Livros do Escritor
domingo, 20 de dezembro de 2020
O céu não tem lugar na terra
Hoje nada foi como havia sido. Não
houve batalhas com o relógio, nem pressas, nem aquelas corridas olímpicas e a
medalha do transporte desejado, tudo um torvelinho e, quando sombras extenuadas
na calçada, projectadas por sorumbáticos candeeiros, o mundo sobre os ombros. E
ainda os filhos para ir buscar à escola, a correr à sua frente, ela no espanto
daquela demasiada energia, como se a súbita liberdade fosse vitamínica, ela a
arrastar-se atrás deles, as advertências entrecortadas com a carência de
fôlego, a distância a crescer, por fim, um berro imobilizador. Segue-se a
janta, ele aparece uns minutos antes, não há perguntas, ela prefere-o entre
copos (talvez demasiados) e amigos, que de volta aos braços daquela, com rosto
de brisas e cintura de Verão, que o ausentou uns meses de casa. Sim, por ali
andou, ela chegou a recear… Mas o lar prevaleceu… Grande ilusão! No fundo, ela
conhece a verdade, mas soterrou-a para voltar a caminhar. Quantas verdades
jazem a nossos pés? Foi ela que se cansou. Afinal, por quanto tempo um rosto de
brisas contempla um olhar outonal? Por conseguinte, a cintura invernosa
reaprendeu os passos do lar. Assim que ouviu a chave, nessa noite, ela desligou
o candeeiro, encostou o rosto à almofada para lhe depositar a tristeza salgada,
fingiu-se adormecida, e sorriu. Ele deitou-se a seu lado, numa lentidão algures
entre o receio e a vergonha. Os dias seguintes pautaram-se por um silêncio de
reaprendizagem. Sim, ninguém se levanta em voz alta. Após umas semanas, e com
as brisas já pretéritas, por ali as coisas no seu lugar. Até que numa tarde,
ela encontra-o à mesa da cozinha, um envelope no chão, como se aquela brancura
rectangular encerrasse um grito, a olhar uma carta no abandono de quem já não
ouve amanhãs. A partir dali, passou a atrasar-se cada vez mais para a janta. Os
passos do lar faziam-se entre cantigas e tropeções. Por fim, num certo dia, um
fémur cedeu. No branco leito hospitalar, fez votos de abstinência. Ela, de
novo, em sorrisos, só o queria de regresso. Já ele se arrastava, entre o quarto
e a cozinha, compassado pelo gemido metálico das muletas, quando ela surge
inesperadamente para o almoço. Ele vira-se surpreso: Então? Mas a surpresa rapidamente desvanece-se-lhe do rosto,
perante aquela expressão de terror, de quem se sabe na despensa da vida, que
ela ostentava. Quase esqueceu as muletas para ir ao seu encontro. Ela demorou
na procura das palavras, sempre que os soluços permitiam, uma frase desaguava.
Estranhou as colegas à porta da fábrica, logo nessa manhã, havia encomendas anteriores
para finalizar, a cancela da entrada para baixo, não lhe passou despercebida,
como se aquele vermelho e branco, hoje, a ferissem de uma forma singular. Um
grito uníssono ecoava daquelas dezenas de gargantas (Deixem-nos trabalhar! Deixem-nos trabalhar!), ela acrescentou numa
surdina tímida, como se um eco para si (Temos
filhos… Temos filhos…). Não se recorda de ter regressado. Por vezes,
caminhamos de costas. Isto acontece quando não aceitamos o destino, e o pensar
foge dos movimentos. E agora?, foi a
questão de dias naquela casa. E agora?
