Livros do Escritor

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terça-feira, 22 de março de 2022

Um sonho esquecido na madrugada


 

Encostada à parede, cruza os braços, olhar no soalho, o pé direito num movimento de qualquer coisa, talvez por aí vagueie o seu pensar, os pais e a irmã já sentados à mesa, ela ainda por ali, enredada naquele movimento sem partida nem chegada, que lhe permite, por enquanto, subtrair-se daqueles olhares que a aguardam para renovar azedume e discordância, desde o seu regresso apenas aqueles espelhos, afinal, não se trata de um regressar, mas sim de uma paragem, pois só regressamos onde nos esperam, por fim, resolve entrar e sentar-se, a conversa, entre eles, interrompe-se, o sublinhar do vazio à estrangeira recém-chegada, ela a ignorar, a servir-se na espontaneidade do possível, lentamente, a refeição recupera o seu fluir, a comida sabe-lhe a cinzento, mas cumpre com os imperativos da sobrevivência, sempre do lado de cá de um porquê, e a saber que, dois anos antes, naquela mesma cozinha, diminuta, cerca de cinco metros de comprimento por dois de largura, felizmente que a mesa retráctil, os electrodomésticos da vida moderna a impossibilitarem o assomar à janela, mas poucos desejam contemplar o prédio em frente, ou a sua sombra, como sucede todas as tardes, no entanto, havia que arranjar um lugar para as máquinas, uma exigência da mãe (Não pensem que vou continuar a ser vossa criada!) quando para ali foram viver, mas regressemos àqueles dois anos antes, quando ela anunciou que ia morar com o namorado, naquela mesma cozinha, os espelhos, nessa noite, espantados, apreensivos, na procura, possível, de lhe apresentar outro horizonte, ouviu-se, várias vezes, por ali (Nada é certo nestes dias. Espera mais um pouco. Não tens nenhuma garantia), porém, ela era cansaço, daquele terceiro andar sem elevador, do permanente cheiro bolorento nas escadas, daquela decoração de subúrbio que se espraiava a cada minudência daquele lar, das noites boquiabertas de telenovelas e demais boçalidades, de partilhar com a irmã o mesmo espaço de sonhos e intimidades, do desespero das manhãs por uma só casa de banho, e, sim, aquela cozinha com horizontes de roncos mecânicos e movimentos circulares, no decorrer da tarde, ela e o namorado naquela varanda sobre o mar, a conjugarem respirares compassados, a vertigem dos sentidos, e a liberdade de serem, ele, por fim, a convidá-la a trocar horizontes, ela incrédula, de roncos mecânicos e movimentos circulares, do prédio em frente e da sua sombra, como sucede todas as tardes, à lonjura possível de um olhar que procura compreender o demasiado azul de um horizonte, na manhã seguinte, as malas entraram primeiro que ela, o horizonte da varanda ainda num alaranjado, ele feliz, ela, apesar de tudo, sempre num receio (Achas que consegues? Não é demasiado?), um abraço sorridente a sossegá-la, afinal, o negócio imobiliário permitia estes horizontes, e que ela concluísse o curso, parece que só faltavam seis meses, desde que as malas ali entraram, ela cada vez mais renitente em visitar um certo terceiro andar, ele também não a incentivava, talvez no receio de que trouxesse algum vestígio daquela decoração de subúrbio, tudo se resumia a escassas frases trocadas por telemóvel, enquanto punha mudanças, entre o acelerar e o travar, ou à medida que empurrava um carrinho metálico, por entre filas de detergentes ou de cereais, até que, certa noite, já o horizonte líquido em prata, ele com garrafas vazias à volta, uma carta aberta sobre a mesa de centro, em vidro, nada de subúrbio por ali, tudo muito central, ela, por essa altura, já ajudava com o mínimo que ganhava na loja do centro comercial, com sofreguidão, e simultâneo receio, precipita-se para a carta, só percorreu aquelas linhas uma vez, sim, foi o suficiente, para perceber que havia negócios, no inquietante destes dias, com um único e possível horizonte de sombras, ele nem se levantou, apenas lhe disse que, apesar de tudo, ainda tinha alguns pertences familiares para vender, que…, ela já não ouviu, limitou-se a fazer as malas, nessa noite não se lembra da leveza embalada e mitigadora do sono, ele ficou pela sala, na derrota do sofá, na manhã seguinte, curiosamente, ela saiu à frente das malas, talvez a cabeça caminhasse ao contrário, sim, quem sabe se este não é o principal problema da vida…


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