Livros do Escritor

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sábado, 14 de novembro de 2020

Um balouço chora ao vento


 

Hoje chove lá fora. É daqueles dias em que o mundo nos vira as costas. Sem direito a porquês. Como se não tivéssemos importância. E, de facto, não temos. Porque, na realidade, só somos insubstituíveis para nós mesmos. O mundo sempre ali esteve, antes de o olharmos, e estará, quando já não o vermos. No fundo, somos a circunstância de nós mesmos. Nada mais. Agora, olho o mundo pelo quadrado envidraçado de uma qualquer divisão desta casa. Quantas casas cabem numa vida? Talvez um dia as compreenda. A chuva pinta o mundo de um cinzento demasiado cinzento, e eu grato, ali, da janela, a compreender o conceito de lar, a agradecer-lhe, pela janela, pelo calor, por me ensinar a chuva. Lá em baixo, na rua, poucos vultos, numa pressa cautelosa, para não caírem, uma mulher procura harmonizar um saco, demasiado pesado, com o guarda-chuva, a inclinar-se teimosamente com o vento, ela a avançar, num esforço de conquista, com passadas reflectidas, como se obedecessem a um escrutínio criterioso, mas as pernas arqueadas, o saco quase a roçar o chão, hoje aquoso, a carteira que lhe obriga o ombro a subir, tardam a glória deste heróico regresso ao lar. Mas, de onde estou, leio-lhe abnegação no rosto, estes chegam ao destino, não importa a velocidade. A chuva intensifica o seu canto. Talvez se lavem pecados no mundo dos homens. Que horas são? Não sei, perdi o tempo. O mundo, lá fora, escurecido pelas lágrimas das alturas. Aqui e ali, ainda carros. Ouço o telefone algures pela casa. Com o seu toque demasiado insistente, quase imperativo, mas resisto-lhe, nada me demove desta vigília, em mim demasiadas lágrimas, e este canto das alturas ecoa nas minhas raízes. Lá fora, cada vez menos carros, os passeios vazios, nem vestígios de um saco demasiado pesado e de umas pernas arqueadas, talvez um sorriso esconda uma abnegação cansada na chegada ao lar, que se reveste de uma alegria cumprida com o seu regresso, porventura um sentir de sentido perpasse nos corações que a recebem, nos lábios que a beijam, nos braços que a aconchegam, e também ela compreenda lar. Mas há muito que o sabe, daí a passada reflectida: só caminha assim quem conhece a importância do destino. Agora, nem a luz dos carros risca o negrume exterior. De novo, o telefone, insistente, no interior vazio da casa. Permaneço à janela. Convocou-me primeiro. Os candeeiros já iluminados. O meu olhar naquele espaço, lá em baixo, de risos e brincadeiras. A vê-lo assim, a suportar as mágoas dos homens, parece-me que brincadeiras e risos só noutra existência. O balouço num abandono de orfandade. Talvez amanhã, pelo meio da tarde, se cumpra. Gotículas amontoam-se nos cabos vagamente oscilantes. Move-se timidamente, como se retraísse uma tristeza vinda de uma lembrança. Sim, talvez seja isso, certamente, numa longínqua tarde ensolarada, um miúdo, depois de um infindável vai e vem, entre risos, brincadeiras, jogos, lhe tenha confiado um sonho. O balouço continua num oscilar tímido. Acompanho-o com a ternura espontânea do instante. Como se irrompesse do momento e nos sufocasse com um abraço sem amanhã. Sim, é verdade, há quanto tempo viajamos juntos? Uma vez mais, o telefone. Desta vez, não lhe resisto, e corro, casa adentro, à sua procura, talvez o balouço me queira relembrar um sonho depositado no tempo.


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