Logo emergiu uma outra guerra com o relógio, nos dias seguintes. Parecia que os
ponteiros se haviam enferrujado, tal a relutância de movimentos. Sim, muitos
dias cabiam num dia. Familiarizou-se com diversas rotinas. Ele, com o tempo,
esquecia-se, cada vez mais, das muletas. Iam buscar os filhos juntos. Por
vezes, davam as mãos. Afinal, viviam a noite da vida. E, pelo menos, não se
queriam perder.
quinta-feira, 17 de dezembro de 2020
segunda-feira, 14 de dezembro de 2020
Há noites em que os móveis gritam
Há dias assim. Em que, na sombra de
um corredor, a luz de uma memória. E eu passado, sim, o incómodo presente, como
algures uma dor que inquieta, latejante, a doçura do ido, talvez por
compreender que não a saboreei, ando sem me aperceber, ora num lugar, já
noutro, os cenários diferem, mas eu comigo, como se uma praga, sento-me, no
cadeirão em frente, senta-se-me o pensar, olha-me, os ombros curvam-se-me, e
agora? Lá fora, um outro cenário, mas, diante de mim, naquele cadeirão, aquelas
ideias, quase orgânicas, afundam-se-me olhos adentro, como se aguardassem o
mais ténue movimento para me seguirem. Alguém se me dirige, naqueles
cumprimentos que, de tão forçados, quase ecoa um debitar calórico pelos ares,
ouço frases de calçada, surpreendo-me no mesmo registo, como se, é isso, eu um
outro, corro atrás da esterilidade linguística, afinal, eu não sou isso, mas
algo se lança aos meus pés, eu por terra, continuo num automatismo de passeios,
é verdade, estou derrotado. Neste momento, rodo a chave na inglória de mais um
regresso silencioso. Dentro deste lugar que ocupo, continuo com gestos não de
mim. Deixei de acender as luzes. Melhor assim. Na mesa, de madeira, redonda,
ainda jaz aquela carta. Quantas vezes a reli? Talvez movido pelo espanto da
incompreensão… À mesma hora, hoje, vou pegar-lhe de novo. Foi há quanto tempo?
É estranha a nossa relação com os dias. De repente, sem que nos apercebamos,
perdemos o rasto! Para onde foram? Bem sei… Mas, sim, a carta, chegou a sua
hora. Mudança é sinónimo de velocidade. Sim, o de repente… E eu com a imagem de
um corpo a mergulhar: de um mundo para outro. Ela a avisar-me com olhares e
atitudes. Eu a não acreditar. Ela com a pressa, eu com passos de bengala. Fica mais um pouco esta noite!,
dizia-lhe para o fim, ela Sabes que não
posso! Eu a acreditar, talvez o trabalho, umas horas extra no escritório,
uns trocos a mais sempre benéficos para o sorriso, mas nem trocos nem sorrisos
de volta… Apenas umas linhas em cima de uma mesa, de madeira, redonda. Logo
esta noite. Eu com a carta. Esta noite não! Tento o telefone. O piar
prolonga-se em mim como o eco de um não arrastado. Por fim, capitulo. Ela à
minha frente Tenta perceber. És uma
pessoa especial. Foi uma honra ter-te conhecido. Mas… Já não diante de mim,
apenas uma carta. Regresso ao telefone, aos piares arrastados, ecos prolongados
de uma voz ausente, ela a insistir Guardo-te
como uma boa memória, mas eu presente, nunca passado, e ela já no futuro,
desencontros temporais, insisto Fica mais
um pouco. Vamos tomar um café, ela, Por
favor, não insistas. Assim nem uma boa recordação serás. Levanta-se, dá uns
passos, à minha frente, apenas o abandono do meu pensar, ao meu redor, o
indistinto do tempo a avolumar-se, eu Pensa
bem. Anda, vamos lá tomar um café. Ela já na porta, o singular baque de
menos uma entrada, diante de mim, sentado, o vazio que me ocupava, agora, uma
vez mais, insisto com estes piares suplicantes, até que se silenciam em
reticências sonoras. Pouso a carta com a mão fria. Talvez tenha despertado. Há
noites que se fizeram para não estarmos sós. Mas, nesta casa, demasiado
barulho: o baque de uma porta, os insistentes piares arrastados, a recusa de um
café (Foi uma honra ter-te conhecido),
eu Onde vais? e a resposta em forma
de som de entrada desvanecida. À minha frente, já nada. O som do relógio da
vizinha. Que horas são? Não as contei. Costumava fazê-lo. Olho, agora, a mesa,
de madeira, redonda. Não há nada em cima. Quando é que ela decidiu partir? Sim,
percebo. Ela disse-me tudo, entre olhares hesitantes e palavras desviadas. Eu Fica mais um pouco. Já é de noite. Perdi
o tempo. Fecho os olhos. Talvez, sim, é verdade, sinta um calor próximo de mim.
