Livros do Escritor

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domingo, 9 de março de 2025


 “Com o tempo, somamos funerais, só nos resta orar para que nunca sejam os indevidos..."

in Dolorosamente real II

quarta-feira, 5 de março de 2025

Dolorosamente real


 

Há um brilho distinto numa manhã de Outono, algo de inexplicável, uma nitidez e simultaneamente claridade sobre as coisas do mundo, talvez pelo último estertor da terra, antes da longa e invernosa noite, como se da própria natureza ecoasse o canto do cisne, foi sob esta luz que saíram para o mundo, ela em passos contrariados, os dele apenas resignados, entraram na viatura, “Não vamos lá dormir, não achas?”, “Penso que não há necessidade, são só duas horas e pouco de caminho…,” respondeu-lhe a olhar o retrovisor, enquanto fazia marcha-atrás, “Também acho! Nem sei porque trouxemos mala…,” “Por precaução, já te expliquei! E a família é tua, não te esqueças…”, “Eu sei disso, mas não me apetecia vê-los… Falas de família e continuo a achá-los apenas uns estranhos… Partilhámos tecto e mesa por uns tempos, contudo, para mim, são uns estranhos… E, agora, este funeral… O passado arrumado, e mal, numa qualquer gaveta, de repente, a fixar-nos, como se, afinal, nunca tivesse ficado lá bem para trás… É curioso, sabes, tudo isto só me veio desorganizar… Eu já nem lhes falava há anos! Hoje, por este imperativo-social, temos de percorrer mais de seiscentos quilómetros, se lá não dormirmos, conviver com desconhecidos, para mim, decidi há muito, serão sempre desconhecidos, conversas estéreis de ocasião, porém, lentamente o passado começará a levantar-se…”, “Estranhos, desconhecidos, não te cansas de repetir, parece-me que estás a exagerar.”, “Estranho é todo aquele que não compreendes! E, em verdade, nunca os compreendi e o inverso também sucedeu. Ou será que tenho de te prestar mais contas?”, acabavam de entrar naquela estrada que tão bem se faz pagar, como se lhe houvesse alternativas, no entanto, por estes dias, o conceito mais apregoado é “Liberdade,” se porventura lá soubessem o que isso é, ficará para outras linhas, um pouco cansado de tanto azedume, ele decide relembrar-lhe “Eu felizmente não lhes sou nada! Estou aqui somente para te acompanhar…,” “Eu sei, desculpa! Não esperava nada disto, confesso… Atendi a chamada dela sem sequer ver que número me ligava, foi instintivo, assim que lhe ouvi a voz, enfim, tudo me regressou, como se nunca de lá tivesse partido…,” “Sinal de que te foges! O passado encontra-nos sempre! É uma ilusão pensar que lhe fugimos.,” “Pois, neste caso, a razão pertence-te. Mas estava longe de fugas e esconderijos, simplesmente já nem deles me lembrava até àquela chamada…,”Ela foi cordial, certo?,” “Fria, autómata, monocórdica, um gravador teria o mesmo efeito…,” “Denotaste algum juízo sublimado no tom ou nas palavras?,” “Nada! Repito: um gravador teria o mesmo efeito…,” “Menos mal! Ao menos, já não atiram pedras… Sempre foram pródigos em juízos-de-valor! Uma existência tão desprezível, no entanto, de indicador sempre apontado para os outros. Esqueci-me de te perguntar: chegaste a dizer-lhe se comparecerias no funeral?,” “Não! Agradeci a informação e desliguei. Pelo menos, tive presença-de-espírito para limitar a comunicação a tal…,” “Fizeste muito bem! E, quando lá chegarmos, terás de manter a mesma postura. Sempre os vi como vampiros das fraquezas alheias, se detectam uma gotinha de sangue, um infortúnio, onde haja bolsos-cheios, ei-los a cercar a vítima… Quanto já não sacaram à conta desta prática?!,” “É um facto! Às vezes, penso que é impossível ser-se inteiramente feliz num seio familiar… Creio que a felicidade é inversamente proporcional aos silêncios acumulados. E como ali, com os anos, o silêncio se adensou… Pesava tanto! Dava conta disso sobretudo às refeições, éramos estranhos a partilhar uma mesa… A comunicação cingia-se a: Passa-me a salada, por favor… Onde está o comando da televisão? E pouco mais… Quando, numa refeição familiar, quem impera é a televisão, cada um fugiu para um canto de si… Dei por mim, enquanto vivi sob o mesmo tecto que eles, em tantas ocasiões, com receio de desaprender a conversar… A sério! Eu vi aberta a porta da loucura mais de uma dezena de vezes! Desculpa, estamos a viajar e eu a perder-me com estes dramas do ontem…,” “Se fossem do ontem, não os retratavas com tanta nitidez!”, “Houve momentos que nem contigo partilho! Desculpa… Receei enlouquecer! A porta da loucura escancarada e eu, da soleira, a fitá-la!,” “E o que viste?”, “A mais negra das noites! Se me engolisse, jamais regressaria… Daí o meu respeito por quem é apelidado de louco. Tiveram a coragem de dar um passo em frente e entrar, eu, pelo contrário, apenas me limitei a olhar…,” “Estás a divagar! Felizmente assim foi. Lembra-te de que não há lares perfeitos, quantas vezes, em minha casa, às refeições, a televisão a ditar as regras? Não penses que foi só contigo…,” “É diferente, acredita. Ali era um acto misericordioso, para não sucumbirmos às opressivas toneladas de silêncio.,” “Esclarece-me então: porque vais ao funeral?,” “Ainda não descobri… Como te disse, desde aquele telefonema tudo me regressou, parte de mim acredita ser a única forma de definitivamente encerrar esse capítulo! Um funeral é um adeus, compreendes?,” “Só o coração pode dizer adeus!” Há um brilho distinto numa manhã de Outono, algo de inexplicável, uma nitidez e simultaneamente claridade sobre as coisas do mundo, talvez pelo último estertor da terra, antes da longa e invernosa noite…

