Livros do Escritor

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segunda-feira, 18 de abril de 2022

Tudo é sempre uma outra coisa

 



Há dias que não queremos que amanheçam. Mas que nos acabam sempre por bater à porta. Como se sempre nos soubessem a morada. Pelos apressados passos exteriores, que se aproximavam num galope de fatalidade, amanheceu um indesejado. Eles ainda na distância de um sono, a campainha em gritos alados por uma tempestade próxima, começam a perceber-se, Estás a ouvir? Será que aconteceu alguma coisa? Um pé já no soalho, ela ainda Mas quem será? Que horas são? Ele já com os dois pés nos chinelos, a levantar-se, Vou ver quem é. Só espero que não seja brincadeira de miúdos ou engano. Nisto, ela também com um pé já amanhecido, ele a aproximar-se da porta de entrada, a estranhar a pluralidade de vozes no exterior, toques de campainha e pancadas demasiado firmes na porta, uma estranha sintonia dissonante, nada por ali de turvo ou clandestino, de súbito, ele no receio de se aproximar, como se temesse um qualquer desígnio há muito sufragado, encosta-se à parede, ela também já no corredor, neste momento a seu lado, a mão a passear-lhe pelos cabelos, num esforço sisífico por ocultar uma preocupação transparente na voz, O que se passa? Quem será…? Não vais ver…? Ele a deixar a parede, campainha e porta numa sintonia crescente, a multiplicidade de vozes mais próxima, a espreitar, do outro lado Se não abrir, arrombamos a porta, há derrotas que se limitam a dar-nos a mão e a conduzir-nos para longe da arena, como se nos aguardassem desde a noite dos tempos, e nós, num mutismo espantado, limitamo-nos a seguir-lhes os passos, como se compreendêssemos que há cálices que fatalmente temos de sorver, antes de abrir, ele olha-a, no meio do corredor, nem a luz acenderam, num desamparo de passeio à chuva, uma orfandade outonal traduz-se-lhe no olhar que cai, apesar de tudo com leveza, no soalho escurecido… Assim que começa a rodar a chave, as vozes exteriores cessam, como se inspirassem para redobrar as forças do ataque, por fim, a porta abre-se, diante dele surge um papel, acompanhado de uma voz firme (Leia!), só reparou no cabeçalho, Tribunal…, de seguida, avançam casa adentro, eles permaneceram nos pontos exactos onde estavam, como se padecessem de uma invisibilidade súbita, o sujeito que tinha o papel na mão, virou-se para eles Não querem proceder voluntariamente ao pagamento do crédito vencido dos cartões? Está aqui um representante do banco. Eles entreolham-se, enquanto ombros ascendem guindados por um desamparo excessivo, e dizem palavras impronunciadas Sim, queríamos pagar. Mas a fábrica fechou. O desemprego é menos do que ganhávamos. Agora, pelo atraso nos cartões, devemos o dobro. Isso não é justo. Sim, queríamos pagar, mas apenas o que devemos. Todavia, sabemos que aqui tal não é possível. Por isso, é que a polícia vos acompanha. Móveis começam a despir a casa, levados na indiferença de quem desconhece o momento, primeiro foram os sofás, o rosto dela a relembrar risos e serões, ele a acompanhá-la nesse passeio pelo ontem, a seguir, a televisão, cadeiras, aparador, quadros, o desfile parecia-lhes interminável, a mão dela a encontrar o porto da dele, aí repousa, viram costas ao presente, sim, olham o ontem, por vezes, na vida, é o que resta, talvez por aí ainda um sentido, certa tarde, após a pausa do almoço, cada um com o seu cheque de vencimento, a depositá-lo com um sorriso para o amanhã, do outro lado do balcão, um dedo a apontar-lhes para uma cartolina publicitária, até então invisível, talvez pelo excesso das cores, Já viram as vantagens do nosso visa? Oferece condições únicas! Além de vir acompanhado de múltiplos seguros no caso de…, e de… Quando regressam do ontem, compreendem o papel que lhes foi deixado. Uma folha A4 com a lista do saque. Muito pouco para o deserto que se lhes abriu. Ela, por fim, cede, e senta-se no chão. Num olhar sem tempo. Ele acompanha-a, e senta-se a seu lado. Assim ficam durante o necessário. Talvez até compreenderem que o respirar vive na casa do amanhã.

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