domingo, 13 de dezembro de 2020
quarta-feira, 9 de dezembro de 2020
segunda-feira, 7 de dezembro de 2020
Não saias do meu horizonte
Sempre que ele chegava a casa, no cumprimento da oração diária, via-a absorta, a olhar para o nada de uma parede, sentada à secretária. Diante dela, um caderno de linhas aberto, algumas folhas já escritas, ele a anunciar-se (Já cheguei!), ela a sorrir-lhe da distância, mas permanecia imóvel, de caneta na mão. Lá fora, a luz numa diagonal crescente, ele a regressar da cozinha, com dois copos na mão, a convidá-la para a varanda, ela acede, segue-o num prolongar demasiado de movimentos, ainda um último olhar para a caneta. Agora, cada um na sua cadeira, lado a lado, ele a olhar para as ruas, em movimento de regresso, ela com o indistinto do horizonte, como se aí repousasse de alguma forma, sim, notava-se-lhe alguma leveza neste momento, ele também se apercebeu disso, encetou um diálogo de circunstância, a ausência de palavras potencia os ecos do mundo, ela respondia em monossílabos cortantes, e, de novo, a perder-se nas lonjuras. No fundo, ainda estava com a mesa, e a olhar através da caneta, perdida com aquele enredo de palavras (sim, qual o adjectivo para rematar aquela frase?), ele O que é hoje o jantar?, ela Sabes que tenho o mundo dentro de mim?, mas esta questão repousou-lhe nos lábios, afinal, o mundo dele um jantar, e ela a perseguir adjectivos, para expressar um existir demasiado. Ele, agora, demora-se a olhá-la, e questiona-se Quando te perdi? Mas é uma questão cansada, de quem apenas existe, e carece mais de jantar do que das lonjuras, por fim, levanta-se, ela permanece, uma mão segura o copo, a outra com dedos nervosos à volta da boca, como se dedilhassem uma melodia pontuada por palavras e notas musicais em harmonia. Na cozinha, ele abre o frigorífico, e avalia as possibilidades da refeição nocturna. Opta pela via da rapidez. É a escolha destes dias. Enquanto o micro-ondas se cumpre, telefona a um amigo para partilhar a angústia sentada na varanda, num silêncio de distâncias. Ela ainda ali, dedos à volta da boca, na outra mão a bebida intacta, vira-se para trás, o interior da casa difuso, a luz do mundo, aquela hora, já não diagonal, mas sim rasa, apesar de tudo, apercebe-se da silhueta dele, Sabes, tenho o mundo dentro de mim? Do interior, apenas a mecânica distante do micro-ondas. Ela, de súbito, sorri. Regressa para junto da caneta. Ele a mascarar as lamúrias telefónicas. Vê-a sentar-se, e a caneta num galope de planícies iluminadas, o semblante num sorriso, o dele em espanto, da cozinha, o aviso de jantar pronto, hesita, mas escolhe a prática. Ela noutro tempo, noutro lugar, entretanto, à mesa, ele a olhar o prato em frente que arrefece, o seu quase vazio, olha a porta, aguarda pela silhueta que se curva para uma folha de papel, de repente, pega naquele prato arrefecido, vai até à sala, e coloca-o na secretária, o galope afrouxa, talvez na planície agora uma luz diagonal, pousa a caneta, olha-o, o rosto dele a chamá-la, ela levanta-se, dá-lhe a mão, dedos entrelaçam-se no reforço de uma união sentida, o rosto dela pede-lhe compreensão, ele hesita no cansaço, sim, a fadiga, ter um prato arrefecido como horizonte ao jantar, ela reforça a união de dedos, deposita-lhe o rosto no peito, e murmura inaudivelmente Sabes, tenho o mundo dentro de mim, assim ficam durante algum tempo. Enquanto, lá fora, as luzes dos homens turvam o mapa dos céus.
