Livros do Escritor

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sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Quando ainda fôlego para uma derradeira súplica…

 


Ao passar, diante daquele edifício branco, com uma cruz ao alto, a imagem da mãe, nos últimos tempos reduzida a um ténue articulado de ossos, envolta num manto negro, a ali entrar, todas as tardes, numa discrição condizente com as vestes, de imediato o respeito conduzia-lhe os joelhos ao chão, assim ficava, a passar aquelas pedras por entre os dedos, enquanto os lábios pediam que as alturas se lembrassem, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, todas as tardes de uma vida, neste ponto, afastou-se da mãe, tal como em muitos outros, nunca foi apologista de discretos mantos negros como vestes, nem de joelhos no chão, mas, hoje em particular, gostaria que alguém se lembrasse, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, parou, percebeu a porta aberta, o mundo mergulhado na tarde da vida, cada um cumpria com o seu destino de horas e afazeres, deixou-se ali estar por uns instantes, contou os degraus até à porta aberta, daquele edifício branco, com uma cruz ao alto, totalizavam sete, hesitou, até que, sem o perceber, já vencia o primeiro degrau, nem uma dezena de segundos depois, transpôs a entrada e logo aquele silêncio a envolveu, como se sempre ali estivesse à espera do seu regresso, apreciou aquela semi-obscuridade, instava a confidências e reflexões, apenas dois ou três vultos àquela hora, a quem o respeito conduzira os joelhos ao chão, pediam para que alguém se lembrasse, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, inspirou profundamente e sentou-se, o seu olhar maravilhado pelas chamas ondulantes das velas espalhadas pelo templo, havia algo de irreal nessa luz que se curvava com uma qualquer brisa para logo se reerguer, numa verticalidade fantasiosa, rumo às alturas, passaram-se décadas desde que ali estivera pela última vez, a vida, pois, afastou-se dessas questões de pedir ajuda a um amigo que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, além disso, tem muitos nomes, consoante o idioma em que o convocamos, uns desistem, julgam que nunca responde, outros afirmam que sempre responde, mas numa outra linguagem, porém, algo sobreviveu às décadas desde que ali estivera pela última vez: o silêncio. Dali, o mundo parecia um lugar longe, tudo se tornava relativo face àquela promessa de alturas, embora os joelhos dela, sem saber como, sintam, neste momento, a frieza áspera das lajes, junta as mãos e ali repousa, agora, a testa, enquanto procura as palavras certas para recuperar um diálogo interrompido há décadas, a vida, pois, caminha, agora, pelas paisagens de si, tantas sombras, talvez por cansadas noites sem luar, aqui e ali um vestígio de luz sempre filtrado por algo, mas também espaço para vislumbres de Sul, subidas demasiado íngremes, precipícios abruptos, vales de pouca extensão, lugares recônditos que convidam a confidências e virar costas ao tempo, se ao menos aquelas pedras para passar por entre os dedos, enquanto os lábios pediam que as alturas se lembrassem, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, mas nada, de repente, senta-se diante de um dia da meninice ida, vê-se a perguntar, à sua avó, por aquele amigo que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, a resposta da velha não tardava Ele, antes mesmo de lhe pedires, já sabe o que queres, tão estranho, pensou na altura, no entanto, hoje compreendeu perfeitamente as palavras da velha, de repente, diante dela, o marido a abrir aquela gaveta, um copo com água na mão, a pegar sofregamente numa lamela, a retirar um comprimido para logo o engolir, sem espaço para mais, reflectir, ponderar, sopesar, tudo tão longe, ele queria aguentar mais um dia, e se chegar ao amanhã, tudo se repetirá, abrir aquela gaveta, um copo com água na mão, a pegar sofregamente numa lamela, a retirar um comprimido para logo o engolir, tudo isso desde que não se levanta pelo pão de cada dia, nem dignidade para lhe dizerem que foi despedido, rotularam-no de dispensado, feriu-o ainda mais o embrulho da expressão, logo ele tão directo, frontal, desconhecedor de eufemismos, a meio dos cinquenta, por outras palavras, vê a meta mas ainda está na corrida, agora nem uma coisa nem outra, como se o desclassificassem tão próximo do fim, já lá vão uns meses, tem falado uns disparates, nestes últimos tempos, que a têm assustado, a filha também não anda melhor, o casamento, nem a isso chegou, no fundo, juntaram-se, as coisas, de facto, relativizaram-se e foram destituídas do seu profundo e legítimo carácter, mas a filha a visitá-los à noite com uma frequência crescente, a contar-lhes que não gosta de passar os serões sozinha, pelo meio, diz que o companheiro acumula horários para trazer mais, no final do mês, para casa, embora ela não dispense, na hora do regresso, um saco de provisões, três litros de leite, cinco carcaças, uma manteiga, um cachito de bananas, nunca fizeram mal a ninguém, não é verdade? Se o marido estivesse acordado a essa hora, isso só seria possível se não abrisse aquela gaveta, um copo com água na mão, não pegasse sofregamente numa lamela, para retirar um comprimido e o engolir, percebia a crescente apreensão dela pela filha, cada vez mais, no pântano do hoje, se comunica o essencial calando-o, ela, antes de fechar a porta, um derradeiro olhar para a filha, com o saco de provisões na mão, que lhe diz, sem palavras, Percebes, não é? Estou prestes a ser trocada… Ele não me procura há quase dois meses. Não consigo um emprego condizente com aquele canudo que de nada me serve… E, lembras-te mãe, tantas e tantas noites em branco para o conseguir… Agora, se o evoco, olham-me como um empecilho… Se digo que nada tenho, olham-me como um verme… Nada se disse entre elas, e o marido, aquém de tudo isto, já dorme embalado pelo fruto da lamela, a olhar uma meta tão próxima, mas sempre tão longínqua… Quais são as palavras certas para recuperar um diálogo interrompido há décadas? Como pedir que as alturas se lembrem, nem que seja um pouco, de nós que para aqui andamos? Se lhe perguntassem, ela não saberia responder, levantou-se, saiu, antes, olhou maravilhada, uma vez mais, as chamas ondulantes das velas espalhadas pelo templo, ou talvez soubesse a resposta, afinal, fora-lhe revelada na meninice, pela avó, aquele amigo, que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, antes mesmo de lhe pedires, já sabe o que queres.

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