Estás mais
gordinha… Embora a frase tenha alguns
dias, continua a ouvi-la com uma nitidez de presente, antes de se deitarem, ela
ainda em esforços para apimentar o casamento, ele já deitado, de portátil no
colo, a trocar de roupa numa lentidão gritada para o seu olhar, que, a dada
altura, apenas numa observação seca Estás
mais gordinha, a princípio, ficou incrédula com a observação, é o que
sempre acontece quando os nossos ouvidos estão sentados com o nosso pensar,
depois olhou-se ao espelho, olhou-o, olhou-se de novo, por fim, após a
congestão desta frase, optou, pelo menos, em tentar ferir-lhe o ego Deixa lá que tu estás muito bem… Se passares
diante de uma maternidade, ainda te metem numa marquesa, para seu
descontentamento, compreende que ele nem uma sílaba reteve, no fundo, a sua
observação (Estás mais gordinha) foi
genuína, imbuída, até, de uma certa preocupação, não sabe se, por isso mesmo,
os seus esforços de lentidão, na troca de roupa, condenados ao malogro, o olhar
dele avidamente com o ecrã, pousado no colo, por vezes, ela ainda O que é que tu tanto aí vês? A resposta
não tardava muito Porquê? Estou aqui, não
estou? De repente, ela a pensar que, demasiadas vezes, estamos tão longe,
se alguma vez sonhava que ele, um dia, Estás
mais gordinha, teria de fazer qualquer coisa, sempre que se aproximava para
lhe ver o ecrã, ou fechava a tampa ou um dedo mais rápido que a decisão dela
logo fazia surgir uma qualquer banalidade, como se a meteorologia ou uma
qualquer perpétua crise, neste ou em qualquer outro país, fosse motivo para lhe
reter a atenção por mais que escassos segundos, tempo suficiente para carregar
num botão e ir em busca de um qualquer interesse seu, não, não podia ser, tinha
de mudar algo, num lugar muito seu, sabia que ele não mentira, até fora, de
certa forma, polido, não por acaso o diminutivo, mas ao feminino custa sempre
ouvir (Estás mais gordinha), polida
ou grosseiramente dito, o feminino nasceu para ser cantado, é da sua essência,
quem não percebe isto, não percebe a vida, aproveitou a hora de almoço e entrou
numa loja de desporto próxima do trabalho, a princípio, a medo, no desejo de
uma certa invisibilidade que logo lhe foi cortada quando, um dos empregados, um
rapaz com idade para seu filho, lhe anunciou num tom que se lhe afigurou
obscenamente alto Se precisar de ajuda,
disponha, ela a pensar que só precisava de silêncio e discrição, somente
disso, no entanto, algo latejava em si, e não queria, de forma alguma, voltar a
ouvir Estás mais gordinha, claro que
podia argumentar com os dois filhos, com o facto de já não ser nenhuma miúda, o
emprego, a casa, mesmo assim, quem dera a muitas, contudo, num lugar muito seu,
não obstante o diminutivo, sabia que ele não mentira, assim sendo, virou-se
para o rapaz, do tom obsceno, e disse-lhe Sim,
preciso muito da sua ajuda. Não percebo nada disto, tenho a carteira curta, as
formas em crescendo, o que me aconselha, de roupa e calçado, para não me sentir
deslocada num ginásio? Entre provas e contas, demorou mais que a hora de
almoço, mas saiu com dois sacos na mão, faltava o último passo, no final dessa
tarde, inscreveu-se no ginásio que havia relativamente perto de sua casa,
andavam lá duas vizinhas há algum tempo, mas, como eram domésticas, iam durante
a manhã, resoluta, anunciou ao que vinha, preencheu os inevitáveis papéis, a
habitual rapariga da recepção, com voz melosa e sorriso postiço, Quando é que a senhora quer começar?
Ela, sem lugar a réplica, Hoje!
Surpreendeu-se, pela prontidão, pela firmeza, por não esperar pelo pensar, foi
conduzida ao balneário, por outra rapariga de voz melosa e sorriso postiço, um
clone da primeira, que lhe explicou a mecânica de balneários, cacifos, cartões,
e demais, olhou-a e percebeu que ela podia estar a debitar algo acerca de uma
qualquer crise agrícola ao longo da história, ou da crescente infertilidade no
mundo ocidental, que a expressão não se lhe ia alterar, trajada com o conteúdo
dos dois sacos que lhe levaram a hora de almoço, entrou numa sala com
ressonâncias de arena secular, ampla para o olhar, mas exígua para o movimento,
de um lado, havia gente a arfar em cima de bicicletas, uns mais genuinamente, é
certo, outros numa teatralidade mais para o interior do que para a envolvência,
aquela, tal como a bicicleta onde estão sentados, que nunca irá alterar a
paisagem do existir, do outro lado, sujeitos urravam agarrados a barras e
halteres, assim que os pousavam, com um estrépito desmesurado, corriam para o
espelho mais próximo como se afogados por oxigénio, aí chegados, em poses de
uma artificialidade vizinha do absurdo, olhavam-se embevecidos, como se a
imagem reflectida fosse o brinquedo ansiado, é curioso, não trocavam grandes
impressões entre si, pelo contrário, tudo se concertava numa síntese de
esgares, ruidosas expirações, e dos tais urros que atingiam, por vezes, um
esplendor operático, após algum tempo, uma rapariga, também com idade para ser
sua filha, acabou por vir ter com ela, não sabe porquê, talvez fosse uma
impressão errónea, mas sentiu que a olhava como se fosse mais uma efémera
passageira, talvez pela cassete monocórdica, talvez pelo cansaço que lhe
percebeu nos gestos e no rosto, depois de um questionário escrito, hábitos,
estado geral de saúde, outros aspectos que considerou estarem nos antípodas de
uma sala com ressonâncias de arena secular, perguntou-lhe Muito bem! Para já, o que pretende? Nesse momento, pensou-se,
procurou um ponto indeterminado, para não ter que sustentar o olhar da rapariga,
e disse baixinho Não quero que me digam
que estou mais gordinha…
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