domingo, 6 de dezembro de 2020
domingo, 29 de novembro de 2020
A cada um o seu mundo
Entrou em casa, ainda carregada de
dia, o barulho dos sacos de plástico incessante, demasiado pesados para as
forças de hoje, mas o seu conteúdo tão aquém do frigorífico, o filho com os
assuntos da escola, e também a apontar para uma caderneta recém-estreada, à
volta dela, ainda mais audível que os sacos, que o trânsito em ecos oceânicos
no seu interior, a filha, mais velha, na mudez estridente de dedos e teclas,
absorta, sempre, com o telemóvel, a mãe Não
me queres dar uma mãozinha a arrumar as compras? A filha tarda na resposta,
ainda o telemóvel, um abanar de cabeça, o ecrã ilumina-se, ela a sorrir,
polegar e teclas em uníssono, imparáveis, a mãe, de novo, Ouviste o que eu disse? A filha, Sim, vou já! Mas ainda o telemóvel, o filho, por seu lado, a
assegurar o futuro, já três colegas fazem aquela colecção, a mãe anuía, com a
cabeça dentro do frigorífico, a contar mantimentos, a filha longe daquele
horizonte de azulejos, frigorífico, e panelas, por fim, ecoa um Estou a ir! Contudo, o telemóvel, de novo,
iluminado, ela de regresso àquele diminuto horizonte rectangular, polegar já em
riste, o filho persiste na apologia da caderneta, a mãe ainda com os sacos,
ouve-se a campainha, dirige-se para a porta, o filho à sua volta, a assegurar,
com abnegação, um amanhã de novas cadernetas, a filha talvez não ouvisse a
porta, afinal, agora abanava a cabeça, de novo, polegar e teclas, a mãe, à
porta, aguardava o elevador, a porta abre-se e surge-lhe a sogra, agora é ela
em suspiros e cabeça em horizontalidades. A sogra em sorrisos e com uma voz a
recordar-lhe o trânsito. A sogra Espero
não incomodar… A mãe sob o manto da educação, a sogra já dentro de casa,
com aquele, porventura uma impressão, olhar detectivesco, como se buscasse o
indício de uma dona de casa falhada, talvez depois para o filho Bem te avisei! O neto abraçado à avó,
esta em segredos, a mãe a observar esta cumplicidade da outra margem, na
impotência de ecos (sim, de novo, o trânsito, uma noite mal dormida, cada vez
mais secretárias vazias lá no escritório…), de repente, a filha a segurar a
carteira da idosa, solícita, a convidá-la a sentar-se, nem vislumbres de um
rectângulo iluminado, talvez no bolso, votado, por instantes, ao silêncio, sim,
deve estar algures por aí. A mãe acompanha a cena, balizada por secretárias
vazias e por uma solicitude dos seus nunca sentida, a sogra olha-a deste pódio,
compreende o embaraço da nora, os netos a ladeá-la, prontos a ouvi-la, e a
serem ouvidos, claro, a mãe regressa à cozinha, antes: Quer jantar cá? Mais por educação, nem se apercebeu de proferir a
questão, secretárias vazias diante de si, cada vez mais, nem ouve a resposta,
depois das compras arrumadas, de uma sopa a aquecer, regressa à sala, a sogra
já de pé, prestes a sair, findo o diálogo intergeracional, sempre as
similitudes entre amanheceres e entardeceres, os filhos com o rosto em sorriso,
a sogra a olhá-la, apreensiva, antes de sair, Ainda hoje ligo para conversarmos, o elevador, a porta a fechar-se,
o filho interrompe a caderneta graças aos trabalhos escolares, a filha ocupa-se
a pôr a mesa para o jantar, talvez, sim, talvez, um dos bolsos povoados pelo
telemóvel, de novo, a campainha, agora é o pai. Regressa, também, a olhar chão.
