Há lugares que são verdadeiras máquinas-do
tempo, simplesmente por nos recordarem que ali entrámos, pela primeira vez, em
criança, depois em jovem, por fim, em adulto, hoje
vou recordar um desses espaços, ficava na lateral de um prédio, descia-se uma ligeira
escada, em verdade pouco mais de uma dezena de degraus, e lá estavam as três
cadeiras, na primeira, trabalhava o patrão, não era preciso muito para
compreender esse facto, na segunda, o mais velho dos
três, embora, para mim, todos o fossem, há uma fase da existência – que
dura em demasia, apesar de tão abruptamente se extinguir –, em que todos nos
parecem velhos, a vida é tão irónica, por fim, na terceira, estava o que melhor manuseava a arte da tesoura, já em miúdo, lá por
casa, meu pai o afirmava, não era de muitas falas, preferia deixar o verbo com
a tesoura, despachava três cabeças enquanto o patrão subsistia com a
mesma, as sílabas da sua tesoura muito aquém das que proferia, com vivacidade,
sobre as habituais temáticas destes contextos, futebol ou política, no entanto,
a sua terra-Natal era temática recorrente, bem como o regresso quando a idade e a bolsa lhe permitirem, ficava bem no Norte,
o olhar iluminava-se-lhe quando pronunciava o nome, a entoação até se
aligeirava, nas férias ou festividades impreterivelmente rumava lá para cima,
era habitual, quando dissertava sobre as maravilhas dali, questionar os
presentes se conheciam a sua terra-Natal, o “não” era dominante,
estava a quase quinhentos quilómetros de distância, o entusiasmo não se lhe
subtraía, pelo contrário, cantava as suas múltiplas belezas com renovada
alegria, a primeira vez que desci aqueles degraus foi num Inverno, ainda por
aqui a imagem de que o sol já se despedira do mundo, as ruas povoadas, como se
num repente, por densas trevas, a chuva resolvera cumprimentar o mundo dos
homens, olho, da entrada, os degraus, na altura pareciam-me bem mais que uma
dezena, intuí, não sei porquê, cumprir um rito de passagem para a idade adulta,
por ali só via crescidos, jornais e conversas aborrecidíssimas, o cabide afigurava-se-me
uma densíssima floresta imperscrutável de casacos, altos e pesados, eu a
questionar-me como sustinha tantas e tantas toneladas, o ecoar da chuva
crescia, um velhote, com uma vassoura e pá, diligente na recolha dos cabelos
espalhados pelo chão, pois, esquecera-me desta quarta personagem, ainda hoje
desconheço se seria familiar de algum dos três, um rosto afável, não obstante a
escassez de verbo, também contrastante com o patrão, inspirava de simpatia, recordo-me de atentar na luz derramada do tecto, similar à da cozinha de casa, sempre
gostei destes pormenores, como se encontrasse, em cada recanto, um espelho do
lar, quando chegou a minha vez, lá fui para a terceira cadeira, onde estava o
que melhor manuseava a arte da tesoura, já em miúdo, lá por casa, meu pai o
afirmava, não era de muitas falas, preferia deixar o verbo com a tesoura, após
sentar-me, o seu pé no pedal para subir a cadeira, a humilhação a que uma
criança é votada, apesar de, nesse momento, eu também me sentir a erguer,
estava num lugar de adultos, nem vislumbres dos meus colegas de brincadeiras na
rua, em volta apenas cabelos brancos, calvícies reluzentes, sob a luz derramada
do tecto, similar à da cozinha de casa, e fartos bigodes, algo que sempre me
desagradou, um vestígio indelével do primitivo pelo hoje, quando o meu pensar,
por segundos, deu uma pausa, já o tilintar da tesoura ao meu redor, à medida
que os cabelos encontravam o chão, assistia, pelo espelho, ao lento regresso de
uma dignidade pressentida, há lugares que são verdadeiras máquinas-do tempo,
simplesmente por nos recordarem que ali entrámos, pela primeira vez, em
criança, depois em jovem, por fim, em adulto, até que, confesso, ali não
voltei, por isto ou aquilo, acabei a cortar o cabelo noutras paragens,
desconheço se o patrão cumpriu o sonhado regresso à sua terra-Natal, após a
idade e a bolsa lhe permitirem, se o mais velho dos três, embora, para mim,
todos o fossem, lê, algures, placidamente o seu jornal, sem ânsias ou pressas pelo
próximo cliente, sei que o da terceira cadeira, pois, o
que melhor manuseava a arte da tesoura, já em miúdo, lá por casa, meu pai o
afirmava, não era de muitas falas, preferia deixar o verbo com a tesoura,
despachava três cabeças enquanto o patrão subsistia com a mesma, acabou por lá
ficar sozinho, cheguei a vê-lo deambular pelo passeio, ao pé da entrada, à
espera que alguém aparecesse, logo ele, o que melhor manuseava a arte da
tesoura, não encontro palavras para descrever por onde o meu sentir caminhou enquanto
o via, por ali, no passeio, de braços cruzados, a porta aberta, ainda consegui
vislumbrar os primeiros degraus, há muito concluí vivermos a era da incerteza,
como as coisas mudam no espaço do viver, por fim, desistiu de manter a porta aberta,
optou por deixar o seu contacto na janela, caso alguém queira cortar o cabelo
com quem melhor manuseia a arte da tesoura, basta passarem na rua para ficarem
com o número, afinal, não é todos os dias que entramos numa máquina-do-tempo.
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