O que fica do ontem? Andava ele com
esta pergunta dentro de si, um pouco como aquelas melodias que não nos largam,
por muito que queiramos, quando decide regressar àquele lugar, no fundo, não
interessa qual, porque todos temos um lugar nesta vida, em certo momento, é
inevitável, temos de nos apear da viagem e fechar os olhos para que o sonho
possa esticar as pernas, como dizia, retorna a um espelho entretanto
anoitecido, um banco à beira-rio, nem uma brisa a relembrar outras paragens
naquele final de tarde, tudo num estatismo condizente com a desesperança que há
muito aportara no horizonte da indizível mágoa do seu olhar, sentado a um
banco, a olhar a vazante, que levanta aquele típico aroma a lodo e desolação,
em baixo, igualmente sentado, também a olhar a vazante, como se numa
expectativa muda, a companhia que lhe resta, por outras palavras, o seu último
amigo, ambos olham os passeantes que ali chegam com o Verão, sem nunca perder
do horizonte a vazante, famílias de estrangeiros com aspecto de camarão, a falarem
a sua língua com a naturalidade de quem não parece ter-se feito à estrada,
entre gelados numa mão e cervejas na outra, casais de cá, a sentir a leveza dos
bolsos – sinal de que outros indevidamente ficam pesados –, num esforço
patético de transparecer um relaxamento, a cada passada, que roça o ridículo
pela artificialidade, acrescente-se a este quadro as indumentárias, não só pelo
anacronismo como pelo desajuste com as formas que pretensamente deviam cobrir,
pais que tentam recuperar, naqueles escassos dias, em esforços inglórios, a
cumplicidade dos filhos, é vê-los com gestos mais rasgados, a voz mais
expansiva, a chutar uma bola, percebe-se, ao primeiro toque, como o objecto
lhes é estranho, os filhos, regra geral, transparecem um primeiro sinal daquela
intromissão, mas a flagrante cegueira dos pais associada à inabitual
ociosidade, proporcionada por estes dias de Verão, concorrem para cimentar um
muro geracional, uma história deveras cansada de tão repetida, as mães, por seu
turno, concorrem com as filhas em decotes e na escalada das saias, daí ao
ridículo, em alguns casos, nem um salto, pois a flacidez ameaça irromper por
todos os lados e precipitar-se até à calçada, a gravidade sempre foi uma coisa
tramada, no entanto, elas sentem-se rejuvenescidas (que fazer?), e lá vão no
seu trajecto, julgando que os olhares mais gulosos lhes são dirigidos, em
certas alturas, tudo serve para acariciar o ego, quando, em verdade, caso lhes
sobrasse um pouco de atenção, perceberiam a direcção da gula ocular, centrada
na jovem que caminha a seu lado (que fazer?), outras famílias, se assim se pode
chamar a um conjunto de indivíduos que partilha grande parte do mesmo espaço de
existir, passam diante deles com olhares e gestos vertidos para um rectângulo
iluminado, volta e meia param, vociferam impropérios, geralmente com a voz
elevada, onde duas palavras se repetem numa cadência obstinada, rede e perda, é curioso, há neles uma nítida consciência de que não são
ouvidos, no sentido de alguém os entender, mas insistem, enquanto rede e perda lhes sai naquela cadência obstinada, em olhar à sua volta,
como se súbitos desalojados por ordem de razão desconhecida, subitamente, o
vociferar impropérios cessa, rede e perda pertencem ao passado, retomam o
passo enquanto olhares e gestos se vertem, de novo, para um rectângulo
iluminado, ele, sentado no banco, percebe que caminham na direcção da vazante,
olha-os e sabe que é tão difícil sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem
somos, não aquilo que a sociedade nos destinou, porque isso, em verdade, é
sempre a última coisa que somos, em certa medida, compreende a invenção do
rectângulo iluminado, é a máscara do hoje, sempre foi mais fácil
escondermo-nos, olhar o outro nos olhos, por momentos, despir as palavras,
outra máscara, e dizermo-nos, requer saber e paciência, tão longe de rede e perda, aproximava-se a hora de regressar, sabia-o quando a brisa de
Oeste lhe sussurrava madrugada na face direita, a companhia que lhe resta, por
outras palavras, o seu último amigo, já se levantara da calçada, antes de se
erguer do banco passa-lhe a mão pela cabeça, Tu não tens problemas desses, não é? De te esconderes? Onde estiveres,
estás por inteiro… Nisto, o seu olhar com a vazante, um ramo de flores na
mão, nem lhes sabia as cores, por dentro afogava-se em amor, mas por fora sabe
que é tão difícil sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem somos, ela dera
sinais de cansaço em pequenos nadas que sempre são o tudo, ele percebera-o, no
entanto, por dentro afogava-se em amor, mas por fora sabe que é tão difícil
sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem somos, por fim, levanta-se, a
companhia que lhe resta, por outras palavras, o seu último amigo, à sua frente,
toma a direcção do lar, ele segue-o, mas sempre a olhar a vazante…
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