Uma fotografia é um relógio sem ponteiros
Chegou o dia. Afinal, tudo acaba por
chegar. O tempo é um rio sem barragens. Mesmo quando já não o esperamos, algo
aporta na margem de nós. Por regra, sempre um escolho do passado, que olhamos
num anacronismo indisfarçável, como se uma peça de vestuário que há muito já
não nos serve. Esta é uma das ironias da vida: na praia da nossa desolação
apenas despojos anacrónicos do que fomos… Sempre o passado. Nunca uma luz a
anunciar o amanhã. Ele a olhar o calendário, numa incredulidade singular.
Agora, a levantar-se, uma mão, encostada à parede, a firmar o pensamento, por
fim, decide-se, não há muito mais que fazer, sim, é isso, terá que optar por
aí, que outras possibilidades lhe restam? Fecha a porta decididamente, e estuga
o passo rumo ao destino do seu pensar. Àquela hora da manhã, a circulação é
ligeira nos corredores largos, ele a empurrar um veículo metálico, de quatro
rodas, que teima, numa estranha obstinação, em ir de encontro às prateleiras,
como se lhe fosse interdita uma marcha frontal, apenas a ser depósito de
sobrevivências, dois litros de leite, duas latas de atum, uma lata de
feijão-frade, um dia do calendário vencido, por fim, o corredor que o fizera
sair de casa, olha apenas os frascos, nem perde tempo com os números, que
desaprendera de contar, à medida que se subtraiam jantares, despensa com
horizontes de enlatados, as filas mensais por um carimbo, onde revia os
ex-colegas, sempre num pudor de gestos e saudações, porque o contexto outro,
ali impressos, desenrosca, um a um, a tampa, sente-lhes a fragrância, por fim,
decide-se, num equilíbrio entre a beleza externa e o aroma interior,
encaminha-se para a caixa, antes, despe o casaco de forma a obnubilar um aroma
de outras paragens, sente que a rapariga da caixa lança um olhar compassivo à
vista daqueles oásis, personificados em dois litros de leite, duas latas de
atum, uma lata de feijão-frade, perdidos naquele emaranhado metálico deserto,
retira, numa lentidão demasiado teatral, os oásis, avança, o casaco ali
depositado afigura-se-lhe de uma obscenidade gritante, nem ouve o Bom dia cansado da rapariga, nem repara
naqueles gestos demasiado mecânicos para provirem de um ser-humano, talvez ela
nem reparasse no casaco, talvez estivesse demasiado ensonada, por uma noite de
estudo, certamente quer recuperar a sua humanidade, ou talvez uma maternidade
indesejada, uma noite de cólicas e gritos, o sono um horizonte longínquo, ou
talvez reparasse no casaco, mas, ao mesmo tempo, compreendesse, quantos casacos
não serviram para lhe calar aquela voz faminta? Resolve, com um sorriso,
aquietar aquele olhar assustado. Ele incrédulo, perante a serenidade da
rapariga. Ela anuncia-lhe o valor a pagar, ele a revirar os bolsos, bastava-lhe
moedas, há muito que se familiarizara com estas. Afasta-se, mas antes retribui
um sorriso à rapariga, como se de um agradecimento se tratasse, não houve mais
palavras, sim, eram, de todo, excedentárias. Quando regressou a casa, já de
casaco vestido, ela já havia chegado. Estava na cozinha, a arrumar os pratos no
armário de cima. Não se apercebera que ele entrara. Pelos seus gestos,
percebeu-lhe o cansaço. Não tanto pelos gestos. Foi mais pela postura dos
ombros, havia um grito contido de uma capitulação iminente… Permaneceu, por uns
instantes, que sempre demasiado tarde percebemos escassos, a observá-la. A
graciosidade de gestos de outrora cedeu lugar a uma eficácia sapiente, no
fundo, talvez a existência seja isso: a aprendizagem da lentidão… Ela também
lhe faz companhia na fila mensal por um carimbo. Trocara uma máquina de
escrever por uma esfregona e panos do pó. E como lhes agradece! Lamenta ainda
só ter acumulado a limpeza de três lares. Felizmente todos nas redondezas.
Hoje, da parte da tarde, vai renovar o seu anúncio no supermercado. Mas, antes
de tudo isso, ele tem de lhe dizer algo. Aproxima-se dela, coloca-lhe as mãos
nos ombros, ela sorri, há muito que lhe notara a presença – não fosse a mulher
a mãe do homem –, e diz-lhe, num murmúrio, Parabéns,
enquanto lhe deposita um aroma de outras paragens nas mãos. O olhar dela
oscila entre a frágil delicadeza daquele frasco e as cores demasiado ostensivas
dos enlatados. Vira-se para ele. Durante uns segundos, com aroma a eternidade,
olham-se. Uma vez mais, e pela segunda vez nesse dia, ele compreende o carácter
excedentário das palavras. Por fim, ela abraça-o de uma forma que só ela é
capaz de fazer – um abraço que o compreende. Nada foi dito. Mais tarde, nesse
dia, ele apercebeu-se de que uma lágrima ficara depositada no ombro do seu
casaco. Admirou-lhe o equilíbrio entre a beleza externa e o aroma interior.
Nessa noite, saíram para passear de mão dada. Há muito que não o faziam. Ele
estava feliz. Ela também. Tinha a certeza disso. Voltaria a fazer tudo de novo.
Sim, sem dúvida. Quantas vezes a vida oferece-nos uma certeza eivada com uma fragrância
de outras paragens?
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