Hoje chove lá fora. É daqueles dias
em que o mundo nos vira as costas. Sem direito a porquês. Como se não
tivéssemos importância. E, de facto, não temos. Porque, na realidade, só somos
insubstituíveis para nós mesmos. O mundo sempre ali esteve, antes de o
olharmos, e estará, quando já não o vermos. No fundo, somos a circunstância de
nós mesmos. Nada mais. Agora, olho o mundo pelo quadrado envidraçado de uma
qualquer divisão desta casa. Quantas casas cabem numa vida? Talvez um dia as
compreenda. A chuva pinta o mundo de um cinzento demasiado cinzento, e eu
grato, ali, da janela, a compreender o conceito de lar, a agradecer-lhe, pela janela,
pelo calor, por me ensinar a chuva. Lá em baixo, na rua, poucos vultos, numa
pressa cautelosa, para não caírem, uma mulher procura harmonizar um saco,
demasiado pesado, com o guarda-chuva, a inclinar-se teimosamente com o vento,
ela a avançar, num esforço de conquista, com passadas reflectidas, como se
obedecessem a um escrutínio criterioso, mas as pernas arqueadas, o saco quase a
roçar o chão, hoje aquoso, a carteira que lhe obriga o ombro a subir, tardam a
glória deste heróico regresso ao lar. Mas, de onde estou, leio-lhe abnegação no
rosto, estes chegam ao destino, não importa a velocidade. A chuva intensifica o
seu canto. Talvez se lavem pecados no mundo dos homens. Que horas são? Não sei,
perdi o tempo. O mundo, lá fora, escurecido pelas lágrimas das alturas. Aqui e
ali, ainda carros. Ouço o telefone algures pela casa. Com o seu toque demasiado
insistente, quase imperativo, mas resisto-lhe, nada me demove desta vigília, em
mim demasiadas lágrimas, e este canto das alturas ecoa nas minhas raízes. Lá
fora, cada vez menos carros, os passeios vazios, nem vestígios de um saco
demasiado pesado e de umas pernas arqueadas, talvez um sorriso esconda uma
abnegação cansada na chegada ao lar, que se reveste de uma alegria cumprida com
o seu regresso, porventura um sentir de sentido perpasse nos corações que a
recebem, nos lábios que a beijam, nos braços que a aconchegam, e também ela
compreenda lar. Mas há muito que o sabe, daí a passada reflectida: só caminha
assim quem conhece a importância do destino. Agora, nem a luz dos carros risca
o negrume exterior. De novo, o telefone, insistente, no interior vazio da casa.
Permaneço à janela. Convocou-me primeiro. Os candeeiros já iluminados. O meu
olhar naquele espaço, lá em baixo, de risos e brincadeiras. A vê-lo assim, a
suportar as mágoas dos homens, parece-me que brincadeiras e risos só noutra
existência. O balouço num abandono de orfandade. Talvez amanhã, pelo meio da
tarde, se cumpra. Gotículas amontoam-se nos cabos vagamente oscilantes. Move-se
timidamente, como se retraísse uma tristeza vinda de uma lembrança. Sim, talvez
seja isso, certamente, numa longínqua tarde ensolarada, um miúdo, depois de um
infindável vai e vem, entre risos, brincadeiras, jogos, lhe tenha confiado um
sonho. O balouço continua num oscilar tímido. Acompanho-o com a ternura
espontânea do instante. Como se irrompesse do momento e nos sufocasse com um
abraço sem amanhã. Sim, é verdade, há quanto tempo viajamos juntos? Uma vez
mais, o telefone. Desta vez, não lhe resisto, e corro, casa adentro, à sua
procura, talvez o balouço me queira relembrar um sonho depositado no tempo.
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