanhecer nunca se repete
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