Livros do Escritor

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domingo, 20 de dezembro de 2020

O céu não tem lugar na terra



Hoje nada foi como havia sido. Não houve batalhas com o relógio, nem pressas, nem aquelas corridas olímpicas e a medalha do transporte desejado, tudo um torvelinho e, quando sombras extenuadas na calçada, projectadas por sorumbáticos candeeiros, o mundo sobre os ombros. E ainda os filhos para ir buscar à escola, a correr à sua frente, ela no espanto daquela demasiada energia, como se a súbita liberdade fosse vitamínica, ela a arrastar-se atrás deles, as advertências entrecortadas com a carência de fôlego, a distância a crescer, por fim, um berro imobilizador. Segue-se a janta, ele aparece uns minutos antes, não há perguntas, ela prefere-o entre copos (talvez demasiados) e amigos, que de volta aos braços daquela, com rosto de brisas e cintura de Verão, que o ausentou uns meses de casa. Sim, por ali andou, ela chegou a recear… Mas o lar prevaleceu… Grande ilusão! No fundo, ela conhece a verdade, mas soterrou-a para voltar a caminhar. Quantas verdades jazem a nossos pés? Foi ela que se cansou. Afinal, por quanto tempo um rosto de brisas contempla um olhar outonal? Por conseguinte, a cintura invernosa reaprendeu os passos do lar. Assim que ouviu a chave, nessa noite, ela desligou o candeeiro, encostou o rosto à almofada para lhe depositar a tristeza salgada, fingiu-se adormecida, e sorriu. Ele deitou-se a seu lado, numa lentidão algures entre o receio e a vergonha. Os dias seguintes pautaram-se por um silêncio de reaprendizagem. Sim, ninguém se levanta em voz alta. Após umas semanas, e com as brisas já pretéritas, por ali as coisas no seu lugar. Até que numa tarde, ela encontra-o à mesa da cozinha, um envelope no chão, como se aquela brancura rectangular encerrasse um grito, a olhar uma carta no abandono de quem já não ouve amanhãs. A partir dali, passou a atrasar-se cada vez mais para a janta. Os passos do lar faziam-se entre cantigas e tropeções. Por fim, num certo dia, um fémur cedeu. No branco leito hospitalar, fez votos de abstinência. Ela, de novo, em sorrisos, só o queria de regresso. Já ele se arrastava, entre o quarto e a cozinha, compassado pelo gemido metálico das muletas, quando ela surge inesperadamente para o almoço. Ele vira-se surpreso: Então? Mas a surpresa rapidamente desvanece-se-lhe do rosto, perante aquela expressão de terror, de quem se sabe na despensa da vida, que ela ostentava. Quase esqueceu as muletas para ir ao seu encontro. Ela demorou na procura das palavras, sempre que os soluços permitiam, uma frase desaguava. Estranhou as colegas à porta da fábrica, logo nessa manhã, havia encomendas anteriores para finalizar, a cancela da entrada para baixo, não lhe passou despercebida, como se aquele vermelho e branco, hoje, a ferissem de uma forma singular. Um grito uníssono ecoava daquelas dezenas de gargantas (Deixem-nos trabalhar! Deixem-nos trabalhar!), ela acrescentou numa surdina tímida, como se um eco para si (Temos filhos… Temos filhos…). Não se recorda de ter regressado. Por vezes, caminhamos de costas. Isto acontece quando não aceitamos o destino, e o pensar foge dos movimentos. E agora?, foi a questão de dias naquela casa. E agora? Logo emergiu uma outra guerra com o relógio, nos dias seguintes. Parecia que os ponteiros se haviam enferrujado, tal a relutância de movimentos. Sim, muitos dias cabiam num dia. Familiarizou-se com diversas rotinas. Ele, com o tempo, esquecia-se, cada vez mais, das muletas. Iam buscar os filhos juntos. Por vezes, davam as mãos. Afinal, viviam a noite da vida. E, pelo menos, não se queriam perder.


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