Acho que nunca me reconheci num espelho, pensava ele, àquela hora, no sempre arrastado
regresso, sim, regressar é um acto de lentidão, lá ia, passeio fora, na dúvida
das idades, talvez porque a idade tem a cor do pensar e nunca a do rosto, ainda
há pouco, no quiosque, a tratarem-no por O
que vai ser, caro senhor? E ele a estranhar, afinal, naquele momento, com
os seus dez anos, perdia-se com a capa, de cores quentes, de uma revista agora
em reedição, onde não havia espaço para a palavra limite e os conceitos éticos
elementares exibiam-se ao peito, por ali, apenas se velava o rosto, mas ele
também nunca se reconheceu num espelho, à hora do almoço, a insistência
demasiada do telefone, pelo toque adivinha-se o emissor, a mulher, a natação da
filha, a mochila já à entrada, ela, a essa hora, uma reunião na escola da outra
filha, a repetição com a mochila, logo a resposta, Sim, sim, não te preocupes, não me esqueço, mecânica, artificial,
no fundo, a ocultar, sempre, um outro sentido, o verdadeiro, Cala-te. Não me chateies com isso. Não quero
saber. Já me perguntaste que idade tenho neste momento? Desacelerou o
passo, como se não soubesse para onde ir, ou talvez se soubesse próximo da
paragem, àquela hora já cheia, imobiliza-se a uns metros de segurança daquela
anarquia de odores entardecidos, amarguras somadas, desalentos olhados, derrotas
silenciadas, mãos nos bolsos, o seu olhar levanta-se, num repente de ventania,
e leva-o ao passeio do outro lado, por aí, caminhava ela, com um fato próprio
de balcão de sucursal bancária, carteira debaixo do braço, o rosto numa
expressão imperscrutável, algures entre o cansaço e a ementa do jantar,
propício ao momento da tarde, ele a procurar-lhe linhas de felicidade, ou o
inverso, na paisagem da expressão, a frustrar-se pela opacidade, ela ainda não
o vira, mantinha-se balizada entre a fadiga e um possível horizonte de fogão,
ou talvez uma outra coisa, o desespero não gritado de uma gravidez tardia, é
possível, à distância tudo é possível, a ventania repentina agora do seu lado,
a encontrar-lhe o olhar, no passeio oposto, a compreender, pelo embaraço não
pronunciado, que ele já se demorava por ali há um pouco, ela a refrear a
passada, ao mesmo tempo que entreabre os lábios (Por surpresa? O efémero início
de uma saudação?), a opacidade do seu rosto a desvelar-se, e, no seu lugar,
apenas exclamação, nenhum se moveu, como se padecessem de uma imobilidade
súbita, a viajar apenas o olhar e o pensamento, sim, por aqueles instantes,
apenas se pronunciou o verbo do olhar, e tanto se falou, ele nem reparou que
ela ajeitou quatro vezes a carteira, que o espanto inicial deu lugar a um
sorriso reconfortado, que o pé direito ainda se levantou na direcção dele, que…
Ela, por seu lado, aquém do facto de ele ter silenciado a insistência do
telemóvel, de se obstinar nela e ignorar a chegada do autocarro, do esforço de
juntar palavras, como pedras sobre a água, para chegar ao outro lado, mas o
mundo a chamá-los, naquela sua fria e peculiar inclemência, talvez não o mundo,
mas o tempo, porque eles imobilizaram-se num outro tempo, sim, não tiveram que
perguntar por idades, enquanto se olharam sabiam que idade tinham, foi sempre a
mesma, por fim, cederam, ele recuou um passo enquanto esbatia o sorriso, ela
avançou um para a sua esquerda, o rosto fechava-se de novo, enquanto se
afastavam, o mundo devolvia-os à sua circunstância num desamparo cruel, sem
concessões, ainda perdurou, por mais um pouco, a encantada doçura de uma outra
idade, em que o tempo ainda um desconhecido, e onde o gesto nascia antes do
verbo.
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