Livros do Escritor

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quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Em que dia perdi o tempo?


Caminha por um sonho. Agora, estuga o passo. Ainda mais. Talvez se queira perder, por inteiro, naquele território em que ainda é ela e simultaneamente uma outra coisa. De forma lenta, mas ainda tão longínqua, algo lateja em si, a passada a serenar, cada vez mais, cada vez mais, até se imobilizar, e, apesar de estender a mão para diante, sabe o malogro de tal gesto. Talvez pela extenuada repetição. Talvez por só conhecer o caminho de regresso. Talvez pelo inominável do que somos. Antes de abrir os olhos, já uma canseira pelo que ia encontrar. Um choro lateral, oriundo da outra cama, ali no quarto. Ela indiferente. Como se tudo, ali à sua volta, já um passado de uma outra vida, apesar da dor no baixo-ventre, como se uma queimadura, sim, os pontos recentes, o sofrimento que aprisiona uma memória, como é verdade: há memórias que só aportam no cais da dor… A mão, agora, esboça um gesto em direcção àquele latejar, mas, de novo, se suspende. Ouve a porta a abrir-se, uma cortina que se corre, aquele choro mais longe, vozes de madrugada ali ao lado, de novo, a cortina, passos que se aproximam, uma voz serena, como se lhe compreendesse o malogro do gesto iniciado há pouco, Então, como está? Tem dores? Vamos ter de mudar o penso, está bem? Ela a sorrir para o seu silêncio, os dois tão distantes daquele repentino aguaceiro de questões, mas o céu a persistir sobre a terra, Vamos, tem de reagir, daqui a umas horas, o dia nasce… Terá, de novo, a sua família por cá. Sabe, saíram tão preocupados. O seu marido, não sei se lhe devia dizer isto, mas cá vai, até teve de ser medicado. Coitado! Sentiu-se mal, teve uma tontura, o que vale é que foi logo socorrido. Enfim! E a vossa pequena, olhe, vou mas é calar-me… Mas você tem de reagir! O silêncio a levantar-se, a estender-lhe a mão, e os dois a regressar após o canto de uma cortina. O choro, a seu lado, cessara. Mas do corredor, ecoavam mais, como se gritos de desespero ao reconhecerem as arestas do aqui. Agora, chega-lhe a voz do pai, Vê lá se, desta vez, me dás um neto… Já me bastaram duas filhas e uma neta. Vê lá se, antes de partir, ainda tenho uma alegria… Um tolo desespero algures por entre as palavras. Ela a serenar aquele desespero, Não se preocupe, pai, não se preocupe. Enquanto os passos do pensar revisitam estas palavras, os seus dedos fincam uma ponta solta do lençol. Quando a médica, à vista daquelas imagens imperscrutáveis, como se uma emissão televisiva com acentuados problemas de sinal, se vira para ambos e diz Têm aqui um belo rapagão, o marido, aquém daquelas interrupções de sinal, apenas lhe sai um temeroso: Mas, tem a certeza? Quase inaudível, de tal forma entrecortado por uma emoção excessiva, a médica a serená-lo, Absoluta. Repito: vai ser pai de um belo rapaz. Ela o olhar o rosto do marido, sempre aquele esforço absurdo de uma barragem ao sentir, a segurar-lhe a mão, a sentir-lhe as falanges inquietas, sim, a corrente na sua busca imemorial por um destino salgado. Nessa noite, jantaram em casa dos pais dela. Houve brinde, claro que se discutiu o nome, até se falou da possível profissão, ela também notou, no rosto do pai, a efémera barragem que o marido ostentara à vista de uma emissão de sinal entrecortado. Caminhou muito por sonhos durante os meses seguintes. No aqui, as divergências com o nome. Mais com os pais, sempre aquele gosto por algo que só os habita a eles: no fundo, esse é o futuro de todos nós: olhar a vida de uma varanda muito nossa… Por fim, prevaleceu a sua escolha, pelo marido tudo estava bem, a irmã também reagia em sorrisos àquela animação familiar. A mão da natureza deu-se, por bem, em casa. Água e vida desde sempre expressões de um mesmo rosto, felizmente o marido por perto, o carro, em nervos, a caminho do seu destino, o serviço, àquela hora, com bastante disponibilidade, tudo se conjugava para… Ela pensa ter visto. Ou será que viu? Naquela sala, onde se esperava o ribombar da vida, apenas se escutou a voz do nada. Após a ancestral odisseia feminina de alimentar a terra, assim que uma voz, Só um último esforço, já o temos, um desespero desesperançado turvou rostos e gestos. E sim, ela terá visto. Acordou depois. Apenas isso. Para quê quantificar quando o sentido já não é? Um médico abordou-a e procurou emitir frases que ela já sabia por uma outra linguagem. A junção da vida entre dois seres não permitiu que um respirasse. Décadas depois, ela a meio da noite, em sobressalto, com a imagem (Ela pensa ter visto. Ou será que viu?) do que seria o lugar à vida em volta de um pescocito. Sim, mantiveram-se juntos. Nesses sobressaltos da madrugada, ela Sabes que dia é hoje? Ele apenas Dorme. Amanhã temos de trabalhar. Sabes que horas são? Ela, de facto, nestes instantes desconhecia o tempo. Porque o sentido deixara de ser. Não valia a pena insistir com ele. Deixava-o dormir. Não voltaram a tentar. Sim, compreende-se, o sentido mudara de lugar. Entretanto, o pai também embarcara na viagem da noite. Nesses momentos, apenas as falanges e uma ponta do lençol. Há lugares onde o sentido não se pode esconder.

 

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