É tão estranho. Não te chorei, foi-te
chorando. Depois da tua partida, foi-me apresentada a tua ausência. E, como
sempre acontece, fomo-nos, primeiramente, conhecendo e, no fim, por acaso,
tornámo-nos boas amigas. O pior é os miúdos. Ainda por cima, em idades tão
difíceis. Creio que não haja idades fáceis para se perceber que um rosto já
olha noutra direcção. E quando tudo começou? Tudo se inicia quando dois olhares
se demoram. Foi a irmã dele que nos apresentou, nem amigas éramos, apenas boas
conhecidas, um dia, já nem me lembro do porquê, fui a casa dela, ele ia a sair,
logo me senti devolvida à terra, nem era particularmente bonito, mas tinha
qualquer coisa, confesso que, nessa altura, também andava em baixo, terminara
um namoro de dois anos, tornara-se insustentável, mais do que uma vez,
apanhara-o de volta dos pertences dos meus pais, ainda lhe apresentei uma
opção, mas ele exercera a escolha há muito, eu entre o luto, da relação
terminada, e o despeito, de ter sido trocada por um vício, a porta do esquecimento,
soube, há umas semanas, que o apanharam, de madrugada, dentro de uma loja,
denunciado pelos vizinhos que despertaram com aquele estilhaçar de vidros, a
subtileza nunca fora o seu ponto forte, vendo bem, ele fazia-me rir, acho que,
em verdade, nunca gostei dele, talvez fosse uma coisa da idade, agora, do
segundo, e último, até hoje, a questão foi diferente, sim, porque tive uma
educação conservadora, os meus pais sempre me disseram Nesta casa, só se entra até determinada hora. Depois, fecha-se a porta.
A menina percebeu? Claro que percebia, limitava-me a um esforçado sorriso,
a ver se direccionavam o diálogo rumo a outras paragens, de sombras cálidas e
portas de província, quando me devolvi a mim mesma, estava no carro dele, a
umas dezenas de metros de minha casa, estacionara, e isso não me havia
escapado, no intervalo de candeeiros, um desses lugares vedados ao radar
paterno, tínhamos ido ao cinema, não me lembro do filme, mas sei que me
assustara, talvez pelo meu estado de espírito de então, vícios, os pertences
dos meus pais cercados, portas para o esquecimento, tudo isso ainda me habitava
o pensar, na vigília e nos sonhos de sabor a fel, mas sempre sonhos, e nessa
travessia carecida de equilíbrios, os lábios dele aportam nos meus, como se uma
numa sequência lógica de acontecimentos, talvez pela hora, pela noite, pelo
frio do filme e o calor daquele beijo, não o repeli, nos filmes seguintes,
desaguava sempre naquele intervalo de candeeiros, um desses lugares vedados ao
radar paterno, os lábios faziam-se, agora, acompanhar de uma mão com uma
aptidão inata para a exploração, com dotes de alpinista e, simultaneamente, de
espeleologista, nesse ponto, soletrei-lhe respeito, afinal, em minha casa, só se entra até determinada hora. Depois,
fecha-se a porta, mas tudo tem o seu tempo, e, na nossa margem, só naufraga
o que as correntes da vida trazem, fomos um do outro, certa tarde, em casa
dele, na altura, talvez pelo meu estado de espírito de então, vícios, os
pertences dos meus pais cercados, portas para o esquecimento, tudo isso ainda
me habitava o pensar, na vigília e nos sonhos de sabor a fel, mas sempre
sonhos, não me apercebi que ele se virou logo, para o seu lado, e adormeceu,
como fui eu a abraçá-lo, pareceu-me extremamente romântico dormirmos juntos, denotava
sempre um grande respeito pelos meus pais e pelas horas da casa, sobretudo
quando tinha os amigos à espera, seguiu-se o casamento, pouco depois, pediu-me
para falar ao meu pai de uns fundos para montar negócio próprio, já me tinha
dito que andava cansado do trabalho na fábrica, e as coisas com o patrão já não
eram as mesmas, falava-se, amiúde, que a mulher do patrão gostava, quando a
levavam a casa, que estacionassem no intervalo de candeeiros, um desses lugares
vedados ao radar marital, o meu pai concordou, de imediato, afinal, era a
pensar no meu futuro, e da filha que eu já esperava, talvez para não incomodar
a minha espera, nesses meses, tornou-se frequente a saída com os amigos, eu
compreendia, não tinha qualquer mal, talvez já celebrasse a filha, certo dia,
insultou, e quase esmurrou, um cliente mais picuinhas, daí a um processo nem um
passo foi, o negócio que o meu pai havia concordado, de imediato, afinal, era a
pensar no meu futuro, no da filha que eu tinha e do filho que já esperava,
diluíra-se, bateu à porta de outra fábrica, era um homem de fibra, não era de
ficar parado, o meu pai relembrou-lhe outras regras lá de casa, como aquela do emprestar não é dar, eu
novamente a balançar entre abismos, certa noite, ele Um dia destes saio porta fora. Estou farto de vocês todos, pensei
que a frase lhe emergisse de um copo, tal o seu perfume, disseram-me mais
tarde, que tinham visto, desde há uns meses, o carro dele estacionado, no
intervalo de candeeiros, um desses lugares vedados ao radar conjugal, numa rua
onde vivia uma recém-viúva, dizia-se que muito abastada, não sei, acredito que
esteja quase a chegar, afinal, ainda não disse boa noite aos filhos, que, na
diferença das idades, na diferença da compreensão, começam a divisar abismos e
travessias, ainda esperei por muitas noites, até que compreendi, numa manhã,
talvez pelo frio da hora, o nada que eu abraçara num sonho apenas meu.