Livros do Escritor

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sábado, 10 de outubro de 2020

O silêncio contido da alma no adeus ao corpo


 

Acordou numa sala demasiado branca, àquela hora iluminada apenas pela passividade indolente das frestas do estore, que horas seriam? Pelo alaranjado da luz, pensou em despedidas… Mas as auroras também se pintam pela timidez indecisa de uma cor intermédia. E ele deitado, num estar além-tempo, uma voz de si na entoação de um conselho: Não te levantes, não te levantes… De alguma forma, compreendia, sem sentir, o saber das palavras. Não se levantou. Assim permaneceu, naquele estar do desconhecido, apenas com a tepidez familiar da luz. Mas o rosto submerso na sombria alvura da divisão. Se ao menos um pouco de calor em si… Por uns momentos, sim, até à leveza reconfortante de um sonho sem corpo, deteve-se naqueles pregões iluminados de alvorecer. Se porventura um lhe passeasse pelo rosto… Por fim, cedeu a uma lei gravítica que nos impele a um regresso, sistemático, a algures de nós. No fundo, trata-se de uma queda. Sim, um pouco isso. Cedemos a um peso de outra ordem, e abandonamo-nos ao desamparo de uma viagem sem bússola nem mapa. Sim, a queda é o início de um trajecto. E, no regresso, quantas vezes, não trazemos, nos alforges, dores e mágoas adormecidas nos caminhos do mundo? Talvez no seu lugar tenhamos depositado tempo: o único crédito da existência.

 Compreendeu, naquele lugar, que descansar e sobreviver são conceitos distantes. Sim, ali não se respirava fundo, apenas havia tempo para retomar o fôlego. O estrépito matinal afigurou-se-lhe ensurdecedor. Primeiro, carrinhos metálicos que transportavam aquilo que, noutros contextos, se denomina de primeira refeição. Assim que lhe depositaram um tabuleiro, do qual o carácter asséptico se sobrepunha ao do paladar, cresceu nele a distância: como se, de súbito, compreendesse o desespero do viajante que se sabe perdido. Olhou os uniformes, uns brancos outros azuis, que entravam e saíam incessantemente do quarto. Nada. Nenhum olhar de compreensão. Apenas sorrisos mudos na distância da indiferença. E ele a saber-se longe. Alguém o questiona: Então, não vai comer nada? Num mutismo contido, sabia-se aquém de uma resposta. Como se não encontrasse em si uma voz capaz de se dizer. Sim, sem dúvida, ele formulou as frases, mas não encontrou a voz para as proferir. Espontaneamente, esboçou-se-lhe o sorriso estéril de ocasião: o véu do sentir. O sorriso que clama ao mundo: sentei-me em mim, e aqui vou repousar, até que o tempo vos dilua da minha circunstância. Assim permaneceu, até que rostos de há muito o despertaram. Então, como estás? Não tarda nada, estás novinho em folha! Agora, deixara cair qualquer sorriso estéril de ocasião. Não há véus possíveis para os rostos de há muito. Só o mestre tempo nos ensina a contemplar um rosto. E só compreendemos isso quando, demasiado tarde, o gesto prevalece sobre a palavra. Esmagado contra aquele leito artificial, procurou, naqueles que o visitavam, a familiaridade. Não a encontrou. Só se deparou com uma reprimida consternação. Não desistiu, levantou-se de si, e saiu em busca de passado à sua volta. Por fim, emergiu, na desolação do seu eu, de mãos vazias. Chegou à conclusão, como se de um recente náufrago se tratasse, de que familiaridade e contexto são velhos companheiros de viagem. À sua volta, continuou uma chuva cansada e repetida (Quando deres por ti, já estás em casa! Ainda nos vamos rir disto. Tem calma, o que é preciso é que recuperes). Regressado a si, deambulou um pouco, a chuva persistia (Ânimo! Tens de ser forte! Olha que há gente bem pior do que tu!). Olhou-os, agora de uma distância segura. Intuiu que não valia a pena. Não ia defender a sua tese. Apenas se protegeu da chuva sob o velho e usado capote de um aparente cansaço. Ainda ouviu as preocupações, dos rostos familiares, sussurradas corredor fora. Agora sim, inspirou. Olhou o companheiro de infortúnio, adormecido na cama ao lado. Ainda não tinham trocado muitas palavras. Apenas as necessárias para sustentar a cortesia. Afinal, partilhavam um quarto, numa situação limite. Não tivera visitas. Nada mais cinzento: aguardar por sombras, deitado num leito hospitalar, em hora de visita; e orar, num canto invisível de si, para que Deus avance a ordem do mundo. Mas ele dormia num sorriso de rosto. Talvez já se tenha despedido. Talvez já tenha deixado tudo em ordem. Talvez o esperem em alguma estação. Ou tenha aproveitado aquela chuva repentina, e de um leito agora jangada navegue, de alforges vazios, rumo a um lugar de gestos lentos e de palavras alaranjadas.

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