Lá
muito ao longe, entre os montes, o azul ondulante, eu aqui, na varanda, a
sentir o desamparo do momento, frases de há muito revisitam-me, hoje num
sem-sentido, promessas, apenas isso, um vento entardecido murmura-me
despedidas, o mundo num imenso adeus, eu a reflectir onde me perdi de mim, as
certezas, pois, as certezas, edifiquei-as em meu redor como se muralhas para a
vida, nem ruínas restam, tudo se desmoronou, num certo momento quis trazer
passado ao presente, de outra forma, a infância ao hoje, as mais solares
memórias de infância foram com os meus avós, lá longe, na aldeia, onde aprendi
a olhar horizontes, com o tempo, intensificaram-se, os horizontes, para mim,
habitante da cidade, num lugar lá atrás, os avós partiram, a porta da sua casa
fechou-se irreversivelmente, depois foi a porta da casa dos pais a fechar-se,
qualquer dia será a minha, porém, num certo momento, cresceu-me a urgência de
trazer passado ao presente, de outra forma, a infância ao hoje, foi num desses
enfadonhos fins-de-semana, saímos da inclemente rotina laboriosa para nos
confrontarmos com o vazio de sermos, escondia-me atrás do jornal, ela com a
roupa, e mais roupa, um casaco ainda, de repente, um anúncio prende-me a
atenção, publicitava a venda de uma casa de campo, rodeada por um quintal, duas
ou três árvores de fruto, perto de Lisboa, mas o que me fascinou foi o nome do
lugar (“Almoinhas Velhas”), encantatório, Almoinhas Velhas, o tédio domingueiro
estava vencido, fomos vê-la, era uma casa só com piso térreo, rústica, como
convém num meio rural, à nossa espera o inevitável sujeito da imobiliária, há
profissões de onde parecem saídos de uma linha de montagem, esta indubitavelmente
é uma delas, o perfeito exemplo de um “manguinhas-de-alpacas”, gestos largos,
voz sonora, sorriso ostensivo, em contraponto, pensamento estreito, gramática
sofrível, horizontes de betão, “Ora
muito bom-dia! Ora muito bom-dia! Vamos entrando, vamos entrando… Isto é um
pedaço de céu aqui na terra…”, as frases
de pacotilha pronunciadas com ênfase, preferi ignorá-las, era a única forma de
lhe suportar a presença, escolhi perder-me com o azul ondulante, entre os
montes, no regresso, ela com a habitual frase, para mim tão cansada (“Tu é que
sabes… Tu é que sabes…”), argumentei quão bom seria, para mudarmos radicalmente
de ares, adquirir a casa, até para os miúdos, e é um pulinho para ali
chegarmos, simultaneamente viramos costas a todo o stresse do dia-a-dia, muito
subterraneamente via-me a uma considerável distância a argumentar, de facto,
tudo uma ilusão, em verdade eu não suportava mais o fastio dos fins-de-semana,
o confronto com o vazio de sermos, como eu estava a perder essa guerra, via a
finitude como a única saída sensata, há muito essa ideia se alojara em mim,
precisava de uma distracção, como a criança de outro brinquedo, estamos tão
perto do que fomos, embora tanto teimemos em maquilhar, como se a infância
constituísse uma obscenidade, parvoíce, apenas e só, a haver um paraíso será sempre
num lugar lá atrás, comprámos a casa com a necessária disciplina das nossas
economias, os fins-de-semana, maioritariamente, passaram a ser em Almoinhas
Velhas, contudo, foi no terceiro ou talvez no quarto que algo se partiu em mim,
demorei o necessário a compreender, porém, a certeza de que algo se partira,
por fim, o tempo desvelou a resposta, “A magia foi-se, pois, a magia…”, eu não
fui para Almoinhas Velhas por causa dos entediantes fins-de-semana, mas sim
para fugir ao confronto de ser...
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