Livros do Escritor

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sábado, 24 de outubro de 2020

Ecos de vozes idas


 

Neste momento, ia em viagem algures debaixo do céu do mundo. Sem pressa. No fundo, a melhor forma de se viajar. Gostava de viajar só. Sinal que gostava da sua companhia. Estes são os que reclinam a cabeça com facilidade. Aos outros, resta-lhes experimentar a contínua aspereza de cada travesseiro. Não há outra forma: nunca se encontra no mundo aquilo que não trazemos para ele. Mas ele, neste exacto momento, guiava na gratidão de um silêncio compassado. Fruía cada instante do percurso. Diante de si, abriu-se uma longa recta. Àquela hora matinal, ainda pouco trânsito. A visibilidade era boa, apesar dos resquícios de uma noite ida. Reparou, um pouco à frente, na berma da estrada, numa mão suplicante. Desacelerou espontaneamente, fruto de uma vontade de génese incógnita. Porquê? (Questionar-se-ia ele, mais tarde. Como resposta, apenas a memória de um gesto irreflexo, nada mais. Mas, ainda assim, tinha como resposta a memória de um gesto. Quantas vezes nem isso? Apenas os amargos frutos colhidos a jusante, por uma vontade obscura emergida do aparente nada.) Desse modo, imobilizou a viatura diante de uma mão estendida. Após três ou quatro frases de contextualização, a porta direita do carro abriu e fechou-se, e as preces de um gesto foram atendidas. Ele reiniciou a marcha. Iam para o mesmo destino. Só mais à frente, o diálogo foi retomado. Como se, de certa forma, houvesse a necessidade de um preâmbulo. É compreensível, neste caso, esta carência. Ninguém está de mão estendida, para um horizonte amanhecido, e, ainda a familiarizar-se com o interior da viatura, com a serenidade que ele ostentava no rosto (habitual naqueles que gostam de ir ao cinema sós), com aquela condução sem amanhãs, enceta um diálogo de naufrágio anunciado. Por sua vez, ele deixou que as coisas fluíssem, de mãos no volante e com o pensar no destino. Começou-se, como sempre acontece entre estranhos, ou para se retomar uma familiaridade algures perdida, por falar do tempo. Porque será? É um tema recorrente, como aquelas moedas que interessam sempre quando se trata de trocos, porque afecta a todos. Afinal, todos vivemos debaixo do mesmo céu, sim, é verdade, mas nem todos olhamos para cima… O diálogo foi-se instalando de forma natural, um pouco como aquelas melodias que, numa primeira fase, se anunciam, para, depois, nos enlevarem na sua corrente rumo a um jusante de reencontros. Ele, quando se apercebeu, falava de si. Tão raro, isto suceder. Nem com os rostos dos seus dias. Era comum censurarem-lhe a escassez de verbo. Ele retorquia apenas com um sorriso. E, interiormente, reencontrava a falibilidade da palavra. Sempre preferiu o gesto. Não sabe porquê, mas sempre achou que dura mais. Ocupa mais espaço de memória. Mas, hoje, no espaço interior do seu carro, redescobre o enlevo encadeado das palavras, como se saísse de si para as seguir, tal o seu encantamento. A viagem prosseguia num espaço e tempo balizados por emoções. Houve, ainda, tempo para um café. Um desses estabelecimentos, à beira da estrada, em que tudo assume um cariz transitório: como se fizesse, também, parte da viagem. No fundo, é parte integrante, quem ali pára é que procura esquecê-lo. Após o café, ouviram-se menos frases no interior amanhecido do carro. Algo se terá perdido. E ninguém o reencontrou. Talvez o ar matinal tenha arrefecido as emoções e despertado a razão (e as suas defesas naturais). Talvez, no café, o temor do contacto frontal dos rostos. Talvez a proximidade do fim. Deixou a outrora mão suplicante no seu destino. Despediu-se com um obrigado mecânico, como se saído de uma gravação, e afastou-se sem olhar para trás. Ele permaneceu, no interior da viatura, num espanto mudo. Ainda olhou para trás, mas nem um sinal de súplica, no vai e vem de vultos que, àquela hora, já preenchiam os passeios. A mão diluíra-se do seu horizonte. Já lhe povoava a memória. Ele ainda no espanto do sucedido nos instantes pretéritos. Havia frases que ainda povoavam o carro. Frases não, desculpem, sentires. Há quanto tempo ele não dizia quem era? Certamente, alguém espera, nalgum lugar, que ele o diga. Alguém sem gestos fugidios, sem entoações mecânicas, e que se sente diante dele. Talvez aí não sucumba à primeira súplica ilusória do destino.


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