O toque da campainha indiciava qualquer coisa de desagradável. Sim, soava a obscuridade, talvez pela demasiada insistência, talvez pela cor das coisas, talvez pelo frio do mundo àquela hora. Resolve enfrentar o destino, uma decisão mecânica, sempre filha do momento, por outras palavras, órfã da reflexão, diante de si, uma jovem, com um colete a anunciar correspondência, ombro direito a ceder ao peso de contas, facturas, ainda mais facturas, de facto, aqueles ombros já não conhecem o peso das saudades, o seu olhar detecta, primeiro, uma pastilha mastigada numa cadência ostensiva, como se declarasse a insatisfação pelo trabalho desempenhado, ele num incómodo pela sonoridade do mastigar, ela a descascar o envelope, como se fruta suculenta, ele já a sentir uma amargura crescente, ao menos a pastilha, mastigada numa cadência ostensiva, a distraí-lo, embora o incomodasse, por fim, ela a estender-lhe uma primeira fatia, Tem de assinar aqui, ele a cumprir, a caminho uma segunda fatia, E ainda aqui. Tem o seu B.I., por favor? Responde num pudor silencioso, como se diante de uma autoridade: Só um momento, que vou buscar. Afinal, a carteira não está no bolso direito do casaco, pendurado na porta da sala, olhares de socorro em volta, mas os móveis indiferentes àqueles apelos emocionados, concentrados num sentir demasiado silencioso, talvez começassem a compreender o destino do tempo, ouve, agora, a caneta num tamborilar crescente na ombreira da porta, relembra os passos vespertinos, e compreende que nada há para relembrar na repetição, afinal, o vazio não tem rosto nem voz, num último momento, um assomo de memória, sim, sempre ali esteve, ao pé das chaves do carro, na mesa rectangular, de canto, baixinha, na esquina antes da cozinha, uma prenda de casamento, de uma prima sua, pega-lhe, retira o documento solicitado, apresenta-o, ela Com a sua licença, começa a apontar números e datas de validade, por fim, Aqui tem! Um resto de bom-dia, o mastigar dilui-se elevador abaixo, ele um pouco atordoado, com a carta na mão, curioso e hesitante com o conteúdo da mesma, embora, há algum tempo, uma voz lhe tenha anunciado as linhas impressas no interior daquele envelope timbrado. Olhou com desdém aquele rectângulo de papel antes de fechar a porta, sentou-se, abriu-o e retirou o conteúdo para uma rápida verificação. Sim, era o que esperava. Embora, em verdade, nunca estejamos preparados para o que esperamos. Quanto mais para… E agora? Antes de sair, ela, baixa e pausadamente, profetizou-lhe cada frase impressa na folha desta manhã. Saíra há quanto? Cerca de dois meses e meio. Também numa manhã. Mais propriamente, numa manhã de Sábado, por volta das onze e meia, apenas a filha olhou para trás, numa incredulidade pela distância crescente do pai, o espanto a impedi-la de chorar, ele a seguir-lhes cada gesto, da entrada de casa, imóvel, calado, apenas um observador da acção alheia. Ou teria a consciência atirada por terra? Quando se deu a sua queda? Tudo começou em mais uma ida às compras. Costumavam abastecer-se no supermercado do bairro, a menos de duzentos metros de casa. A certa altura, ela: Vai já para a bicha, enquanto eu vou só buscar o arroz, ele obediente, a bicha sempre demasiada e imóvel, costumava procurar rostos conhecidos, mas à sua volta uma crescente estranha indiferença, já sabia que, ao arroz, somar-se-ia qualquer outra coisa, nisto, o seu olhar já na meta, a apreciar aquele rosto, novo ali, que diligentemente cumpre as suas funções, o uniforme, nela, com um brilho diferente, o laço, do pescoço, por exemplo, adquiria mesmo uma certa nobreza, o cabelo apanhado sobressaía-lhe a elegância do pescoço, como se mais distante da terra, os gestos ponderados e harmoniosos, um sorriso profissional embora doce, enquanto caminhava por estas paragens, tão distantes, mas a escassos metros, não ouviu a chegada do arroz ao carrinho das compras, a frase gasta destas ocasiões Acho que está tudo, a que se seguia fatalmente uma outra Enquanto aqui estás, vou só ali ver aquelas promoções, ele a regressar a um horizonte de elegância e nobreza, a sua vez mais próxima, já colocava as primeiras compras no balcão, quando é presenteado com um primeiro sorriso, profissional embora doce, as compras a correrem ao sabor de um rolar mecânico, as mais pesadas, ele, cavalheiro, a levantá-las, o sorriso, agora, mais próximo, ainda mais doce, ela a regressar, com uma camisola na mão, a questão sem idade, Já viste o preço? A resposta, de imediato, a seguir-se-lhe, sem lugar a réplica, Está dada! Nem se apercebeu da passagem da camisola, quanto mais da cor, absorto que estava naquele rosto, novo ali, de sorriso, para ele, apenas doce. Foi uma alegria estranha para ela, quando ele se ofereceu para ir às compras sozinho. Sim, uma alegria estranha… A esta, seguiram-se outras. Nas compras do mês, ela sempre presente. Nada de estranho. Porém, não se podia descuidar, sim, é um pressuposto feminino, e, em verdade, também masculino, até porque há sempre uma peça de vestuário, algures no mundo, à espera da mulher certa. Certo dia, à hora do almoço, telefonam-lhe da escola do filho, febre, vómitos, tem de vir buscá-lo, ela liga, de imediato, ao marido, que trabalha mais perto de casa, o telemóvel desligado, ela em estranheza de primeira vez, regressa pelo filho, da escola para o médico, no caminho, o carro do marido estacionado, ela a abrandar, parou mesmo atrás, olha a montra da pastelaria do seu lado direito, ele sentado a uma mesa, em sorrisos, para ela, apenas da saudade, tal a sua frescura, dedos entrelaçados numa mão feminina, extasiado com um sorriso doce e um pescoço nobre, ela siderada no interior do carro, a compreender, de súbito, que não olhava um estranho, mas um rosto do seu passado. Por quantas tardes de pastelarias não teve aquele mesmo rosto diante de si? Entre ela e a pastelaria, um abismo. Perante este: duas possibilidades: ela, claro, escolheu uma: e nem olhou para trás…
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