Há dias que não queremos que
amanheçam. Mas que nos acabam sempre por bater à porta. Como se sempre nos
soubessem a morada. Pelos apressados passos exteriores, que se aproximavam num
galope de fatalidade, amanheceu um indesejado. Eles ainda na distância de um
sono, a campainha em gritos alados por uma tempestade próxima, começam a
perceber-se, Estás a ouvir? Será que aconteceu alguma coisa? Um pé
já no soalho, ela ainda Mas quem será?
Que horas são? Ele já com os dois pés nos chinelos, a levantar-se, Vou ver quem é. Só espero que não seja
brincadeira de miúdos ou engano. Nisto, ela também com um pé já amanhecido,
ele a aproximar-se da porta de entrada, a estranhar a pluralidade de vozes no
exterior, toques de campainha e pancadas demasiado firmes na porta, uma
estranha sintonia dissonante, nada por ali de turvo ou clandestino, de súbito,
ele no receio de se aproximar, como se temesse um qualquer desígnio há muito
sufragado, encosta-se à parede, ela também já no corredor, neste momento a seu
lado, a mão a passear-lhe pelos cabelos, num esforço sisífico por ocultar uma
preocupação transparente na voz, O que se
passa? Quem será…? Não vais ver…? Ele a deixar a parede, campainha e porta
numa sintonia crescente, a multiplicidade de vozes mais próxima, a espreitar, do
outro lado Se não abrir, arrombamos a
porta, há derrotas que se limitam a dar-nos a mão e a conduzir-nos para
longe da arena, como se nos aguardassem desde a noite dos tempos, e nós, num
mutismo espantado, limitamo-nos a seguir-lhes os passos, como se compreendêssemos
que há cálices que fatalmente temos de sorver, antes de abrir, ele olha-a, no
meio do corredor, nem a luz acenderam, num desamparo de passeio à chuva, uma
orfandade outonal traduz-se-lhe no olhar que cai, apesar de tudo com leveza, no
soalho escurecido… Assim que começa a rodar a chave, as vozes exteriores
cessam, como se inspirassem para redobrar as forças do ataque, por fim, a porta
abre-se, diante dele surge um papel, acompanhado de uma voz firme (Leia!), só reparou no cabeçalho, Tribunal…, de seguida, avançam casa
adentro, eles permaneceram nos pontos exactos onde estavam, como se padecessem
de uma invisibilidade súbita, o sujeito que tinha o papel na mão, virou-se para
eles Não querem proceder voluntariamente
ao pagamento do crédito vencido dos cartões? Está aqui um representante do banco. Eles entreolham-se, enquanto
ombros ascendem guindados por um desamparo excessivo, e dizem palavras
impronunciadas Sim, queríamos pagar. Mas
a fábrica fechou. O desemprego é menos do que ganhávamos. Agora, pelo atraso
nos cartões, devemos o dobro. Isso não é justo. Sim, queríamos pagar, mas
apenas o que devemos. Todavia, sabemos que aqui tal não é possível. Por isso, é
que a polícia vos acompanha. Móveis começam a despir a casa, levados na
indiferença de quem desconhece o momento, primeiro foram os sofás, o rosto dela
a relembrar risos e serões, ele a acompanhá-la nesse passeio pelo ontem, a
seguir, a televisão, cadeiras, aparador, quadros, o desfile parecia-lhes
interminável, a mão dela a encontrar o porto da dele, aí repousa, viram costas
ao presente, sim, olham o ontem, por vezes, na vida, é o que resta, talvez por
aí ainda um sentido, certa tarde, após a pausa do almoço, cada um com o seu
cheque de vencimento, a depositá-lo com um sorriso para o amanhã, do outro lado
do balcão, um dedo a apontar-lhes para uma cartolina publicitária, até então
invisível, talvez pelo excesso das cores, Já
viram as vantagens do nosso visa? Oferece condições únicas! Além de vir
acompanhado de múltiplos seguros no caso de…, e de… Quando regressam do
ontem, compreendem o papel que lhes foi deixado. Uma folha A4 com a lista do
saque. Muito pouco para o deserto que se lhes abriu. Ela, por fim, cede, e
senta-se no chão. Num olhar sem tempo. Ele acompanha-a, e senta-se a seu lado. Assim
ficam durante o necessário. Talvez até compreenderem que o respirar vive na
casa do amanhã.
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