domingo, 2 de março de 2025


 ... desconheciam o essencial: que o amanhã é uma sombra por iluminar...

in Desumanização

sábado, 1 de março de 2025

Desumanização


 

Não sei, ao certo, que horas seriam, foi a meio da tarde, num dos passeios da capital, avolumava-se gente perto da passadeira, à espera do verde para os peões, quando, de repente, alguém se precipita sozinho na calçada, como estava um pouco para trás, só reparei na boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, o espanto inicial, por ver um corpo caído, deu lugar a uma miríade de reacções, houve quem prontamente virasse costas e se mantivesse à espera do verde para os peões, outros logo com o telemóvel para fotografar ou filmar, ainda houve os que nem se descentraram do rectângulo, em furiosos dedilhares, quem sabe por ali o destino da humanidade, enfim, reparei num sujeito, prontamente se identificou como médico, debruçado sobre o corpo, a tentar reanimá-lo, a gritar aos demais “Liguem para o 112! Liguem para o 112! Liguem para o 112! Rápido! Rápido!,” enquanto continuava a comprimir o peito, observei que alguns se mantiveram impassíveis, olhar absorto num indefinível ponto do outro lado da rua, como se alguém, por ali, os esperasse, nem sequer olharam o corpo caído no passeio, as desesperadas manobras de reanimação do sujeito, prontamente se identificou como médico, enquanto gritava, “Liguem para o 112! Liguem para o 112! Liguem para o 112! Rápido! Rápido!,” entretanto, caiu o verde para os peões, quase todos atravessaram a estrada, como se, para trás, não deixassem um corpo caído, pela calçada, alguns, enquanto caminhavam, continuaram voltados para o rectângulo, em furiosos dedilhares, quem sabe por ali o destino da humanidade, uma senhora – a neve pelos cabelos trouxera-lhe bom-senso, tristemente tão singular – permaneceu ao lado do sujeito, prontamente se identificou como médico, debruçado sobre o corpo, a tentar reanimá-lo, cumpria com o imperativo de ligar para o 112, o meu olhar, não sei porquê, incidiu na boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, reparei que alguém a pisara, conferia-lhe uma aura de dignidade ferida, não lhe li desamparo, apenas uma paciente espera de novamente ser restituída à sua função de cobrir o pensar de quem, por ora, jaz a seu lado, pela calçada de um passeio da capital, por fim, os ecos de sereia desamparada da ambulância, nem a sua estrepitante chegada fez alguém refrear o passo ou levantar o rosto do rectângulo, com a excepção de fotografar ou filmar, estava quase a entrar na ambulância, quando dei por mim a apanhar a boina e a correr, para lhe depositar sobre as cobertas, antes que fechassem as portas, o sujeito, prontamente se identificou como médico, antes debruçado sobre o corpo, agora a seu lado no interior da ambulância, sorriu-me, retribuí, as portas fecharam-se e partiu, com o seu lancinante gritar de sereia desamparada, olhei em volta e só constatei vultos em movimento, também debruçados sobre o rectângulo, nem vestígios da senhora – a neve pelos cabelos