Livros do Escritor

Livros do Escritor

segunda-feira, 22 de janeiro de 2024


 

Aproximei-me pelo sentir, afastei-me pela razão!

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã

sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

A eternidade dura uma noite

 


Lembro-me de que eu estava em pé, ela sentada, naquele banco de madeira, engraçado, que rodeava uma árvore, não me perguntem qual, para além de pinheiros, eucaliptos, pouco mais, campo e cidade sempre tão distantes, ela insistia (Então, não queres ir?), na altura, estava com a hesitação, se fosse agora…, respondi-lhe (Queres mesmo ir?), a noite convidava ao diálogo, eu que gostava de noites assim, hoje desaprendi o diálogo, e a noite, e…, a questão diante e em mim (Então, não queres ir?), não compreendi o quanto queria, muitas vezes sabemos as coisas mas insistimos em soterrá-las, por cegueira, por estupidez, por preguiça de um pequeníssimo passo, creio que, acima de tudo, pelo temor de nos perdermos e afinal sabermo-nos um outro, ela com o luar no sorriso a responder-me Sim, claro, o que eu esperava por aquele sim e agora sabia-me perdido, tentei apresentar argumentos Mas é tão longe. Já viste… E dormimos onde? Teríamos de levar quanto dinheiro… Ela levanta-se, aproxima-se, o seu olhar mergulha no meu, Dormimos onde calhar. Revezamo-nos a conduzir. E, sabes muito bem, que temos dinheiro quanto baste, esperei tanto por um momento assim, escolher o amanhã, é tão raro isto acontecer na vida, talvez porque, na maior parte do tempo, seja a vida que está ao nosso leme, no entanto, há momentos em que nos escolhemos, eu compreendi, com a devida exactidão, que este seria um deles, inadvertidamente recuei um ou dois passos, aproveitei para inspirar o momento, receei que ela percebesse toda a minha hesitação, a noite estava doce, é a melhor forma que encontro para a traduzir, apetecia estar, são noites em que não se fala do amanhã, éramos só nós naquele jardim, do outro lado da rua, um casal com o cão, pelo enlevo que o quadrúpede lhes proporcionava percebia-se a lonjura de filhos, não sei se no tempo, não percebi se no espaço, de vez em quando, faróis acompanhados de roncos mecânicos feriam a doçura daquele estar, a artificialidade daquela luz repentina devolvia qualquer coisa de desagradável às sombras, como se a palavra amanhã caísse inopinadamente em cada conversa, mas o olhar dela mergulhado em mim afastava qualquer palavra caída para longe, insistia (Vamos?), cedi, nessa fase da nossa vida, é curioso, vemos as coisas de forma parcelar, porém, centramo-nos na essência das coisas, eu queria ir, se não tivesse de fazer uma última paragem, de uma outra forma, se tivéssemos partido já, naquele instante, do jardim, não lhe disse, como me arrependo, Gosto que me olhes assim, calamos tanto, acho que somos cemitérios de afectos, não é o sentir desencontrado do verbo, somos nós que o silenciamos por um não sei quê… Um não sei quê que também somos nós, e quantas vezes, nos tolhe, se não tivesse de fazer uma última paragem, de uma outra forma, se tivéssemos partido já, naquele instante, do jardim, por fim, disse-lhe Vamos lá, então… O então muito estúpido, com o seu quê arrastado, como se lhe fizesse um favor, não sei porquê, há coisas que colocamos nas frases, mas que não nos pertencem, logo ali intuí que o iria pagar (Vamos lá, então…), quando, por dentro, regozijava-me, eu face ao mundo, uma noite que não pesava o pensar, um prenúncio de viagem, ela a meu lado, e um destino por encontrar, antes de deixarmos o jardim, tratámos de pormenores, creio, no fundo, que ambos estávamos em fuga, eu sabia do que ela fugia, porém, ainda hoje desconheço do que fujo, ou talvez não, cansa tanto fugirmos de nós, foi mais ou menos aí que comecei a ter essa percepção, uma vez mais: nessa fase da nossa vida, é curioso, vemos as coisas de forma parcelar, porém, centramo-nos na essência das coisas… Cada um foi para o seu lar, mochilas, roupa, dinheiro, e houve qualquer coisa que... Bem sei que se não tivesse feito uma última paragem, de uma outra forma, se tivéssemos partido logo, naquele instante, do jardim, hoje seria um outro…

domingo, 14 de janeiro de 2024


- Ainda acreditas em Deus?

