Entrou em casa, ainda carregada de
dia, o barulho dos sacos de plástico incessante, demasiado pesados para as
forças de hoje, mas o seu conteúdo tão aquém do frigorífico, o filho com os
assuntos da escola, e também a apontar para uma caderneta recém-estreada, à
volta dela, ainda mais audível que os sacos, que o trânsito em ecos oceânicos
no seu interior, a filha, mais velha, na mudez estridente de dedos e teclas,
absorta, sempre, com o telemóvel, a mãe Não
me queres dar uma mãozinha a arrumar as compras? A filha tarda na resposta,
ainda o telemóvel, um abanar de cabeça, o ecrã ilumina-se, ela a sorrir,
polegar e teclas em uníssono, imparáveis, a mãe, de novo, Ouviste o que eu disse? A filha, Sim, vou já! Mas ainda o telemóvel, o filho, por seu lado, a
assegurar o futuro, já três colegas fazem aquela colecção, a mãe anuía, com a
cabeça dentro do frigorífico, a contar mantimentos, a filha longe daquele
horizonte de azulejos, frigorífico, e panelas, por fim, ecoa um Estou a ir! Contudo, o telemóvel, de novo,
iluminado, ela de regresso àquele diminuto horizonte rectangular, polegar já em
riste, o filho persiste na apologia da caderneta, a mãe ainda com os sacos,
ouve-se a campainha, dirige-se para a porta, o filho à sua volta, a assegurar,
com abnegação, um amanhã de novas cadernetas, a filha talvez não ouvisse a
porta, afinal, agora abanava a cabeça, de novo, polegar e teclas, a mãe, à
porta, aguardava o elevador, a porta abre-se e surge-lhe a sogra, agora é ela
em suspiros e cabeça em horizontalidades. A sogra em sorrisos e com uma voz a
recordar-lhe o trânsito. A sogra Espero
não incomodar… A mãe sob o manto da educação, a sogra já dentro de casa,
com aquele, porventura uma impressão, olhar detectivesco, como se buscasse o
indício de uma dona de casa falhada, talvez depois para o filho Bem te avisei! O neto abraçado à avó,
esta em segredos, a mãe a observar esta cumplicidade da outra margem, na
impotência de ecos (sim, de novo, o trânsito, uma noite mal dormida, cada vez
mais secretárias vazias lá no escritório…), de repente, a filha a segurar a
carteira da idosa, solícita, a convidá-la a sentar-se, nem vislumbres de um
rectângulo iluminado, talvez no bolso, votado, por instantes, ao silêncio, sim,
deve estar algures por aí. A mãe acompanha a cena, balizada por secretárias
vazias e por uma solicitude dos seus nunca sentida, a sogra olha-a deste pódio,
compreende o embaraço da nora, os netos a ladeá-la, prontos a ouvi-la, e a
serem ouvidos, claro, a mãe regressa à cozinha, antes: Quer jantar cá? Mais por educação, nem se apercebeu de proferir a
questão, secretárias vazias diante de si, cada vez mais, nem ouve a resposta,
depois das compras arrumadas, de uma sopa a aquecer, regressa à sala, a sogra
já de pé, prestes a sair, findo o diálogo intergeracional, sempre as
similitudes entre amanheceres e entardeceres, os filhos com o rosto em sorriso,
a sogra a olhá-la, apreensiva, antes de sair, Ainda hoje ligo para conversarmos, o elevador, a porta a fechar-se,
o filho interrompe a caderneta graças aos trabalhos escolares, a filha ocupa-se
a pôr a mesa para o jantar, talvez, sim, talvez, um dos bolsos povoados pelo
telemóvel, de novo, a campainha, agora é o pai. Regressa, também, a olhar chão.
Entra em casa com um sorriso de arames. Cumprimentam-se. O filho, após olhar
ambos, decide que as suas investidas, após os deveres, por uma caderneta a
cheirar a amanhã, serão pelo lado materno. A filha de novo no seu mundo, de
porta fechada, o rectângulo agora do computador, mas o telemóvel ao lado, não
vá o polegar enciumar-se, ocupada com a linguagem do seu tempo: uma fala sem
rostos… Após o jantar, pautado pelo desvelar superficial da circunstância de
cada um, o filho deita-se já com a promessa materna da caderneta, a filha
novamente com um ecrã (o rosto destes dias), o pai, sentado, folheia o jornal
oferecido pelo porteiro, e ela, deitada no sofá, com a sua telenovela. Enquanto
acompanha aquelas vidas de outros, distancia-se de si. Ao menos, não ouve sacos
de plástico, nem vê secretárias vazias à sua volta. Por fim, o cansaço. Sente
alguém a tapá-la, com a colcha daquelas ocasiões. Talvez o filho, depois da
caderneta, num abraço lhe relembrasse sentir, talvez a filha se sentasse,
diante dela, para se dar a conhecer um pouco, e talvez, não, isto é certo,
alguém se levantou para tapá-la, e, apesar do cansaço destes dias, que nos
arrasta o olhar pelas calçadas, acaricia-lhe o rosto com um gesto, beija-lhe a
face com um sabor a lar. Ela retribui num sorrir. Sim, por muitas secretárias
vazias à sua volta, sabe que há sempre um sofá e uma colcha de ocasião à sua
espera. E isto é mais que o suficiente. Há quem lhe chame regresso.
Livros do Escritor
domingo, 29 de novembro de 2020
A cada um o seu mundo
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