Livros do Escritor

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domingo, 31 de março de 2024

O futuro é um lugar lá atrás

 


Estás mais gordinha… Embora a frase tenha alguns dias, continua a ouvi-la com uma nitidez de presente, antes de se deitarem, ela ainda em esforços para apimentar o casamento, ele já deitado, de portátil no colo, a trocar de roupa numa lentidão gritada para o seu olhar, que, a dada altura, apenas numa observação seca Estás mais gordinha, a princípio, ficou incrédula com a observação, é o que sempre acontece quando os nossos ouvidos estão sentados com o nosso pensar, depois olhou-se ao espelho, olhou-o, olhou-se de novo, por fim, após a congestão desta frase, optou, pelo menos, em tentar ferir-lhe o ego Deixa lá que tu estás muito bem… Se passares diante de uma maternidade, ainda te metem numa marquesa, para seu descontentamento, compreende que ele nem uma sílaba reteve, no fundo, a sua observação (Estás mais gordinha) foi genuína, imbuída, até, de uma certa preocupação, não sabe se, por isso mesmo, os seus esforços de lentidão, na troca de roupa, condenados ao malogro, o olhar dele avidamente com o ecrã, pousado no colo, por vezes, ela ainda O que é que tu tanto aí vês? A resposta não tardava muito Porquê? Estou aqui, não estou? De repente, ela a pensar que, demasiadas vezes, estamos tão longe, se alguma vez sonhava que ele, um dia, Estás mais gordinha, teria de fazer qualquer coisa, sempre que se aproximava para lhe ver o ecrã, ou fechava a tampa ou um dedo mais rápido que a decisão dela logo fazia surgir uma qualquer banalidade, como se a meteorologia ou uma qualquer perpétua crise, neste ou em qualquer outro país, fosse motivo para lhe reter a atenção por mais que escassos segundos, tempo suficiente para carregar num botão e ir em busca de um qualquer interesse seu, não, não podia ser, tinha de mudar algo, num lugar muito seu, sabia que ele não mentira, até fora, de certa forma, polido, não por acaso o diminutivo, mas ao feminino custa sempre ouvir (Estás mais gordinha), polida ou grosseiramente dito, o feminino nasceu para ser cantado, é da sua essência, quem não percebe isto, não percebe a vida, aproveitou a hora de almoço e entrou numa loja de desporto próxima do trabalho, a princípio, a medo, no desejo de uma certa invisibilidade que logo lhe foi cortada quando, um dos empregados, um rapaz com idade para seu filho, lhe anunciou num tom que se lhe afigurou obscenamente alto Se precisar de ajuda, disponha, ela a pensar que só precisava de silêncio e discrição, somente disso, no entanto, algo latejava em si, e não queria, de forma alguma, voltar a ouvir Estás mais gordinha, claro que podia argumentar com os dois filhos, com o facto de já não ser nenhuma miúda, o emprego, a casa, mesmo assim, quem dera a muitas, contudo, num lugar muito seu, não obstante o diminutivo, sabia que ele não mentira, assim sendo, virou-se para o rapaz, do tom obsceno, e disse-lhe Sim, preciso muito da sua ajuda. Não percebo nada disto, tenho a carteira curta, as formas em crescendo, o que me aconselha, de roupa e calçado, para não me sentir deslocada num ginásio? Entre provas e contas, demorou mais que a hora de almoço, mas saiu com dois sacos na mão, faltava o último passo, no final dessa tarde, inscreveu-se no ginásio que havia relativamente perto de sua casa, andavam lá duas vizinhas há algum tempo, mas, como eram domésticas, iam durante a manhã, resoluta, anunciou ao que vinha, preencheu os inevitáveis papéis, a habitual rapariga da recepção, com voz melosa e sorriso postiço, Quando é que a senhora quer começar? Ela, sem lugar a réplica, Hoje! Surpreendeu-se, pela prontidão, pela firmeza, por não esperar pelo pensar, foi conduzida ao balneário, por outra rapariga de voz melosa e sorriso postiço, um clone da primeira, que lhe explicou a mecânica de balneários, cacifos, cartões, e demais, olhou-a e percebeu que ela podia estar a debitar algo acerca de uma qualquer crise agrícola ao longo da história, ou da crescente infertilidade no mundo ocidental, que a expressão não se lhe ia alterar, trajada com o conteúdo dos dois sacos que lhe levaram a hora de almoço, entrou numa sala com ressonâncias de arena secular, ampla para o olhar, mas exígua para o movimento, de um lado, havia gente a arfar em cima de bicicletas, uns mais genuinamente, é certo, outros numa teatralidade mais para o interior do que para a envolvência, aquela, tal como a bicicleta onde estão sentados, que nunca irá alterar a paisagem do existir, do outro lado, sujeitos urravam agarrados a barras e halteres, assim que os pousavam, com um estrépito desmesurado, corriam para o espelho mais próximo como se afogados por oxigénio, aí chegados, em poses de uma artificialidade vizinha do absurdo, olhavam-se embevecidos, como se a imagem reflectida fosse o brinquedo ansiado, é curioso, não trocavam grandes impressões entre si, pelo contrário, tudo se concertava numa síntese de esgares, ruidosas expirações, e dos tais urros que atingiam, por vezes, um esplendor operático, após algum tempo, uma rapariga, também com idade para ser sua filha, acabou por vir ter com ela, não sabe porquê, talvez fosse uma impressão errónea, mas sentiu que a olhava como se fosse mais uma efémera passageira, talvez pela cassete monocórdica, talvez pelo cansaço que lhe percebeu nos gestos e no rosto, depois de um questionário escrito, hábitos, estado geral de saúde, outros aspectos que considerou estarem nos antípodas de uma sala com ressonâncias de arena secular, perguntou-lhe Muito bem! Para já, o que pretende? Nesse momento, pensou-se, procurou um ponto indeterminado, para não ter que sustentar o olhar da rapariga, e disse baixinho Não quero que me digam que estou mais gordinha…

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