- Já acreditei mais…

in O lento esvoaçar das cortinas pela manhã

quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

E ainda consegues sorrir…

 



A ideia foi minha. Sim, sem qualquer dúvida. Há tanto que lhe falava daquele lugar, de como seria bom nós dois por ali, então lembrei-me de um piquenique, logo eu que nunca fui dado a esse tipo de coisa, refeição, para mim, sempre de garfo e faca e sentado à mesa, só de pensar no desconforto, para não falar da irritação dos insectos, que sempre encontram uma forma de entrar sem convite, acho que nunca estive em nenhum, ou talvez tenha estado, mas para além do alcance da minha memória, apenas imagens esparsas, e onde não há memória não há estar, uma excursão, um lugar religioso, acordar enquanto o mundo ainda se espreguiça, talvez o almoço sobre uma manta estendida no chão, o tacho do arroz envolto em folhas de jornal, sempre demasiado amarrotadas, nunca percebi a razão de o arroz e das notícias, mas também não questionei o porquê dessa estranhíssima ligação, rissóis, fatias de carne assada, os inevitáveis refrigerantes, garrafas de um impressionante verde-escuro com a alegria líquida dos homens no seu interior, eu igualmente aquém desse fascínio, ainda hoje me quedo nas faldas desse culto, à nossa volta, mais toalhas pelo chão, um edifício imponente, ao fundo de uma alameda, com uma cruz no topo, parecia tactear os céus como se para relembrar que aqui estamos, no ar um aroma a promessas, personalizadas em tremeluzentes, frágeis e ondulantes chamas que derramam a sua peculiar luz naquele espaço do sagrado, é curioso, uma vela ilumina mais as sombras, como se redesenhasse todo espaço em volta, num fascinante jogo em que tudo se suspende, até o próprio tempo, diante de nós, agora, um mundo verde, em lugares como este só nos resta questionar em que momento nos perdemos, vivemos apertados e tão longe das coisas, por vezes, pairamos sobre a vida em vez de a viver, ela, a meu lado, em silêncio, perde-se, fascinada, com a beleza em volta, gosto disso, sinal de sensibilidade, e diz-se tanto nesses momentos, não sei se já aqui estivera antes, também não lhe pergunto, aprendi há muito que trazer o passado ao presente só se for a serviço da verdade, de resto, só nostalgia ou azedume, por fim, chego onde queria, imobilizo o carro, e aponto para a direita, ela vira o rosto enquanto desce o vidro, já era Outono, não sei porquê, sempre pensei em morrer no Outono, há um prenúncio de fim nas coisas mas ainda não terminou, afinal, o Inverno ainda não bateu à porta, um prenúncio de fim nas coisas, gosto disso, parece que o Sentido está por momentos, fascinada, ela sai do carro e abraça o possível, em volta, com o olhar, sigo-a na discrição de quem finge contemplar, em verdade, é ela quem eu contemplo, a luz e sombras da tarde pelos seus cabelos, a boca ligeiramente entreaberta num espanto mudo à paisagem, como se verbalizasse algo para logo o silenciar, pára e vira-se para mim, aproximo-me, percebo-lhe a anuência pela minha escolha, regresso ao carro pelo cesto, de seguida, aponto o monte para onde vamos, falamos disto e daquilo à medida que subimos, achei curioso ela não me questionar como conhecera aquele lugar, eu lentamente a compreender que o silêncio grita tanto, quando ela me sustinha o olhar por vários segundos, percebo-lhe os passos pelos meus pensamentos, somos tão estranhos, se, naquele momento, me perguntassem qual a primeira frase que trocáramos, não saberia o que responder, de facto, eu já ali tinha estado antes, por duas ou três vezes, igualmente de tarde, mas hoje, não sei porquê, as águas do rio, lá em baixo, com um outro brilho, as folhas reflectem mais o céu e cantam de uma outra forma a passagem da brisa, o ar convida a ser, apenas, quando me sento já uma manta estendida no chão, porém, nem vestígios de um tacho de arroz envolto em folhas de jornal, sempre demasiado amarrotadas, nunca percebi a razão de o arroz e das notícias, mas também não questionei o porquê dessa estranhíssima ligação, nem de rissóis, fatias de carne assada, dos inevitáveis refrigerantes, de garrafas de um impressionante verde-escuro com a alegria líquida dos homens no seu interior, nada, nem vislumbre de um edifício imponente, ao fundo de uma alameda, com uma cruz no topo, que parecia tactear os céus como se para relembrar que aqui estamos, ela, ali sentada, concentrava tudo o que sou ou fui, sentei-me, se a minha memória guardar uma refeição será esta,  não sei do que falámos, não sei o que estava sobre a toalha, simplesmente falámo-nos, quando regressámos ao carro, de novo, em mim, aquele pensamento sempre pensei em morrer no Outono, a felicidade e a tragédia caminham pela mesma estrada, as folhas continuavam a cantar a brisa da tarde, as águas sussurravam a vinda da noite, como se em preparativos para espelhar as estrelas, o ar persistia no seu apelo a sermos, ela ali, a meu lado, a relembrar-me que sou, regressámos, a certa altura, perguntou-me Estás feliz? Não lhe respondo, por instantes, de novo aquele pensamento, sempre pensei em morrer no Outono, atravessa-me o espírito, reduzo a marcha, por ali ainda só nós, nunca antes me haviam feito tal pergunta (Estás feliz?), e era tão simples, tão curta, procurei palavras para lhe dizer que, bom, que, como hei-de dizer, que queria ali regressar com ela na Primavera.