Encostada à parede, cruza os braços,
olhar no soalho, o pé direito num movimento de qualquer coisa, talvez por aí
vagueie o seu pensar, os pais e a irmã já sentados à mesa, ela ainda por ali,
enredada naquele movimento sem partida nem chegada, que lhe permite, por
enquanto, subtrair-se daqueles olhares que a aguardam para renovar azedume e
discordância, desde o seu regresso apenas aqueles espelhos, afinal, não se
trata de um regressar, mas sim de uma paragem, pois só regressamos onde nos
esperam, por fim, resolve entrar e sentar-se, a conversa, entre eles,
interrompe-se, o sublinhar do vazio à estrangeira recém-chegada, ela a ignorar,
a servir-se na espontaneidade do possível, lentamente, a refeição recupera o
seu fluir, a comida sabe-lhe a cinzento, mas cumpre com os imperativos da
sobrevivência, sempre do lado de cá de um porquê,
e a saber que, dois anos antes, naquela mesma cozinha, diminuta, cerca de cinco
metros de comprimento por dois de largura, felizmente que a mesa retráctil, os
electrodomésticos da vida moderna a impossibilitarem o assomar à janela, mas
poucos desejam contemplar o prédio em frente, ou a sua sombra, como sucede
todas as tardes, no entanto, havia que arranjar um lugar para as máquinas, uma
exigência da mãe (Não pensem que vou
continuar a ser vossa criada!) quando para ali foram viver, mas regressemos
àqueles dois anos antes, quando ela anunciou que ia morar com o namorado,
naquela mesma cozinha, os espelhos, nessa noite, espantados, apreensivos, na
procura, possível, de lhe apresentar outro horizonte, ouviu-se, várias vezes,
por ali (Nada é certo nestes dias. Espera
mais um pouco. Não tens nenhuma garantia), porém, ela era cansaço, daquele
terceiro andar sem elevador, do permanente cheiro bolorento nas escadas,
daquela decoração de subúrbio que se espraiava a cada minudência daquele lar,
das noites boquiabertas de telenovelas e demais boçalidades, de partilhar com a
irmã o mesmo espaço de sonhos e intimidades, do desespero das manhãs por uma só
casa de banho, e, sim, aquela cozinha com horizontes de roncos mecânicos e movimentos
circulares, no decorrer da tarde, ela e o namorado naquela varanda sobre o mar,
a conjugarem respirares compassados, a vertigem dos sentidos, e a liberdade de
serem, ele, por fim, a convidá-la a trocar horizontes, ela incrédula, de roncos
mecânicos e movimentos circulares, do prédio em frente e da sua sombra, como
sucede todas as tardes, à lonjura possível de um olhar que procura compreender
o demasiado azul de um horizonte, na manhã seguinte, as malas entraram primeiro
que ela, o horizonte da varanda ainda num alaranjado, ele feliz, ela, apesar de
tudo, sempre num receio (Achas que
consegues? Não é demasiado?), um abraço sorridente a sossegá-la, afinal, o
negócio imobiliário permitia estes horizontes, e que ela concluísse o curso,
parece que só faltavam seis meses, desde que as malas ali entraram, ela cada
vez mais renitente em visitar um certo terceiro andar, ele também não a
incentivava, talvez no receio de que trouxesse algum vestígio daquela decoração
de subúrbio, tudo se resumia a escassas frases trocadas por telemóvel, enquanto
punha mudanças, entre o acelerar e o travar, ou à medida que empurrava um
carrinho metálico, por entre filas de detergentes ou de cereais, até que, certa
noite, já o horizonte líquido em prata, ele com garrafas vazias à volta, uma
carta aberta sobre a mesa de centro, em vidro, nada de subúrbio por ali, tudo
muito central, ela, por essa altura, já ajudava com o mínimo que ganhava na
loja do centro comercial, com sofreguidão, e simultâneo receio, precipita-se
para a carta, só percorreu aquelas linhas uma vez, sim, foi o suficiente, para
perceber que havia negócios, no inquietante destes dias, com um único e
possível horizonte de sombras, ele nem se levantou, apenas lhe disse que,
apesar de tudo, ainda tinha alguns pertences familiares para vender, que…, ela
já não ouviu, limitou-se a fazer as malas, nessa noite não se lembra da leveza
embalada e mitigadora do sono, ele ficou pela sala, na derrota do sofá, na
manhã seguinte, curiosamente, ela saiu à frente das malas, talvez a cabeça
caminhasse ao contrário, sim, quem sabe se este não é o principal problema da
vida…
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.