Entra em casa com um sorriso de arames. Cumprimentam-se. O filho, após olhar
ambos, decide que as suas investidas, após os deveres, por uma caderneta a
cheirar a amanhã, serão pelo lado materno. A filha de novo no seu mundo, de
porta fechada, o rectângulo agora do computador, mas o telemóvel ao lado, não
vá o polegar enciumar-se, ocupada com a linguagem do seu tempo: uma fala sem
rostos… Após o jantar, pautado pelo desvelar superficial da circunstância de
cada um, o filho deita-se já com a promessa materna da caderneta, a filha
novamente com um ecrã (o rosto destes dias), o pai, sentado, folheia o jornal
oferecido pelo porteiro, e ela, deitada no sofá, com a sua telenovela. Enquanto
acompanha aquelas vidas de outros, distancia-se de si. Ao menos, não ouve sacos
de plástico, nem vê secretárias vazias à sua volta. Por fim, o cansaço. Sente
alguém a tapá-la, com a colcha daquelas ocasiões. Talvez o filho, depois da
caderneta, num abraço lhe relembrasse sentir, talvez a filha se sentasse,
diante dela, para se dar a conhecer um pouco, e talvez, não, isto é certo,
alguém se levantou para tapá-la, e, apesar do cansaço destes dias, que nos
arrasta o olhar pelas calçadas, acaricia-lhe o rosto com um gesto, beija-lhe a
face com um sabor a lar. Ela retribui num sorrir. Sim, por muitas secretárias
vazias à sua volta, sabe que há sempre um sofá e uma colcha de ocasião à sua
espera. E isto é mais que o suficiente. Há quem lhe chame regresso.
quinta-feira, 19 de novembro de 2020
Quando já somos uma fotografia
Terminado o almoço, como se aquilo fosse uma refeição, uma sandes engolida a custo com um refrigerante, sempre com demasiado gás, em pé, a colega, à sua frente, não uma, mas duas sandes, que não lhe interrompem o monólogo, sim, engolia sem cessar a catarse emocional, ela representava, numa performance extasiante, a boa ouvinte, as duas ali, num desses intitulados restaurantes de comer rápido, que se multiplicam numa cadência monótona, como se, de certa forma, esta incessante visão do mesmo nos anunciasse um fim: o da esperança. Não há lugar à novidade no horizonte cansado de hoje. Por melhores palavras: o horizonte é que perdeu o seu lugar; foi destituído pela repetição. E ninguém estranha. Afinal, o que são os dias presentes se não uma cuidada repetição de si mesmos? Ela a disfarçar o gás, a colega prossegue o debitar de angústias, analisa, de forma cuidada, diga-se, o actual momento das três novelas que segue, com beatífica devoção, tudo sob o ritmo inclemente do mastigar, cansada da repetição, daquele mastigar despudorado, de assuntos de ontem (há, cada vez menos, diálogos e assuntos de amanhã), olha para além do vidro, àquela hora, um vai e vem de gente, ouve risos demasiado altos para a sinceridade, observa gestos demasiado teatrais para o assunto, roupas demasiado pensadas para a ocasião, tudo num excesso de ser. Findo o mastigar e o repertório de temáticas, deambulam um pouco por lojas, roupas, mais roupas, e roupas, a colega Esta camisola fica-me mesmo bem! Não achas? Ela a ponderar uma resposta, sim, de certa forma, disfarça-lhe uma cintura em franca expansão, a cor (um discreto azul-escuro) também concorre para esse fim, é comprida, serve de dique àquelas nádegas invernosas, acaba por comprar a camisola, mais uma. Deixam a loja, a colega de saco na mão e sorriso no rosto, ela há muito deixara de sorrir por sacos e roupas, agora a escada rolante, desciam, em sentido contrário sentiu o calor de um olhar, uma familiaridade com a sua geografia, olhos que se encontram, ela a descer, ele a subir, a colega na distância de um saco e de uma camisola azul-escura, barragem de mastigares, naquele instante de um olhar, em que passado se sobrepõe a presente, o mundo imóvel, ambos sabiam, por voz desconhecida, que não ia haver cumprimentos, o passado diante deles, de repente, ela no fim da escada, ele, não, não vai olhar para trás, o regresso ao escritório, pelo caminho, a antevisão, pormenorizada, do serão novelesco, reconciliações, lágrimas, zangas, chegadas ao escritório, a colega a antever o lanche, talvez amanhã compre uma camisola ainda mais escura e um número acima, mas isto de analisar conteúdos tão complexos é de grande desgaste calórico, daí a fome, mas já não a ouve, permanece numa escada imóvel a olhar uma janela para o passado.
