Livros do Escritor

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quinta-feira, 31 de março de 2022

A quem nos faz desaprender o tempo


 

Senta-se. Abre o livro. E esquece-se de si. Agora é um outro que olha vidas, e aprende-se nessa tentativa de as perceber. Páginas vão passando enquanto a luz muda à sua volta, ele agora num canto longínquo, sim, um pouco do livro já o habita, as páginas continuam o seu desfile, neste momento com a ajuda de um candeeiro, quando, de repente, uma questão, levanta-se, olha à sua volta, ouve barulho num canto da casa, pareceu-lhe de pratos, dirige-se para lá, segura o livro debaixo do braço, num esmero consciente, da porta pede apenas um pouco de tempo para a interrogação, mas o jantar, o cansaço, agora talheres, mais louça, ele a capitular, encaminha-se para outra divisão, dominada por uma voz estridente, acelerada, que repete a cada cinco segundos a palavra esférico, numa cadência obstinada, de novo, da porta pede apenas um pouco de tempo para a interrogação, um mais logo, mais logo, sem rosto, muito rápido, quase fugidio, baixa o olhar, vira costas, afasta-se, a voz estridente, acelerada, que repete a cada cinco segundos a palavra esférico, numa cadência obstinada, cada vez mais distante, segue pelo corredor além-horizontes, numa passada de navegante, chega a uma outra porta, dali a musicalidade de um som recentemente descoberto, por uns instantes a fruir daquela lenta melodia, com um compasso invernoso, da entrada pede, uma vez mais, um pouco de tempo para a interrogação, a musicalidade de um som recentemente descoberto interrompe-se, um olhar levanta-se até si, um gesto convida-o a aproximar-se, primeiro a surpresa, afinal talvez uma interrogação nasça na proporcionalidade de uma resposta, avança, sempre com o livro debaixo do braço, com um esmero redobrado, a mão autora do gesto a sorrir-lhe, ele a sentar-se, o livro ainda debaixo do braço, agora a pousá-lo no colo, o rosto apoiado nas mãos, a mão sorridente a retirar uns óculos, a segurá-los, uma voz segura e tranquila inicia uma história, ele a segui-la, sem esforço, com uma alegria de galope, muito para além daquele corredor, da manhã ida, da tarde finda, da noite chegada, lugares distantes visitados em passos de sonho, ele persiste em seguir os passos daquela melodia de uma segura tranquilidade, e abandona-se, sim, como é verdade, sempre que partimos algo sempre fica, talvez por nunca sermos um todo, por fim, a segura e tranquila melodia cessou, os óculos de regresso ao rosto, e uma questão a suspender-se Percebeste? Levanta-se, o livro sempre debaixo do braço, o esmero não se subtrai, olha à sua volta, compreende a noite embora não a tenha saudado, e responde Ainda vou precisar de algum tempo. A mão agradada com a resposta, talvez da janela de uma questão o horizonte da resposta, ele a deixar aquela divisão, o corredor agora mais pequeno, ainda há pouco num além-horizontes, mas só quem regressa compreende a realidade das coisas, de novo, a passar, agora em silêncio, pela porta da divisão dominada por uma voz estridente, acelerada, que repete a cada cinco segundos a palavra esférico, numa cadência obstinada, não se detém, nem vislumbres de tempo ou de interrogações, prossegue, livro em esmero debaixo do braço, uma vez mais, de um canto da casa, pratos, talheres, mais louça, não se detém, nem vislumbres de tempo ou de interrogações. Senta-se. Abre o livro. Lembra-se de respirar. E, então sim, esquece-se, uma vez mais, de si.

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