Hoje cumpro uma promessa, há uns tempos
alguém me disse que esta personagem merecia umas linhas, na altura concordei,
porém, o tempo na sua marcha inclemente, e eu sempre com a cabeça noutros
projectos, até que “De
hoje não passa!”, pensei, mas de potências sem acto está o mundo cheio, tinha
de consubstanciar “De hoje não passa!”, sempre que falamos de alguém,
primeiramente expressamos apenas impressões, por aqui iniciarei a minha
narrativa, foi num desses lugares do hoje onde se cultiva a aparência, de forma
sublimada diz-se a saúde, a boa forma-física, tudo eufemismos para subtrair a vaidade,
por outras palavras, a verdade, os grilhões do politicamente-correcto há
quarenta-e-nove anos que asfixiam esta apatetada e acrítica sociedade, enfim,
como dizia, acedia-se a esse espaço por uma porta-de-correr, assim que se
fechou, logo a sua voz a preencher em pleno a sala, quem o conhecia não
estranhava aquela espontaneidade, o tom desgarrado da voz, todavia, foi a
naturalidade com que falava de aspectos tão pessoais, enquanto, usualmente, se
diz “Olá! Como está?”, ele, da entrada da sala, para um conhecido, “Ó
filha! Nem imaginas… Nem sei como aqui consegui chegar! Vamos lá ver se consigo
treinar alguma coisa de jeito. Não é que passei a noite toda na casa-de-banho…”,
bom, para poupar os caros leitores a certos pormenores, mais dos intestinos e
menos da literatura, este nosso protagonista sofreu um forte desarranjo-intestinal,
parece, segundo palavras do próprio, que a mãe lhe comprara um saco de gomas, como
ainda não recuperara totalmente de um desgosto amoroso, acompanhou o episódio
vespertino da telenovela adoçando o paladar, já que o sentir tão invernoso
estava, como resultado, uma madrugada de sobressalto entre a cama e o
sanitário, há dramas que, tarde ou cedo, acabam por bater à porta de todos, porém,
ainda não totalmente restabelecido, ali estava para aprimorar a sua
forma-física, o que mais ressaltava da sua figura era a exuberante fita na
cabeça, um flagrante anacronismo que, de certa forma, me fez a infância
sentar-se a meu lado, figuras com Bjorn Borg, Leroy Johnson de “Fama”, em
verdade, nunca fui muito apreciador da série, eu e a dança não somos muito
próximos, no entanto, havia quem, de forma insistente, o chamasse de “Hello
Kitty”, tinha uma vaga ideia da boneca, talvez concordasse pelos trejeitos
efeminados, como a infância ainda se mantinha sentada a meu lado, resistia ao
baptismo, a boneca japonesa não tinha uma fita, mas sim um laço, questões de
fundo que não devem ser descuradas, a insistência foi tanta, e como eu já
baptizara tantas personagens, acabei por ceder, embora, mais à frente, acabasse
por rebaptizar de forma eloquente, como quase
sempre acontece nestes casos, a figura materna é prevalecente, vivia
somente com esta, trabalhava na frutaria do bairro, era comum queixar-se,
naquele tom desgarrado, das clientes mais chatas, “Já fartinho dela, só lhe
disse: Ó filha, se não quiser levar a fruta, alguém leva”, “É com cada uma que
uma pessoa atura!”, “Ora vejam só esta minha vida!”, mas havia uma sombra por partir do seu rosto, pois, o tal
desgosto amoroso, certa tarde queixava-se de que esse namorado era ligeiramente
agressivo e impetuoso, “Ó filha, até já me deixou com marcas…”, isto,
como é óbvio, naquele tom desgarrado, para quem quisesse ouvir, a sua obsessão,
na altura, junto do instrutor, era com os glúteos, a consternação e mal-estar
do profissional, a questões como: “Diga-me lá os exercícios para melhorar
os glúteos? Não acha que estou com o rabo descaído?”, por demais evidentes,
só a nossa personagem não se apercebia, talvez, na sua fértil imaginação,
pensasse que, melhorando essa zona do corpo, o namorado regressasse para junto
de si, e assim, quem sabe, acabassem juntos, de mão dada, a assistir à telenovela, enquanto partilhavam um saco de
gomas, e no caso de ele ficar ligeiramente agressivo ou impetuoso, só lhe diria:
“Ó filha, abre lá boquinha e saboreia esta goma, para agressividades já me
chegam as velhas pindéricas que aturo todos os dias.”
Pedro de Sá
(10/07/23)
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