Hoje nada foi como havia sido. Não
houve batalhas com o relógio, nem pressas, nem aquelas corridas olímpicas e a
medalha do transporte desejado, tudo um torvelinho e, quando sombras extenuadas
na calçada, projectadas por sorumbáticos candeeiros, o mundo sobre os ombros. E
ainda os filhos para ir buscar à escola, a correr à sua frente, ela no espanto
daquela demasiada energia, como se a súbita liberdade fosse vitamínica, ela a
arrastar-se atrás deles, as advertências entrecortadas com a carência de
fôlego, a distância a crescer, por fim, um berro imobilizador. Segue-se a
janta, ele aparece uns minutos antes, não há perguntas, ela prefere-o entre
copos (talvez demasiados) e amigos, que de volta aos braços daquela, com rosto
de brisas e cintura de Verão, que o ausentou uns meses de casa. Sim, por ali
andou, ela chegou a recear… Mas o lar prevaleceu… Grande ilusão! No fundo, ela
conhece a verdade, mas soterrou-a para voltar a caminhar. Quantas verdades
jazem a nossos pés? Foi ela que se cansou. Afinal, por quanto tempo um rosto de
brisas contempla um olhar outonal? Por conseguinte, a cintura invernosa
reaprendeu os passos do lar. Assim que ouviu a chave, nessa noite, ela desligou
o candeeiro, encostou o rosto à almofada para lhe depositar a tristeza salgada,
fingiu-se adormecida, e sorriu. Ele deitou-se a seu lado, numa lentidão algures
entre o receio e a vergonha. Os dias seguintes pautaram-se por um silêncio de
reaprendizagem. Sim, ninguém se levanta em voz alta. Após umas semanas, e com
as brisas já pretéritas, por ali as coisas no seu lugar. Até que numa tarde,
ela encontra-o à mesa da cozinha, um envelope no chão, como se aquela brancura
rectangular encerrasse um grito, a olhar uma carta no abandono de quem já não
ouve amanhãs. A partir dali, passou a atrasar-se cada vez mais para a janta. Os
passos do lar faziam-se entre cantigas e tropeções. Por fim, num certo dia, um
fémur cedeu. No branco leito hospitalar, fez votos de abstinência. Ela, de
novo, em sorrisos, só o queria de regresso. Já ele se arrastava, entre o quarto
e a cozinha, compassado pelo gemido metálico das muletas, quando ela surge
inesperadamente para o almoço. Ele vira-se surpreso: Então? Mas a surpresa rapidamente desvanece-se-lhe do rosto,
perante aquela expressão de terror, de quem se sabe na despensa da vida, que
ela ostentava. Quase esqueceu as muletas para ir ao seu encontro. Ela demorou
na procura das palavras, sempre que os soluços permitiam, uma frase desaguava.
Estranhou as colegas à porta da fábrica, logo nessa manhã, havia encomendas anteriores
para finalizar, a cancela da entrada para baixo, não lhe passou despercebida,
como se aquele vermelho e branco, hoje, a ferissem de uma forma singular. Um
grito uníssono ecoava daquelas dezenas de gargantas (Deixem-nos trabalhar! Deixem-nos trabalhar!), ela acrescentou numa
surdina tímida, como se um eco para si (Temos
filhos… Temos filhos…). Não se recorda de ter regressado. Por vezes,
caminhamos de costas. Isto acontece quando não aceitamos o destino, e o pensar
foge dos movimentos. E agora?, foi a
questão de dias naquela casa. E agora?
Logo emergiu uma outra guerra com o relógio, nos dias seguintes. Parecia que os
ponteiros se haviam enferrujado, tal a relutância de movimentos. Sim, muitos
dias cabiam num dia. Familiarizou-se com diversas rotinas. Ele, com o tempo,
esquecia-se, cada vez mais, das muletas. Iam buscar os filhos juntos. Por
vezes, davam as mãos. Afinal, viviam a noite da vida. E, pelo menos, não se
queriam perder.
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