Nessa noite, chegada a casa, abriu
caixas de cartão cheias de ontem. À medida que regressava, suspirou,
entristeceu-se, sorriu, por fim, encontrou. Estavam numa moldura, de plástico
transparente, ligeiramente rachada no canto inferior esquerdo, encostados a uma
árvore. Apenas os ombros se tocavam, mas era o bastante para se saberem um.
Nenhum deles sorria. Era natural, sabiam o que partilhavam. Era demasiado sério
para risos imbecilizados. Uma certeza não origina risos. Talvez pelo seu
carácter de permanência. É curioso: apesar da idade, não havia naqueles rostos
vislumbre do sonho. Como se soubessem esgotados. Sim, de novo a certeza. A
convicção de um sentir ímpar, surgido na manhã da vida. Apenas um ligeiro
aproximar de ombros, e eles na certeza de um beijo abraçado além-tempo. Não
havia espaço entre eles. A forma como os ombros se tocam. Suspira, de novo.
Ela, hoje, não o viu. Apenas o sentir. Diluiu-se escada acima. Abandona a
fotografia. Recoloca-a nos despojos de ontem e fecha a caixa. Estava a
esvaziar-se, perante aquele instante de tempo. Porque, no fundo, perante uma
fotografia, opõem-se duas circunstâncias. Ele a afastar-se, naquele momento da
tarde, em direcção contrária. Ela talvez tenha olhado para trás. Ou não. Por
fim, arruma a caixa. Encosta-se a uma parede. E pousa uma mão no ombro. Ao de
leve. De olhos fechados, mas pensar aberto, sorri, porque, sim, foi verdade.
domingo, 15 de novembro de 2020
sábado, 14 de novembro de 2020
Um balouço chora ao vento
Hoje chove lá fora. É daqueles dias
em que o mundo nos vira as costas. Sem direito a porquês. Como se não
tivéssemos importância. E, de facto, não temos. Porque, na realidade, só somos
insubstituíveis para nós mesmos. O mundo sempre ali esteve, antes de o
olharmos, e estará, quando já não o vermos. No fundo, somos a circunstância de
nós mesmos. Nada mais. Agora, olho o mundo pelo quadrado envidraçado de uma
qualquer divisão desta casa. Quantas casas cabem numa vida? Talvez um dia as
compreenda. A chuva pinta o mundo de um cinzento demasiado cinzento, e eu
grato, ali, da janela, a compreender o conceito de lar, a agradecer-lhe, pela janela,
pelo calor, por me ensinar a chuva. Lá em baixo, na rua, poucos vultos, numa
pressa cautelosa, para não caírem, uma mulher procura harmonizar um saco,
demasiado pesado, com o guarda-chuva, a inclinar-se teimosamente com o vento,
ela a avançar, num esforço de conquista, com passadas reflectidas, como se
obedecessem a um escrutínio criterioso, mas as pernas arqueadas, o saco quase a
roçar o chão, hoje aquoso, a carteira que lhe obriga o ombro a subir, tardam a
glória deste heróico regresso ao lar. Mas, de onde estou, leio-lhe abnegação no
rosto, estes chegam ao destino, não importa a velocidade. A chuva intensifica o
seu canto. Talvez se lavem pecados no mundo dos homens. Que horas são? Não sei,
perdi o tempo. O mundo, lá fora, escurecido pelas lágrimas das alturas. Aqui e
ali, ainda carros. Ouço o telefone algures pela casa. Com o seu toque demasiado
insistente, quase imperativo, mas resisto-lhe, nada me demove desta vigília, em
mim demasiadas lágrimas, e este canto das alturas ecoa nas minhas raízes. Lá
fora, cada vez menos carros, os passeios vazios, nem vestígios de um saco
