Caminha por um sonho. Agora, estuga o
passo. Ainda mais. Talvez se queira perder, por inteiro, naquele território em
que ainda é ela e simultaneamente uma outra coisa. De forma lenta, mas ainda
tão longínqua, algo lateja em si, a passada a serenar, cada vez mais, cada vez
mais, até se imobilizar, e, apesar de estender a mão para diante, sabe o
malogro de tal gesto. Talvez pela extenuada repetição. Talvez por só conhecer o
caminho de regresso. Talvez pelo inominável do que somos. Antes de abrir os
olhos, já uma canseira pelo que ia encontrar. Um choro lateral, oriundo da
outra cama, ali no quarto. Ela indiferente. Como se tudo, ali à sua volta, já
um passado de uma outra vida, apesar da dor no baixo-ventre, como se uma
queimadura, sim, os pontos recentes, o sofrimento que aprisiona uma memória,
como é verdade: há memórias que só aportam no cais da dor… A mão, agora, esboça
um gesto em direcção àquele latejar, mas, de novo, se suspende. Ouve a porta a
abrir-se, uma cortina que se corre, aquele choro mais longe, vozes de madrugada
ali ao lado, de novo, a cortina, passos que se aproximam, uma voz serena, como
se lhe compreendesse o malogro do gesto iniciado há pouco, Então, como está? Tem dores? Vamos ter de mudar o penso, está bem? Ela
a sorrir para o seu silêncio, os dois tão distantes daquele repentino aguaceiro
de questões, mas o céu a persistir sobre a terra, Vamos, tem de reagir, daqui a umas horas, o dia nasce… Terá, de novo, a
sua família por cá. Sabe, saíram tão preocupados. O seu marido, não sei se lhe
devia dizer isto, mas cá vai, até teve de ser medicado. Coitado! Sentiu-se mal,
teve uma tontura, o que vale é que foi logo socorrido. Enfim! E a vossa
pequena, olhe, vou mas é calar-me… Mas você tem de reagir! O silêncio a
levantar-se, a estender-lhe a mão, e os dois a regressar após o canto de uma
cortina. O choro, a seu lado, cessara. Mas do corredor, ecoavam mais, como se
gritos de desespero ao reconhecerem as arestas do aqui. Agora, chega-lhe a voz
do pai, Vê lá se, desta vez, me dás um
neto… Já me bastaram duas filhas e uma neta. Vê lá se, antes de partir, ainda
tenho uma alegria… Um tolo desespero algures por entre as palavras. Ela a
serenar aquele desespero, Não se
preocupe, pai, não se preocupe. Enquanto os passos do pensar revisitam
estas palavras, os seus dedos fincam uma ponta solta do lençol. Quando a médica,
à vista daquelas imagens imperscrutáveis, como se uma emissão televisiva com
acentuados problemas de sinal, se vira para ambos e diz Têm aqui um belo rapagão, o marido, aquém daquelas interrupções de
sinal, apenas lhe sai um temeroso: Mas,
tem a certeza? Quase inaudível, de tal forma entrecortado por uma emoção
excessiva, a médica a serená-lo, Absoluta.
Repito: vai ser pai de um belo rapaz. Ela o olhar o rosto do marido, sempre
aquele esforço absurdo de uma barragem ao sentir, a segurar-lhe a mão, a
sentir-lhe as falanges inquietas, sim, a corrente na sua busca imemorial por um
destino salgado. Nessa noite, jantaram em casa dos pais dela. Houve brinde,
claro que se discutiu o nome, até se falou da possível profissão, ela também
notou, no rosto do pai, a efémera barragem que o marido ostentara à vista de
uma emissão de sinal entrecortado. Caminhou muito por sonhos durante os meses
seguintes. No aqui, as divergências com o nome. Mais com os pais, sempre aquele
gosto por algo que só os habita a eles: no fundo, esse é o futuro de todos nós:
olhar a vida de uma varanda muito nossa… Por fim, prevaleceu a sua escolha,
pelo marido tudo estava bem, a irmã também reagia em sorrisos àquela animação
familiar. A mão da natureza deu-se, por bem, em casa. Água e vida desde sempre
expressões de um mesmo rosto, felizmente o marido por perto, o carro, em
nervos, a caminho do seu destino, o serviço, àquela hora, com bastante
disponibilidade, tudo se conjugava para… Ela pensa ter visto. Ou será que viu?
Naquela sala, onde se esperava o ribombar da vida, apenas se escutou a voz do
nada. Após a ancestral odisseia feminina de alimentar a terra, assim que uma
voz, Só um último esforço, já o temos, um
desespero desesperançado turvou rostos e gestos. E sim, ela terá visto. Acordou
depois. Apenas isso. Para quê quantificar quando o sentido já não é? Um médico
abordou-a e procurou emitir frases que ela já sabia por uma outra linguagem. A junção da vida entre dois seres não
permitiu que um respirasse. Décadas depois, ela a meio da noite, em
sobressalto, com a imagem (Ela pensa ter visto. Ou será que viu?) do que seria
o lugar à vida em volta de um pescocito. Sim, mantiveram-se juntos. Nesses
sobressaltos da madrugada, ela Sabes que
dia é hoje? Ele apenas Dorme. Amanhã
temos de trabalhar. Sabes que horas são? Ela, de facto, nestes instantes
desconhecia o tempo. Porque o sentido deixara de ser. Não valia a pena insistir
com ele. Deixava-o dormir. Não voltaram a tentar. Sim, compreende-se, o sentido
mudara de lugar. Entretanto, o pai também embarcara na viagem da noite. Nesses
momentos, apenas as falanges e uma ponta do lençol. Há lugares onde o sentido
não se pode esconder.
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