Hoje ela saiu inquieta de casa. Qual a fonte desta inquietude? O que lhe terá provocado aquele andar pensante, a mão irmanada ao peito, o olhar raso? Cumprimenta os conhecidos, à medida que os vê, rua abaixo, com uma expressão elucidativa de aquém-verbo. Ao contrário de dias recentes, não pára nas sombras para lhes saborear a frescura, observar os passeantes, e olhar o céu. Como gostava daquela pureza azul! As alturas, e ela cada vez mais próxima da terra. Sabia-o. Hoje fazia anos que lhe partira o marido. Daí este desregulado sentir que lhe emigrou a razão para longe de si. Quantos anos de casamento? Os suficientes para se fugir à aritmética, e para saberem a vida. Desde então, uma existência pintada de noite. Não se importa. Se bem que… Sim, talvez por isso, aquela lassidão que a domina naquele olhar vertical em busca de um azul pontuado pela brancura sonhada das viajantes celestes. E ela, um desamparado ser da terra, coberta de noite, a sentir distância. O tempo distancia-nos do mundo. É verdade, começa por nos subtrair rostos, de seguida, demora-nos o movimento, por fim, lembra o passado, mas elimina-nos o futuro. Assim, o mundo torna-se a distância. E se ela não pode chegar à distância horizontal, a dos homens, perde-se nas alturas. Talvez aí seja a casa das virtudes. Prossegue a sua marcha arrastada. Talvez caminhe ao sabor das lembranças. Como ele ultimamente estava magro, a idade já lhe mudara o algarismo da esquerda, mas este sentir sabe a ontem, já não se levantava, amarelecido, a cor da doença, no fundo, é quando a vida começa a fazer a mala, pairava um adeus naquele quarto, até que, uma manhã, já não houve aquele olhar falante, sim, para ela bastava, sem poder mais, extenuado da guerra da vida, por fim, vencido, ele apenas lhe queria dizer, nem que fosse com o olhar que, sim, que… Sem problema, ela compreendia, e retribuía-lhe no singular de um beijo na face. É curioso, com a idade reaprendemos as subtilezas do pudor. Por outras palavras: aprendemos a harmonia do sentir: que requer lentidão, paciência, e simplicidade. Uma vida para isto. Ao menos que o ocaso da vida nos ilumine as evidências… Ela, por fim, desagua no largo central. Os habituais sentados nos bancos, com a vista ávida de novidades (nunca chegadas), a comentar parangonas de crises cansadas de tanto serem, transeuntes a cirandar num imperativo incógnito, alguns de jornal debaixo do braço, como se de um sinal de actualidade se tratasse, pombos pululam mais no chão do que nos ares, numa coabitação pacífica, assente em migalhas e símbolos de epifania. De onde está, avista o edifício de pedra com uma cruz ao alto, onde, num certo dia, entrara vestida de viajante celeste, pela mão do pai, para sair de mão dada com o destino. O destino na forma de um homem que a olhou sempre da mesma maneira. Ela regressa ao templo. Agora só. Lá dentro, dois ou três vultos, curvados, numa súplica de dores muito subterrâneas. Senta-se num banco próximo da porta. Inspira. De certo modo, ali sente uma paz. Talvez pelo silêncio reinante. Talvez pelos quadros em volta, que, na sua maioria, apontam para uma verticalidade que lhe é tão próxima. Nasce em si uma súplica: que se lhe permita beijar, de novo, uma face, e reencontrar um olhar falante, e dizer-lhe, de novo, que sim, num além-verbo, na linguagem do sentir, talvez se ela, agora, olhar para cima, veja uma mão estendida, que aguarda pela sua, a leve em direcção à porta, a noite ficara para trás, ela envolta em alvura, como as viajantes dos céus, deixam o templo, de mão dada, chove-lhes felicidade sob a forma de grãos de vida, nisto, uns lábios aproximam-se, para lhe murmurarem: Eu amo-te.
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