Estou… Sim, olá, está tudo bem? Cá vou andando… Esta perna, com este
tempo, já sabes como é. Olha, a que horas chega o miúdo? Não, não preciso nada
que me faça umas compras. É para me fazer uma coisa no computador. Sim, já
começo a ter alguma familiaridade com o abençoado aparelho. Não, não te
preocupes. Mas, afinal, a que horas chega o miúdo? Então, diz-lhe para passar
aqui pelo tio. Está bem, obrigado. Sim, está tudo bem com a alimentação. Adeus!
Por volta das oito,
a campainha. Ele, no seu passo entardecido, a caminho da porta. O sobrinho,
apesar da faculdade, sempre de pastilha na boca, um mastigar bovino, que não se
interrompe para saudar o tio, Olá, tio. A
minha mãe falou-me que precisa de uma cena com o seu pc… Ele no aquém da
sua ininteligibilidade, e uma questão a emergir: como comunicar com aquela
criatura? Apelou à sua experiência, embora de outros tempos e contextos, e lá
conseguiu transmitir-lhe o seu pedido. O rapaz, de início, numa mecânica de
autómato, como se a máquina uma extensão de si, lá deu andamento às pretensões
do tio, depois, talvez fosse uma mera impressão, mas parecia refrear um sorriso
no rosto, por fim, Aqui, neste ponto do
texto, no que procura, o que quer que eu escreva? O tio, algures entre o
constrangimento e o pudor, lá balbuciou: Terna,
sensível e honesta… O rapaz, de novo, com as teclas, agora, sem espaço no
semblante para sorrisos jocosos, talvez pelos adjectivos a memória da tia, por
fim, levantou-se, Já está! A partir deste
momento, atenção ao telemóvel. Hão-de começar a ligar-lhe. Dirigiu-se para
a porta, mas ambos sabiam que havia algo por dizer, antes de sair teve a
deferência de um compasso de tempo, o tio agradeceu o gesto, lá balbuciou novo
desejo: Inventa lá uma coisa para a tua
mãe. Uma avaria, enfim, tu lá sabes… É para ela não se preocupar indevidamente.
Desde que a tua tia partiu, percebes, não é? O que me custa mais são as noites.
Já tens idade para perceber estas coisas, não é verdade? Sabes, ninguém caminha
para novo. O sobrinho, de ombros encolhidos, parecia compreender, por fim, Não se preocupe. Algo sorriu nele,
afinal, talvez fosse possível vencer a passagem sempre demasiada dos dias. Um
dia o telemóvel, uma voz que cumpria, pelo menos, os dois primeiros adjectivos,
um jantar para se conhecerem, ele a renascer, porém, um receio indizível, a voz
talvez demasiado enérgica, como se da tarde enquanto a dele já no ocaso, mas lá
partiu à hora fixada, apesar da perna incómoda, e de um temor omnipresente de
realizar figuras quixotescas. Mas já não havia sentir nele, tudo em si ecoava.
Sim, desde aquela manhã, em que só ficou um respirar naquela casa. No longe das
vozes, percebeu a distância de mais de duas décadas. Mas avançou. Ali chegado,
não havia outra coisa a fazer. Pelo menos, por uma noite, ia ouvir outra coisa
que não ecos do seu pensar. Depois de estratégias defensivas, há quem lhe chame
formalismos, segue-se a fase do desvelo. Ela dizia-se separada há dois anos,
sem filhos, não, felizmente, não chegara a casar, o sujeito um possessivo
ausente, estranha conjugação, pensava ele, viveram juntos cerca de quatro anos,
no início sempre bem, mas depois… Como é estranho! Os inícios sempre tão bons,
mas depois… Ele observava-a, não lhe apreciou a dicção, mas havia nela um
encanto que o seduzia, sim, era um rosto que não o cansava. Nem todos os rostos
detêm este mérito. E ela falou, falou, ele longe, a percorrer-lhe o rosto, a
demorar-se no olhar, como se uma fonte que aquieta uma sede muito nossa, após o
jantar, um passeio, ele sem saber como, à porta do seu prédio, sentiu-se na
obrigação de convidá-la, o pretexto de uma bebida, embora, naquela casa, há
muito que garrafas só de água, ela cedeu, para seu espanto e desilusão, sim,
outros tempos e contextos, a perna, a esta hora já em descanso, hoje ainda em
movimento, a iniciar uma súplica dolorosa por repouso, ele a ignorá-la, assim
que entraram, ela solícita Vou preparar
qualquer coisinha para bebermos, ele nem a ouviu, sempre com a distância do
espanto, como se ali não ele, mas um outro. Reconheceu-se pelo canto insistente
do joelho. Estava no sofá, e o dia feria-lhe o rosto pela janela da sala. Ainda
demorou a compreender-se. Olhou à volta. Tudo parecia como sempre. Tentou
erguer-se, mas traiu-o uma considerável vertigem. Deixou-se estar. De onde
estava, começou a perceber ausências. Assim que se pôde erguer, iniciou a
contagem das partidas: carteira, objectos da tia, alguns electrodomésticos…
Estranhou a demora da ira. Acabou por não aparecer. Apesar de tudo, o serão
valeu a pena. Há quanto não se demorava num rosto? Agora, já não tem meio de
pedir ao sobrinho que lhe escreva: Terna,
sensível e honesta… Os dois primeiros ainda os confirmou, foi pena o último
não ter havido tempo. Talvez se, um dia, voltar a pedir ao sobrinho para
escrever algo, acrescente: Terna,
sensível e honesta… Mas fique mais um minutinho, por favor.
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