Ao passar, diante daquele edifício branco, com uma cruz ao
alto, a imagem da mãe, nos últimos tempos reduzida a um ténue articulado de
ossos, envolta num manto negro, a ali entrar, todas as tardes, numa discrição
condizente com as vestes, de imediato o respeito conduzia-lhe os joelhos ao
chão, assim ficava, a passar aquelas pedras por entre os dedos, enquanto os
lábios pediam que as alturas se lembrassem, nem que fosse um pouco, de nós que
para aqui andamos, todas as tardes de uma vida, neste ponto, afastou-se da mãe,
tal como em muitos outros, nunca foi apologista de discretos mantos negros como
vestes, nem de joelhos no chão, mas, hoje em particular, gostaria que alguém se
lembrasse, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos, parou,
percebeu a porta aberta, o mundo mergulhado na tarde da vida, cada um cumpria
com o seu destino de horas e afazeres, deixou-se ali estar por uns instantes,
contou os degraus até à porta aberta, daquele edifício branco, com uma cruz ao
alto, totalizavam sete, hesitou, até que, sem o perceber, já vencia o primeiro
degrau, nem uma dezena de segundos depois, transpôs a entrada e logo aquele
silêncio a envolveu, como se sempre ali estivesse à espera do seu regresso,
apreciou aquela semi-obscuridade, instava a confidências e reflexões, apenas
dois ou três vultos àquela hora, a quem o respeito conduzira os joelhos ao
chão, pediam para que alguém se lembrasse, nem que fosse um pouco, de nós que
para aqui andamos, inspirou profundamente e sentou-se, o seu olhar maravilhado
pelas chamas ondulantes das velas espalhadas pelo templo, havia algo de irreal
nessa luz que se curvava com uma qualquer brisa para logo se reerguer, numa
verticalidade fantasiosa, rumo às alturas, passaram-se décadas desde que ali
estivera pela última vez, a vida, pois, afastou-se dessas questões de pedir
ajuda a um amigo que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, além
disso, tem muitos nomes, consoante o idioma em que o convocamos, uns desistem,
julgam que nunca responde, outros afirmam que sempre responde, mas numa outra
linguagem, porém, algo sobreviveu às décadas desde que ali estivera pela última
vez: o silêncio. Dali, o mundo parecia um lugar longe, tudo se tornava relativo
face àquela promessa de alturas, embora os joelhos dela, sem saber como,
sintam, neste momento, a frieza áspera das lajes, junta as mãos e ali repousa,
agora, a testa, enquanto procura as palavras certas para recuperar um diálogo
interrompido há décadas, a vida, pois, caminha, agora, pelas paisagens de si,
tantas sombras, talvez por cansadas noites sem luar, aqui e ali um vestígio de
luz sempre filtrado por algo, mas também espaço para vislumbres de Sul, subidas
demasiado íngremes, precipícios abruptos, vales de pouca extensão, lugares
recônditos que convidam a confidências e virar costas ao tempo, se ao menos
aquelas pedras para passar por entre os dedos, enquanto os lábios pediam que as
alturas se lembrassem, nem que fosse um pouco, de nós que para aqui andamos,
mas nada, de repente, senta-se diante de um dia da meninice ida, vê-se a
perguntar, à sua avó, por aquele amigo que habita algures entre o pensar e
sentir de cada um, a resposta da velha não tardava Ele, antes mesmo de lhe pedires, já sabe o que queres, tão
estranho, pensou na altura, no entanto, hoje compreendeu perfeitamente as
palavras da velha, de repente, diante dela, o marido a abrir aquela gaveta, um
copo com água na mão, a pegar sofregamente numa lamela, a retirar um comprimido
para logo o engolir, sem espaço para mais, reflectir, ponderar, sopesar, tudo
tão longe, ele queria aguentar mais um dia, e se chegar ao amanhã, tudo se
repetirá, abrir aquela gaveta, um copo com água na mão, a pegar sofregamente
numa lamela, a retirar um comprimido para logo o engolir, tudo isso desde que
não se levanta pelo pão de cada dia, nem dignidade para lhe dizerem que foi
despedido, rotularam-no de dispensado, feriu-o
ainda mais o embrulho da expressão, logo ele tão directo, frontal,
desconhecedor de eufemismos, a meio dos cinquenta, por outras palavras, vê a
meta mas ainda está na corrida, agora nem uma coisa nem outra, como se o
desclassificassem tão próximo do fim, já lá vão uns meses, tem falado uns
disparates, nestes últimos tempos, que a têm assustado, a filha também não anda
melhor, o casamento, nem a isso chegou, no fundo, juntaram-se, as coisas, de
facto, relativizaram-se e foram destituídas do seu profundo e legítimo
carácter, mas a filha a visitá-los à noite com uma frequência crescente, a
contar-lhes que não gosta de passar os serões sozinha, pelo meio, diz que o
companheiro acumula horários para trazer mais, no final do mês, para casa,
embora ela não dispense, na hora do regresso, um saco de provisões, três litros
de leite, cinco carcaças, uma manteiga, um cachito de bananas, nunca fizeram
mal a ninguém, não é verdade? Se o marido estivesse acordado a essa hora, isso
só seria possível se não abrisse aquela gaveta, um copo com água na mão, não
pegasse sofregamente numa lamela, para retirar um comprimido e o engolir,
percebia a crescente apreensão dela pela filha, cada vez mais, no pântano do
hoje, se comunica o essencial calando-o, ela, antes de fechar a porta, um
derradeiro olhar para a filha, com o saco de provisões na mão, que lhe diz, sem
palavras, Percebes, não é? Estou prestes
a ser trocada… Ele não me procura há quase dois meses. Não consigo um emprego
condizente com aquele canudo que de nada me serve… E, lembras-te mãe, tantas e
tantas noites em branco para o conseguir… Agora, se o evoco, olham-me como um
empecilho… Se digo que nada tenho, olham-me como um verme… Nada se disse
entre elas, e o marido, aquém de tudo isto, já dorme embalado pelo fruto da
lamela, a olhar uma meta tão próxima, mas sempre tão longínqua… Quais são as
palavras certas para recuperar um diálogo interrompido há décadas? Como pedir
que as alturas se lembrem, nem que seja um pouco, de nós que para aqui andamos?
Se lhe perguntassem, ela não saberia responder, levantou-se, saiu, antes, olhou
maravilhada, uma vez mais, as chamas ondulantes das velas espalhadas pelo
templo, ou talvez soubesse a resposta, afinal, fora-lhe revelada na meninice,
pela avó, aquele amigo, que habita algures entre o pensar e sentir de cada um, antes mesmo de lhe pedires, já sabe o que
queres.
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