Há muito tempo, um homem foi presenteado com uma porção de território no norte de uma península. Foi um reconhecimento pelo seu labor. Desse modo, decidiu ir para lá viver. Casou e teve um filho. Quem o conheceu, dizia que era um homem de princípios. O território que lhe foi oferecido, no norte da península, estava apartado a Oeste por mar, a Norte e a Este por um conjunto de reinos deveras hostis, e a Sul por gente de terras distantes que rezava ao mesmo Deus, mas não ao mesmo profeta. Após a sua morte, mãe e filho desentenderam-se. A mãe quis pacificar-se com um dos hostis reinos de Este, o filho não, e, na sequência desta divergência de opiniões, o filho resolve apelar à força. O resultado, claro está, é um dos fados mais antigos do homem, e de escarlate se pintou a terra, a Este, e, depois, a Sul. E a porção de território, no norte da península, herdada por seu pai, crescia sob a vertigem daquele fado de tão pretérita melodia. A este filho, que tanta terra adicionou à original geografia paterna, outros se seguiram. Filhos esses que rumaram a Sul, um Deus carece de rosto, e, num mesmo espaço, não se pode representá-lo com uma dupla face, assim, a gente de terras distantes recuou para as margens mais a Sul, cada vez mais, até ficar confinada ao espaço de uma cidade. A Norte e a Este persistiram desentendimentos com os reinos hostis. Sobretudo com um que tinha como símbolo um castelo. Também era o que detinha mais território. O tempo passou. Houve filhos, netos, que se destacaram. Um era poeta, agricultor, mandou plantar pinhais, para ganhar terra às águas, e erigir um centro de estudos, para ganhar verbo à aridez do desconhecer. As gentes que viviam neste território organizaram-se, sim, cada um tinha uma tarefa a cumprir, uns defendiam-na, outros rezavam, e, como é natural, a maioria tinha de arrancar à terra o pão para a boca. Sempre assim foi, creio que sempre assim será. Como é frequente com os vizinhos, há alturas de tormenta e outras de brisa. Assim sucedia com os reinos hostis a Norte e a Este. Sobretudo com aquele que tinha como símbolo um castelo. E nas alturas em que soprava uma inquietante brisa, para quê transformá-la numa borrasca? Com tratados e casamentos melodiavam-se brisas. A Oeste um mar que devolvia a pequenez do olhar. A Sul sucedia o mesmo. Houve uma manhã que não nasceu, porque continuou de um sonho, e o mar soube-se pequeno para o seu pensar. Derrubaram-se árvores e flutuaram ambições. Gente deixou o outrora território oferecido, no norte da península, para caminhar sobre águas rumo a uma qualquer leveza de pensamento. Redesenharam-se mapas, fundaram-se cidades, aguçaram-se os sentidos com novos cheiros, cores, gostos, paisagens, matérias, gentes. Pelas ambições flutuantes, navegou a organização daquela gente: uns iam para defender, outros para ensinar a rezar, e, por fim, as mãos que procuravam moldar sonhos e ambições – primeiro, dos outros, só muito depois, os seus – se é que tal chegava a suceder. O tempo passou. As terras longínquas floresceram. A outrora porção de território, no norte da península, enriqueceu. Os reinos hostis de Este, sobretudo aquele que tinha como símbolo um castelo, ambicionavam essa riqueza. De novo, ventos de borrasca sopraram desses lados. E de outros. Tanta estrada para tão curtas pernas. Esta certeza a firmar-se no coração destas gentes. Construíram-se, por cá, palácios e castelos, em homenagem a ambições cumpridas. Apareceu uma nova ocupação: troca e venda de artigos. Quem se dedicou a esta nova actividade, parece que preencheu muito bem os bolsos. O tempo passou. Os que tinham como missão ensinar a rezar, radicalizaram os seus intentos. Aceleraram a urgência da fé através da vivência das chamas. Um dos exemplos de quando o inferno se apoderou da terra dos homens. Certo dia, a terra abriu-se e o mar levantou-se. E o ontem foi esquecido. Mas um homem providencial reergueu espíritos cambaleantes, sararam-se feridas, e apresentou-se o caminho do dia que estava por vir. Também mandou ensinar a rezar para bem longe. O tempo passou. E as distâncias encurtaram-se, à medida que a velocidade se familiarizava com a vertigem: tanto por terra, como por mar. As estradas aumentavam e as pernas sempre curtas. Das longínquas cidades fundadas, houve uma, mais ou menos por esta altura, que quis a sua bandeira. Que fazer? Tudo mudava e as coisas eram outras. Há já uns tempos, num lugar mais a Norte, proclamaram-se três ideais, e terra e gentes governaram-se de outra forma. Talvez a esta aumentada porção de território, outrora apenas no Norte da península, chegasse tal novidade. E chegou. Demorou o seu tempo, é certo. Afinal, tudo tem o seu tempo. Cumpriu-se aquele antigo fado. É compreensível, nem todos vivem à mesma velocidade. Até que solicitaram a um senhor, oriundo de uma povoação no centro do país, que olhasse pelos paupérrimos cofres deste território, que há muito se havia estendido até ao Sul da península. Ele assim o fez. Com os anos, ganhou protagonismo e impôs certos limites. Que, como é natural, não colheram sorrisos a todos. Por exemplo, proibiu o uso do avental, sem ser exclusivamente para donas de casa. E muitos outros. O tempo continuou a passar. O senhor acabou por falecer. Um outro sucedeu-lhe, mas com um perfil distinto. E, quando se apercebeu, tudo, à sua volta, mudara. Gritava-se liberdade, liberdade, o único escarlate provinha de plantas, embora nas cidades longínquas o pretérito fado se cumprisse. Sempre as diminutas pernas. E o tempo continuou a passar. Os aventais regressaram. Os limites diluíram-se do olhar destas gentes. E um anunciado naufrágio cumpriu-se. Gente que combateu reinos hostis, navegou ambições, fundou cidades longínquas, conquistou terra ao mar, reergueu espíritos cambaleantes, jaz, hoje, numa perplexidade muda, enquanto aventais, ora rosas, ora laranjas, ou de qualquer cor próxima, lhes sentencia os dias por nascer. E o tempo parou!
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