Livros do Escritor

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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Almoinhas Velhas



Lá muito ao longe, entre os montes, o azul ondulante, eu aqui, na varanda, a sentir o desamparo do momento, frases de há muito revisitam-me, hoje num sem-sentido, promessas, apenas isso, um vento entardecido murmura-me despedidas, o mundo num imenso adeus, eu a reflectir onde me perdi de mim, as certezas, pois, as certezas, edifiquei-as em meu redor como se muralhas para a vida, nem ruínas restam, tudo se desmoronou, num certo momento quis trazer passado ao presente, de outra forma, a infância ao hoje, as mais solares memórias de infância foram com os meus avós, lá longe, na aldeia, onde aprendi a olhar horizontes, com o tempo, intensificaram-se, os horizontes, para mim, habitante da cidade, num lugar lá atrás, os avós partiram, a porta da sua casa fechou-se irreversivelmente, depois foi a porta da casa dos pais a fechar-se, qualquer dia será a minha, porém, num certo momento, cresceu-me a urgência de trazer passado ao presente, de outra forma, a infância ao hoje, foi num desses enfadonhos fins-de-semana, saímos da inclemente rotina laboriosa para nos confrontarmos com o vazio de sermos, escondia-me atrás do jornal, ela com a roupa, e mais roupa, um casaco ainda, de repente, um anúncio prende-me a atenção, publicitava a venda de uma casa de campo, rodeada por um quintal, duas ou três árvores de fruto, perto de Lisboa, mas o que me fascinou foi o nome do lugar (“Almoinhas Velhas”), encantatório, Almoinhas Velhas, o tédio domingueiro estava vencido, fomos vê-la, era uma casa só com piso térreo, rústica, como convém num meio rural, à nossa espera o inevitável sujeito da imobiliária, há profissões de onde parecem saídos de uma linha de montagem, esta indubitavelmente é uma delas, o perfeito exemplo de um “manguinhas-de-alpacas”, gestos largos, voz sonora, sorriso ostensivo, em contraponto, pensamento estreito, gramática sofrível, horizontes de betão, “Ora muito bom-dia! Ora muito bom-dia! Vamos entrando, vamos entrando… Isto é um pedaço de céu aqui na terra…”, as frases de pacotilha pronunciadas com ênfase, preferi ignorá-las, era a única forma de lhe suportar a presença, escolhi perder-me com o azul ondulante, entre os montes, no regresso, ela com a habitual frase, para mim tão cansada (“Tu é que sabes… Tu é que sabes…”), argumentei quão bom seria, para mudarmos radicalmente de ares, adquirir a casa, até para os miúdos, e é um pulinho para ali chegarmos, simultaneamente viramos costas a todo o stresse do dia-a-dia, muito subterraneamente via-me a uma considerável distância a argumentar, de facto, tudo uma ilusão, em verdade eu não suportava mais o fastio dos fins-de-semana, o confronto com o vazio de sermos, como eu estava a perder essa guerra, via a finitude como a única saída sensata, há muito essa ideia se alojara em mim, precisava de uma distracção, como a criança de outro brinquedo, estamos tão perto do que fomos, embora tanto teimemos em maquilhar, como se a infância constituísse uma obscenidade, parvoíce, apenas e só, a haver um paraíso será sempre num lugar lá atrás, comprámos a casa com a necessária disciplina das nossas economias, os fins-de-semana, maioritariamente, passaram a ser em Almoinhas Velhas, contudo, foi no terceiro ou talvez no quarto que algo se partiu em mim, demorei o necessário a compreender, porém, a certeza de que algo se partira, por fim, o tempo desvelou a resposta, “A magia foi-se, pois, a magia…”, eu não fui para Almoinhas Velhas por causa dos entediantes fins-de-semana, mas sim para fugir ao confronto de ser...

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