Acordou numa sala demasiado branca,
àquela hora iluminada apenas pela passividade indolente das frestas do estore,
que horas seriam? Pelo alaranjado da luz, pensou em despedidas… Mas as auroras
também se pintam pela timidez indecisa de uma cor intermédia. E ele deitado,
num estar além-tempo, uma voz de si na entoação de um conselho: Não te levantes, não te levantes… De
alguma forma, compreendia, sem sentir, o saber das palavras. Não se levantou.
Assim permaneceu, naquele estar do desconhecido, apenas com a tepidez familiar
da luz. Mas o rosto submerso na sombria alvura da divisão. Se ao menos um pouco
de calor em si… Por uns momentos, sim, até à leveza reconfortante de um sonho
sem corpo, deteve-se naqueles pregões iluminados de alvorecer. Se porventura um
lhe passeasse pelo rosto… Por fim, cedeu a uma lei gravítica que nos impele a
um regresso, sistemático, a algures de nós. No fundo, trata-se de uma queda.
Sim, um pouco isso. Cedemos a um peso de outra ordem, e abandonamo-nos ao
desamparo de uma viagem sem bússola nem mapa. Sim, a queda é o início de um
trajecto. E, no regresso, quantas vezes, não trazemos, nos alforges, dores e
mágoas adormecidas nos caminhos do mundo? Talvez no seu lugar tenhamos
depositado tempo: o único crédito da existência.
Compreendeu, naquele lugar, que
descansar e sobreviver são conceitos distantes. Sim, ali não se respirava
fundo, apenas havia tempo para retomar o fôlego. O estrépito matinal
afigurou-se-lhe ensurdecedor. Primeiro, carrinhos metálicos que transportavam
aquilo que, noutros contextos, se denomina de primeira refeição. Assim que lhe
depositaram um tabuleiro, do qual o carácter asséptico se sobrepunha ao do
paladar, cresceu nele a distância: como se, de súbito, compreendesse o
desespero do viajante que se sabe perdido. Olhou os uniformes, uns brancos
outros azuis, que entravam e saíam incessantemente do quarto. Nada. Nenhum
olhar de compreensão. Apenas sorrisos mudos na distância da indiferença. E ele
a saber-se longe. Alguém o questiona: Então,
não vai comer nada? Num mutismo contido, sabia-se aquém de uma resposta.
Como se não encontrasse em si uma voz capaz de se dizer. Sim, sem dúvida, ele
formulou as frases, mas não encontrou a voz para as proferir. Espontaneamente,
esboçou-se-lhe o sorriso estéril de ocasião: o véu do sentir. O sorriso que
clama ao mundo: sentei-me em mim, e aqui vou repousar, até que o tempo vos
dilua da minha circunstância. Assim permaneceu, até que rostos de há muito o
despertaram. Então, como estás? Não tarda
nada, estás novinho em folha! Agora, deixara cair qualquer sorriso estéril
de ocasião. Não há véus possíveis para os rostos de há muito. Só o mestre tempo
nos ensina a contemplar um rosto. E só compreendemos isso quando, demasiado
tarde, o gesto prevalece sobre a palavra. Esmagado contra aquele leito
artificial, procurou, naqueles que o visitavam, a familiaridade. Não a
encontrou. Só se deparou com uma reprimida consternação. Não desistiu,
levantou-se de si, e saiu em busca de passado à sua volta. Por fim, emergiu, na
desolação do seu eu, de mãos vazias. Chegou à conclusão, como se de um recente
náufrago se tratasse, de que familiaridade e contexto são velhos companheiros
de viagem. À sua volta, continuou uma chuva cansada e repetida (Quando deres por ti, já estás em casa! Ainda
nos vamos rir disto. Tem calma, o que é preciso é que recuperes).
Regressado a si, deambulou um pouco, a chuva persistia (Ânimo! Tens de ser forte! Olha que há gente bem pior do que tu!). Olhou-os, agora de uma distância segura. Intuiu que não valia a pena.
Não ia defender a sua tese. Apenas se protegeu da chuva sob o velho e usado
capote de um aparente cansaço. Ainda ouviu as preocupações, dos rostos
familiares, sussurradas corredor fora. Agora sim, inspirou. Olhou o companheiro
de infortúnio, adormecido na cama ao lado. Ainda não tinham trocado muitas
palavras. Apenas as necessárias para sustentar a cortesia. Afinal, partilhavam
um quarto, numa situação limite. Não tivera visitas. Nada mais cinzento:
aguardar por sombras, deitado num leito hospitalar, em hora de visita; e orar,
num canto invisível de si, para que Deus avance a ordem do mundo. Mas ele
dormia num sorriso de rosto. Talvez já se tenha despedido. Talvez já tenha
deixado tudo em ordem. Talvez o esperem em alguma estação. Ou tenha aproveitado
aquela chuva repentina, e de um leito agora jangada navegue, de alforges
vazios, rumo a um lugar de gestos lentos e de palavras alaranjadas.
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