Livros do Escritor

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quinta-feira, 7 de novembro de 2024

Deixai a aparição emergir no seio da aparência



Há vozes que, apesar de já caladas, ainda nos norteiam os passos, volta e meia, frases suas fazem-se ouvir, como é o caso desta, por norma, assim começava as frases (“Meus amigos, meus amigos…”), depois lá vinha a sentença, hoje só vou falar desta (“Deixai a aparição emergir no seio da aparência”), de facto, há frases que levam uma vida para serem compreendidas, ou talvez mais, o primeiro convite desta frase é à paciência, à espera, tão difícil, sobretudo para quem já olhou a “finitude” nos olhos, tão bem a sabe, e compreendeu que o presente é um constante passado, de vez em quando, dou por mim a revisitar velhos álbuns de fotografias, neste momento, há fotos de grupo onde se somam mais ausências que presenças, começa a enraizar-se a ideia de transitoriedade, também eu, um dia, serei uma ausência, um gesto esfumado, uma voz sumida, um rosto distorcido, é curioso, se antes, perante este “abismo”, apoderava-se de mim um terror frio e desmesurado, agora, somente resignação, uma espera consciente pela noite que se aproxima, com a sua passada indistinta e surda, nesta fase da vida, creio que a precipitação, a impaciência, em vez de agilizar as coisas, apenas as agudiza, as demora num doloroso arrastar, como se atentássemos “a ordem natural das coisas”, outra voz, outra sentença, hoje por aqui, “Meu filho, meu filho, o que é teu à tua mão virá ter”, pois, outro convite à paciência, à espera, tão difícil, sobretudo para quem já olhou a “finitude” nos olhos, tão bem a sabe, e compreendeu que o presente é um constante passado, a voz da primeira frase era de um sacerdote, homem idoso (o outro tem sempre a idade de quando o conhecemos), consagrado aos estudos, de trato fácil, humano, sapiente, a voz da segunda frase era de uma mulher idosa (o outro tem sempre a idade de quando o conhecemos), com a quarta-classe, mas a antiga, detentora da reconhecida dignidade (quantas vezes, meu pai, lá por casa: “Valia mais a quarta-classe antiga, do que o vosso liceu…”, curioso, hoje talvez lhe conceda uma larga percentagem de razão), sofrida, amarga, com o seu quê de intriguista (pena serem as últimas impressões a perdurar…), porém, ambas as vozes, provenientes de dois continentes distintos do panorama humano, apontam no mesmo sentido: o da paciência, da espera, tão difícil, sobretudo para quem já olhou a “finitude” nos olhos, tão bem a sabe, e compreendeu que o presente é um constante passado, mas, se bem analisar, quantos erros cometidos por silenciar estas vozes? E outras? Talvez por isso, volta e meia, dê por mim a revisitar velhos álbuns de fotografias, neste momento, há fotos de grupo onde se somam mais ausências que presenças, há uns dias, olhei não a foto de grupo do meu casamento, mas o lugar onde foi tirada, uns degraus, pareceram-me mais na altura, à porta da igreja, e contabilizei mais de oito ausências, ainda nem duas décadas, e oito ausências, daí a dor, a incompreensão, de revisitar velhos álbuns de fotografias, e a questão sem voz a levantar-se: “Ir-nos-emos reencontrar?”, não tanto para onde vamos quando formos uma ausência aos olhos de alguém, mas se, de facto, aqueles idos rostos, silenciadas vozes, esfumados gestos, serão de novo uma presença? E o Sentido? Onde? Detenho-me ainda com essa foto, na forma de uns degraus entardecidos, afinal, a fotografia em mim e não diante do meu olhar, ali apenas os degraus, em pedra, indiferentes, como se, nem há duas décadas, tivesse ali sido tirada uma fotografia, com uma centena e meia de convidados, agora, pelo menos, mais de oito ausências, sem contar os casais separados, muito para além do simples oito, sobre os degraus uma brisa vespertina, continuo a olhá-los, e neles encontro a paisagem interior que me habita, vozes animadas, felicitações, cortesia, boa disposição, futuro no olhar, como se isto fosse o viver, quando, de todo, não o é, não se somassem já mais de oito ausências, sem contar os casais separados, muito para além do simples oito, tudo uma ilusão, só os degraus testemunham a realidade da paisagem que me habita o pensar, e a brisa vespertina traz-me o eco de vozes animadas, felicitações, cortesia e boa disposição, num dia por vir, alguém revisitará velhos álbuns de fotografias, possivelmente se detenha a olhar estes degraus, e eu já seja mais uma ausência a somar na fotografia, se atentar na brisa vespertina sobre os degraus, talvez encontre um vislumbre destas palavras, afinal a ausência está sempre no olhar.

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