Lá fora parece que continua a vida. Ele, neste momento, deitado de costas na cama, olhos fechados, mas a tanto verem, numa, talvez última, tentativa de compreensão, enquanto a luz do mundo a alongar-se no soalho, como se abraçasse coisas antes de uma partida cansada de tão repetida. Imagens do que foi a passar diante dele, sim, hoje um passageiro da solidão a assistir, numa resignação incómoda, a um se sempre plural, mas pintado de pretérito. Quantas escolhas cabem numa vida? Talvez demasiadas, talvez escassas, para, numa manhã, diante de um espelho, uma questão subsistir, E se…? Um sim em vez de um não, aqui e ali um pouco mais de paciência, noutras alturas, pedia-se maturidade, assim talvez percebesse a companhia de Judas, e a compreensão do ouvir, no fundo, a única arte por todos apreciada, é verdade, como tudo poderia ser uma outra coisa. Bastava um gesto para outra vida. A singeleza de um movimento. Nada mais. Ele continua a rememorar, e compreende quantos outros silenciou em si. Aqui chegado, percebe a vida não como uma subida, porventura íngreme, mas sim como uma constante descida, e, para trás, apenas a sombra inexorável do passado, que lhe grita inclementemente Se… Hoje ostenta um olhar sábio de cão velho. Porém, jaz sob destroços de questões nunca respondidas: como gritos sem voz. Um frémito percorre-o como se lhe relembrasse a existência. Da janela percebe ainda o clamor da vida, pelo soalho a luz a encolher-se, enquanto o rosto da noite se eleva pelas alturas do sonho, mas ele persiste na memória, rio de águas traiçoeiras que o faz embater sempre nos mesmos escolhos. Pelo menos, já lhes sabe o gosto da dor.
O que diz um olhar? Um olhar tem o
verbo do tempo. Para compreendê-lo, nunca o instante, apenas a testa cansada do
viajante que, da lonjura, vê quanto de si ficou sob o pó dos caminhos. Ali
deitado, já não se importa com as portas que se lhe fecharam. Apenas o baque
longínquo resiste numa amargura obstinada. Uma porta a fechar-se fala sempre
mais alto do que aquela que se abre. Talvez por um início ser sempre temeroso,
e a conclusão, por vezes, precipitada. Ele, agora, com vozes no lugar de
rostos. Quase uma dor, tal a nitidez de algumas vozes. Como se diálogos
retomados. Emudecido diz-lhes Esperem!
Para quando? Agora sorrisos indulgentes, as vozes a cessarem, no seu lugar
apenas clareiras desoladas pelo que foi. Lá fora, já candeeiros a reflectir
débeis sombras, a natureza do regresso a cumprir-se, e tardes de infância,
tardes d´além-tempo, diante de si, há lugares onde sabe bem regressar, talvez
por não haver lugar ao arrependimento. E nessas tardes idas, embora agora tão
presentes, ele já não na cama, mas com uma bola nos pés, pendurado numa árvore
a olhar um horizonte tão aquém dos seus desejos, a sentir a expiração da terra
enquanto habilidades, na ponta de dedos, com berlindes, o primeiro tremor no
peito por um olhar em que se compreendeu só, sim, por aqui o arrependimento não
encontrou a porta de entrada. Isso deu-se um pouco mais tarde, quando o mundo
se começou a pintar de outras cores. Mas dessas tonalidades está ele cansado.
Daí os olhos fechados. Daí a sua fadiga. Daí o seu contínuo regresso, por um
rio, a um lugar d´além-tempo, onde a cor do sentir se sobrepunha à do pensar. E
onde a vida era apenas o momento: a bola rematada, a árvore subida, o monte
conquistado, e aquele olhar, onde se demorou pela primeira vez, com sabor a
horizonte, mas que lhe apresentou o Futuro. Percebeu as sombras, enquanto a
distância entre si e aqueles olhos. Desde esse momento, não lhe bastava rematar
uma bola, subir uma árvore, conquistar mais um monte… Algo mudara demasiado
depressa. No tempo de um olhar. Nada mais. Porque regressa, hoje, deitado de
costas na cama, olhos fechados, enquanto o rosto da noite se eleva pelas
alturas do sonho, a esse instante? Talvez para compreender o momento em que lhe
foi apresentado o Futuro. Talvez para se saber compreender a si. Talvez pelas
saudades de saber horizontes aquém dos seus desejos…
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