A televisão com o noticiário, a
debitar um qualquer aumento que apenas significa uma inquietante leveza nos
bolsos, ambos a olhá-la após o garfo, indiferentes, antes ele ainda ruminava
uns impropérios, agora nem isso, talvez os ombros não tenham mais por onde
encolher. Almoçam, na mesa plástica, branca, daquelas mais apropriadas a um
jardim, que nas lojas estão sempre sobre um tapete verde, numa imitação
demasiado artificial, para soar verdadeira, de relva, as sobras do jantar
vespertino. Terminada a refeição, ele ainda sentado, num também banco plástico,
branco, sempre a televisão, ela a empurrar os restos dos pratos, com uma faca,
para o lixo, à espera que ele encete um diálogo (Há quanto tempo não
dialogam?), sem ser daquelas conversas que revelam sempre mais das coisas que
de nós… E ela com tantas coisas em si! Agora, pratos, talheres, copos, já na
máquina, olha-o à espera dele, mas sempre a televisão, como se fosse um
convidado inesperado que nos merecesse uma total deferência. Limpa as mãos a um
pano quadriculado, azul e branco, e sorri. Compraram-no numas férias, há
demasiados anos, na Figueira da Foz, ainda passeavam de mão dada, ela a sorrir
ao pano, agora pendurado num aplique plástico, num amarelo esboroado, quase a
descolar da parede. Pega, de novo, no pano, como se nele o Verão passado na
Figueira da Foz, recorda-se de que nesse ano deixaram um apartamentozito
alugado, de duas assoalhadas, avançaram para casa própria, de três assoalhadas,
é sempre uma conquista, férias de litoral, duas semanas de passeios, sim, de
mão dada, por aquela marginal, ora coroada pelo sol, ora iluminada pela prata
luar, mas sempre cantada pelas vagas, sentavam-se, após a praia, num banco, de
gelado na mão, ela com a baunilha, ele adepto do chocolate, os ombros sempre
irmanados, à noite também a marginal (quantas vezes a terão calcorreado?), de
vez em quando um café, se a noite estival mais um gelado, um banco, estrelas
imaginadas porque escurecidas pela maresia, e sempre o canto revoltado daquele
Atlântico. Ela ainda se lembra da lojinha do pano. Situava-se numa rua pedonal,
na segunda fila de prédios, vendia um pouco de tudo, pelo tecto, bolas de praia
num excesso de cores penduradas em sacos de rede, pares de raquetas amarelas
com uma bola laranja, baldes plásticos, com instrumentos de areia, onde talvez
crianças depositassem não os sonhos do futuro mas as memórias do que foram –
para se um dia se perderem… Pelo chão, havia de utensílios domésticos a
protectores solares, de chinelos a vestidos, ela recorda-se de ter trazido algo
mais. Ele, porém, indiferente ao pano. Ainda com as notícias. Olha-o.
Nota-se-lhe, no aspecto, um descuido cuidado. Sim, aquele Verão foi há muito.
Testemunha-o o pano. E não só. Ela sabe que ele teve os seus sonhos. Quantas
vezes ele não a ouviu à primeira? Neste ponto, era como se soubesse que ele tem
de ir a um determinado ponto, para depois voltar. Sim, após um Verão vem sempre
um Inverno. Pelo menos, que subsista, no fim, a ternura, que mais não é que a
linguagem nativa de um casal. Ela sabe que esse património resistiu à erosão de
sonhos e de Invernos. Abre, agora, a janela para retirar a roupa do estendal.
Sempre se colocou em bicos de pés. Mais um tique do que uma necessidade. Antes,
ele aproximava-se por trás, num silêncio de surpresa, e abraçava-a. Assim,
enlevados naquele aroma a roupa lavada, iluminados pela luz derramada por
marquises vizinhas, cediam à ancestral natureza. Hoje basta-lhe saber que ele
está por ali, a natureza cumpriu-se, sim, tudo tem um tempo menos o próprio
tempo, talvez, quando ela entrar, com a bacia cheia de roupa, ele a retenha,
delicadamente, por um pulso, e a convide para um gelado, porque lhe cheira a
maresia, e, sentados num banco, de ombros irmanados, retire um objecto do
bolso, e lhe sussurre ao ouvido: Como me
podia esquecer…
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