Livros do Escritor

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domingo, 23 de maio de 2021

Deixa-me falar-te um pouco de mim


A televisão com o noticiário, a debitar um qualquer aumento que apenas significa uma inquietante leveza nos bolsos, ambos a olhá-la após o garfo, indiferentes, antes ele ainda ruminava uns impropérios, agora nem isso, talvez os ombros não tenham mais por onde encolher. Almoçam, na mesa plástica, branca, daquelas mais apropriadas a um jardim, que nas lojas estão sempre sobre um tapete verde, numa imitação demasiado artificial, para soar verdadeira, de relva, as sobras do jantar vespertino. Terminada a refeição, ele ainda sentado, num também banco plástico, branco, sempre a televisão, ela a empurrar os restos dos pratos, com uma faca, para o lixo, à espera que ele encete um diálogo (Há quanto tempo não dialogam?), sem ser daquelas conversas que revelam sempre mais das coisas que de nós… E ela com tantas coisas em si! Agora, pratos, talheres, copos, já na máquina, olha-o à espera dele, mas sempre a televisão, como se fosse um convidado inesperado que nos merecesse uma total deferência. Limpa as mãos a um pano quadriculado, azul e branco, e sorri. Compraram-no numas férias, há demasiados anos, na Figueira da Foz, ainda passeavam de mão dada, ela a sorrir ao pano, agora pendurado num aplique plástico, num amarelo esboroado, quase a descolar da parede. Pega, de novo, no pano, como se nele o Verão passado na Figueira da Foz, recorda-se de que nesse ano deixaram um apartamentozito alugado, de duas assoalhadas, avançaram para casa própria, de três assoalhadas, é sempre uma conquista, férias de litoral, duas semanas de passeios, sim, de mão dada, por aquela marginal, ora coroada pelo sol, ora iluminada pela prata luar, mas sempre cantada pelas vagas, sentavam-se, após a praia, num banco, de gelado na mão, ela com a baunilha, ele adepto do chocolate, os ombros sempre irmanados, à noite também a marginal (quantas vezes a terão calcorreado?), de vez em quando um café, se a noite estival mais um gelado, um banco, estrelas imaginadas porque escurecidas pela maresia, e sempre o canto revoltado daquele Atlântico. Ela ainda se lembra da lojinha do pano. Situava-se numa rua pedonal, na segunda fila de prédios, vendia um pouco de tudo, pelo tecto, bolas de praia num excesso de cores penduradas em sacos de rede, pares de raquetas amarelas com uma bola laranja, baldes plásticos, com instrumentos de areia, onde talvez crianças depositassem não os sonhos do futuro mas as memórias do que foram – para se um dia se perderem… Pelo chão, havia de utensílios domésticos a protectores solares, de chinelos a vestidos, ela recorda-se de ter trazido algo mais. Ele, porém, indiferente ao pano. Ainda com as notícias. Olha-o. Nota-se-lhe, no aspecto, um descuido cuidado. Sim, aquele Verão foi há muito. Testemunha-o o pano. E não só. Ela sabe que ele teve os seus sonhos. Quantas vezes ele não a ouviu à primeira? Neste ponto, era como se soubesse que ele tem de ir a um determinado ponto, para depois voltar. Sim, após um Verão vem sempre um Inverno. Pelo menos, que subsista, no fim, a ternura, que mais não é que a linguagem nativa de um casal. Ela sabe que esse património resistiu à erosão de sonhos e de Invernos. Abre, agora, a janela para retirar a roupa do estendal. Sempre se colocou em bicos de pés. Mais um tique do que uma necessidade. Antes, ele aproximava-se por trás, num silêncio de surpresa, e abraçava-a. Assim, enlevados naquele aroma a roupa lavada, iluminados pela luz derramada por marquises vizinhas, cediam à ancestral natureza. Hoje basta-lhe saber que ele está por ali, a natureza cumpriu-se, sim, tudo tem um tempo menos o próprio tempo, talvez, quando ela entrar, com a bacia cheia de roupa, ele a retenha, delicadamente, por um pulso, e a convide para um gelado, porque lhe cheira a maresia, e, sentados num banco, de ombros irmanados, retire um objecto do bolso, e lhe sussurre ao ouvido: Como me podia esquecer…

 

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