trouxera-lhe bom-senso, tristemente tão singular – que permaneceu ao lado do sujeito, prontamente se identificou como médico, os gestos, à minha volta, eram os mesmos, só os rostos se alteraram, segui caminho, umas ruas adiante, um indivíduo debruçado sobre o lixo, apesar do aspecto andrajoso, lia-se no seu porte vestígios de dignidade, sem dúvida já foi outro, a derrota no seu olhar contribuiu para esta minha dedução, no lado oposto, uma esplanada, metade das mesas ocupadas, afiguraram-se-me estudantes universitários, embora a idade contrastasse com os modos, risinhos estéreis, transpareciam uma notória futilidade, decidi estugar o passo quando observo, numa das mesas, uma jovem pegar no telemóvel e apontar para o indivíduo debruçado sobre o lixo, os risos em volta incendiaram-se, felizmente ele não se apercebera, nem naquele caixote-de-lixo haveria lugar para a dignidade daquelas patéticas figuras, afiguraram-se-me estudantes universitários, mas desconheciam o essencial: que o amanhã é uma sombra por iluminar; aquelas almas fediam a putrefacção, tão distantes de um porte onde se lia vestígios de dignidade, sem dúvida já foi outro, regressou-me ao pensar a boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, não lhe li desamparo, apenas uma paciente espera de novamente ser restituída à sua função de cobrir o pensar de quem, naquele momento, jazia a seu lado, percorri o que me faltava a olhar os sapatos, como me pesava o pensar, enquanto abria o correio, duas vizinhas conversavam animadamente na escada “Parece que só come pão com manteiga! Veja bem!”, “E os filhos?”, “O mesmo, claro, parece que não tem para mais… Aquilo fechou de um dia para o outro! Não viram ordenado nos últimos dois meses! Agora, tem de esperar pelo subsídio de desemprego…”, “E até lá?,” “Perca o orgulho e bata à porta do ex-marido,” “Mas não se separaram por lhe bater?,” “E é melhor morrer à fome? E arrastar os filhos por orgulho?,” “Pois, é uma situação difícil… E nós não podíamos…,” “Deixe-se disso mulher! Enquanto teve trabalho, lembra-se de como andava? Toda emproada, até carro da firma conduzia, assim que se separou, acho que enfiou logo um aqui por umas noites… E com os filhos em casa! Isto serve para acordar! Não tenha pena que eu também não! Pãozinho com manteiga nunca fez mal a ninguém! Agora, olhe, vai de transportes-públicos para o centro de emprego! Já se lhe baixou a crista…,” “Mas as crianças…”, não ouvi mais, reflecti na imensidão de cretinices que se dizem nas costas de cada um, voltei a sair, fui até ao super-mercado mais próximo, regressei com bem mais que pães e manteiga, depositei os sacos no tapete de uma certa porta, toquei à campainha e corri escada acima até ao meu andar, ouvi, atrás de mim, a porta abrir-se e vozes, de uma mulher e crianças, antes de entrar em casa, de novo a imagem da boina, verde-escura, a contrastar com a brancura da calçada, não lhe li desamparo, apenas uma paciente espera de novamente ser restituída à sua função de cobrir o pensar de quem, naquele momento, jazia a seu lado.