Ele senta-se a seu lado. Ela
permanece impassível, a olhar em frente, de vez em quando a cabeça oscila, como
se uma idade de meses, mas não, talvez poucos meses para deixar de ter uma
idade, e apenas duas datas, ele olha-a com um carinho preocupado, recosta-se no
sofá, pega no jornal, ela com a televisão, mas talvez num qualquer outro lugar,
o gato insinua-se pela porta da sala, num silêncio suave aproxima-se, salta
para o colo dela, mas sempre a televisão, talvez nem isso, uma qualquer outra
coisa, o gato, com o movimento, a descair-lhe a colcha do colo, ele pousa o
jornal, antes tem o cuidado de o dobrar, levanta-se, apanha a colcha, e, na
ternura singular de um gesto, devolve-a ao seu regaço, regressa ao lugar, a
televisão a debitar anúncios, há muito que ele desistira daquele rectângulo
hipnotizante, costumava dizer-lhe, antes de ela ser uma ilha, Dali nada de bom… Ao menos o jornal
forçava-o a decifrar símbolos linguísticos, sempre era um exercício, de vez em
quando, vira-se e diz-lhe Lembras-te de
quando… por uma notícia, uma fotografia, uma simples alusão, afinal, a
memória é uma velha fonte do verbo, mas ela permanece de olhar vítreo de quem
não vê, mas se olha. Quando se tornou numa ilha? Demorou o seu tempo. O tempo
das águas a cercarem… Ele, de início, aquém deste dilúvio. Tudo começou, apesar
da anunciada tempestade, numa manhã de Verão, ao sair do café lá do bairro, ela
a ir contra a porta de vidro, ele a censurar-lhe a distracção, apesar do
ferimento evidente, a ampará-la até casa, tudo a suceder demasiado depressa,
sim, num repente, o curso da vida leva-nos sem lugar a questões, ele a atribuir
a apatia posterior ao embate, depois ela regressou, embora as mãos a traíssem,
naquela altura já uma península, ele a não entender o avanço irreversível das
águas, talvez por ainda circular, apesar da exiguidade do acesso, até ao seu
encontro, certo serão, após as notícias, surgiu-lhe o primeiro vislumbre de
água no caminho, indignava-se ele com mais um extenuado aumento de qualquer
complemento ao existir, olhava-a enquanto suspendia a questão Sabes do que é que estes tipos precisavam?,
e, neste preciso instante, algo se fragmentou no seu interior, ao contemplar
aquele olhar estranho, a seu lado, de quem não vê, mas se olha. Ainda insistiu Mas, estás a ouvir-me? balbuciado num
terror espantado de quem percebe, de repente, a alteração da geografia a seus
pés. No final da viagem, ele teve de aprender a nova passada da sua
companheira, enquanto, simultaneamente, a guiava até à pousada final. Demorou
pouco até, por fim, se formar uma ilha. Da margem em frente, ele passou a
gritar para a insularidade: Lembras-te de
quando… O vento, apesar do eco, apenas um silêncio cantado de paragens
longínquas. Agora, no rectângulo iluminado, a luz por entre folhas, como se
quisesse pousar na terra com uma mensagem da distância. As ramagens a
dificultar-lhe o caminho, mas compreende-se a obstinação de cada veio luminoso.
Como se fosse da sua essência tanger o solo dos homens. Ele a olhá-la, a
sentir-lhe a serenidade no rosto face àquelas imagens, talvez… Ele dobra o
jornal, levanta-se, o gato deixa-a, num salto mudo, de novo a manta no chão,
senta-se a seu lado, olha-a num sorriso, enquanto lhe afasta uma madeixa caída,
sim, há sempre ramagens no caminho…
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