demasiado pesado e de umas pernas arqueadas, talvez um sorriso esconda uma
abnegação cansada na chegada ao lar, que se reveste de uma alegria cumprida com
o seu regresso, porventura um sentir de sentido perpasse nos corações que a
recebem, nos lábios que a beijam, nos braços que a aconchegam, e também ela
compreenda lar. Mas há muito que o sabe, daí a passada reflectida: só caminha
assim quem conhece a importância do destino. Agora, nem a luz dos carros risca
o negrume exterior. De novo, o telefone, insistente, no interior vazio da casa.
Permaneço à janela. Convocou-me primeiro. Os candeeiros já iluminados. O meu
olhar naquele espaço, lá em baixo, de risos e brincadeiras. A vê-lo assim, a
suportar as mágoas dos homens, parece-me que brincadeiras e risos só noutra
existência. O balouço num abandono de orfandade. Talvez amanhã, pelo meio da
tarde, se cumpra. Gotículas amontoam-se nos cabos vagamente oscilantes. Move-se
timidamente, como se retraísse uma tristeza vinda de uma lembrança. Sim, talvez
seja isso, certamente, numa longínqua tarde ensolarada, um miúdo, depois de um
infindável vai e vem, entre risos, brincadeiras, jogos, lhe tenha confiado um
sonho. O balouço continua num oscilar tímido. Acompanho-o com a ternura
espontânea do instante. Como se irrompesse do momento e nos sufocasse com um
abraço sem amanhã. Sim, é verdade, há quanto tempo viajamos juntos? Uma vez
mais, o telefone. Desta vez, não lhe resisto, e corro, casa adentro, à sua
procura, talvez o balouço me queira relembrar um sonho depositado no tempo.
domingo, 8 de novembro de 2020
Uma nuvem branca suspensa no azul do horizonte
Hoje ela saiu inquieta de casa. Qual a fonte desta inquietude? O que lhe terá provocado aquele andar pensante, a mão irmanada ao peito, o olhar raso? Cumprimenta os conhecidos, à medida que os vê, rua abaixo, com uma expressão elucidativa de aquém-verbo. Ao contrário de dias recentes, não pára nas sombras para lhes saborear a frescura, observar os passeantes, e olhar o céu. Como gostava daquela pureza azul! As alturas, e ela cada vez mais próxima da terra. Sabia-o. Hoje fazia anos que lhe partira o marido. Daí este desregulado sentir que lhe emigrou a razão para longe de si. Quantos anos de casamento? Os suficientes para se fugir à aritmética, e para saberem a vida. Desde então, uma existência pintada de noite. Não se importa. Se bem que… Sim, talvez por isso, aquela lassidão que a domina naquele olhar vertical em busca de um azul pontuado pela brancura sonhada das viajantes celestes. E ela, um desamparado ser da terra, coberta de noite, a sentir distância. O tempo distancia-nos do mundo. É verdade, começa por nos subtrair rostos, de seguida, demora-nos o movimento, por fim, lembra o passado, mas elimina-nos o futuro. Assim, o mundo torna-se a distância. E se ela não pode chegar à distância horizontal, a dos homens, perde-se nas alturas. Talvez aí seja a casa das virtudes. Prossegue a sua marcha arrastada. Talvez caminhe ao sabor das lembranças. Como ele ultimamente estava magro, a idade já lhe mudara o algarismo da esquerda, mas este sentir sabe a ontem, já não se levantava, amarelecido, a cor da doença, no fundo, é quando a vida começa a fazer a