Livros do Escritor

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segunda-feira, 18 de março de 2024

Pois é…

 


O que fica do ontem? Andava ele com esta pergunta dentro de si, um pouco como aquelas melodias que não nos largam, por muito que queiramos, quando decide regressar àquele lugar, no fundo, não interessa qual, porque todos temos um lugar nesta vida, em certo momento, é inevitável, temos de nos apear da viagem e fechar os olhos para que o sonho possa esticar as pernas, como dizia, retorna a um espelho entretanto anoitecido, um banco à beira-rio, nem uma brisa a relembrar outras paragens naquele final de tarde, tudo num estatismo condizente com a desesperança que há muito aportara no horizonte da indizível mágoa do seu olhar, sentado a um banco, a olhar a vazante, que levanta aquele típico aroma a lodo e desolação, em baixo, igualmente sentado, também a olhar a vazante, como se numa expectativa muda, a companhia que lhe resta, por outras palavras, o seu último amigo, ambos olham os passeantes que ali chegam com o Verão, sem nunca perder do horizonte a vazante, famílias de estrangeiros com aspecto de camarão, a falarem a sua língua com a naturalidade de quem não parece ter-se feito à estrada, entre gelados numa mão e cervejas na outra, casais de cá, a sentir a leveza dos bolsos – sinal de que outros indevidamente ficam pesados –, num esforço patético de transparecer um relaxamento, a cada passada, que roça o ridículo pela artificialidade, acrescente-se a este quadro as indumentárias, não só pelo anacronismo como pelo desajuste com as formas que pretensamente deviam cobrir, pais que tentam recuperar, naqueles escassos dias, em esforços inglórios, a cumplicidade dos filhos, é vê-los com gestos mais rasgados, a voz mais expansiva, a chutar uma bola, percebe-se, ao primeiro toque, como o objecto lhes é estranho, os filhos, regra geral, transparecem um primeiro sinal daquela intromissão, mas a flagrante cegueira dos pais associada à inabitual ociosidade, proporcionada por estes dias de Verão, concorrem para cimentar um muro geracional, uma história deveras cansada de tão repetida, as mães, por seu turno, concorrem com as filhas em decotes e na escalada das saias, daí ao ridículo, em alguns casos, nem um salto, pois a flacidez ameaça irromper por todos os lados e precipitar-se até à calçada, a gravidade sempre foi uma coisa tramada, no entanto, elas sentem-se rejuvenescidas (que fazer?), e lá vão no seu trajecto, julgando que os olhares mais gulosos lhes são dirigidos, em certas alturas, tudo serve para acariciar o ego, quando, em verdade, caso lhes sobrasse um pouco de atenção, perceberiam a direcção da gula ocular, centrada na jovem que caminha a seu lado (que fazer?), outras famílias, se assim se pode chamar a um conjunto de indivíduos que partilha grande parte do mesmo espaço de existir, passam diante deles com olhares e gestos vertidos para um rectângulo iluminado, volta e meia param, vociferam impropérios, geralmente com a voz elevada, onde duas palavras se repetem numa cadência obstinada, rede e perda, é curioso, há neles uma nítida consciência de que não são ouvidos, no sentido de alguém os entender, mas insistem, enquanto rede e perda lhes sai naquela cadência obstinada, em olhar à sua volta, como se súbitos desalojados por ordem de razão desconhecida, subitamente, o vociferar impropérios cessa, rede e perda pertencem ao passado, retomam o passo enquanto olhares e gestos se vertem, de novo, para um rectângulo iluminado, ele, sentado no banco, percebe que caminham na direcção da vazante, olha-os e sabe que é tão difícil sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem somos, não aquilo que a sociedade nos destinou, porque isso, em verdade, é sempre a última coisa que somos, em certa medida, compreende a invenção do rectângulo iluminado, é a máscara do hoje, sempre foi mais fácil escondermo-nos, olhar o outro nos olhos, por momentos, despir as palavras, outra máscara, e dizermo-nos, requer saber e paciência, tão longe de rede e perda, aproximava-se a hora de regressar, sabia-o quando a brisa de Oeste lhe sussurrava madrugada na face direita, a companhia que lhe resta, por outras palavras, o seu último amigo, já se levantara da calçada, antes de se erguer do banco passa-lhe a mão pela cabeça, Tu não tens problemas desses, não é? De te esconderes? Onde estiveres, estás por inteiro… Nisto, o seu olhar com a vazante, um ramo de flores na mão, nem lhes sabia as cores, por dentro afogava-se em amor, mas por fora sabe que é tão difícil sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem somos, ela dera sinais de cansaço em pequenos nadas que sempre são o tudo, ele percebera-o, no entanto, por dentro afogava-se em amor, mas por fora sabe que é tão difícil sentarmo-nos diante de alguém e dizermos quem somos, por fim, levanta-se, a companhia que lhe resta, por outras palavras, o seu último amigo, à sua frente, toma a direcção do lar, ele segue-o, mas sempre a olhar a vazante…

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