mala, pairava um adeus naquele quarto, até que, uma manhã, já não houve aquele olhar falante, sim, para ela bastava, sem poder mais, extenuado da guerra da vida, por fim, vencido, ele apenas lhe queria dizer, nem que fosse com o olhar que, sim, que… Sem problema, ela compreendia, e retribuía-lhe no singular de um beijo na face. É curioso, com a idade reaprendemos as subtilezas do pudor. Por outras palavras: aprendemos a harmonia do sentir: que requer lentidão, paciência, e simplicidade. Uma vida para isto. Ao menos que o ocaso da vida nos ilumine as evidências… Ela, por fim, desagua no largo central. Os habituais sentados nos bancos, com a vista ávida de novidades (nunca chegadas), a comentar parangonas de crises cansadas de tanto serem, transeuntes a cirandar num imperativo incógnito, alguns de jornal debaixo do braço, como se de um sinal de actualidade se tratasse, pombos pululam mais no chão do que nos ares, numa coabitação pacífica, assente em migalhas e símbolos de epifania. De onde está, avista o edifício de pedra com uma cruz ao alto, onde, num certo dia, entrara vestida de viajante celeste, pela mão do pai, para sair de mão dada com o destino. O destino na forma de um homem que a olhou sempre da mesma maneira. Ela regressa ao templo. Agora só. Lá dentro, dois ou três vultos, curvados, numa súplica de dores muito subterrâneas. Senta-se num banco próximo da porta. Inspira. De certo modo, ali sente uma paz. Talvez pelo silêncio reinante. Talvez pelos quadros em volta, que, na sua maioria, apontam para uma verticalidade que lhe é tão próxima. Nasce em si uma súplica: que se lhe permita beijar, de novo, uma face, e reencontrar um olhar falante, e dizer-lhe, de novo, que sim, num além-verbo, na linguagem do sentir, talvez se ela, agora, olhar para cima, veja uma mão estendida, que aguarda pela sua, a leve em direcção à porta, a noite ficara para trás, ela envolta em alvura, como as viajantes dos céus, deixam o templo, de mão dada, chove-lhes felicidade sob a forma de grãos de vida, nisto, uns lábios aproximam-se, para lhe murmurarem: Eu amo-te.
terça-feira, 3 de novembro de 2020
domingo, 1 de novembro de 2020
O que murmura uma parede de caliça numa tarde de Verão?
Ainda é cedo. Sim, veem-se poucos carros a circular. E os que se vêem denunciam um sono inconcluso. Talvez mais um sonho: sempre interrompido no limiar de um qualquer oásis. Já de mochila às costas, lancheira numa das mãos, sai para a manhã, acompanhado do pai. Corre para o carro, ainda coberto de noite, sob a sentida vigilância paterna. Leva na mochila o pecúlio do último aniversário para, no intervalo maior, a imaginação soltar-se, e então haverá cavalos, cavaleiros, castelos, princesas, e, quem sabe, algo esquecido no travesseiro abandonado. Senta-se no banco de trás, ainda adormecido, daí o frio, e olha o despertar do mundo, o início de um movimento com o sabor do tempo. Bebe, na sede de um viajante recém-chegado, cada rosto, cada esquina, o aroma a café, as cores expostas na mercearia, a luz infantil e risonha da manhã, e o seu olhar, num espanto sincero, transparece a emoção que o habita.
Regressa a casa para almoçar. Leva os livros na mão. Um passo arrastado, que indicia o enfado interior. Será que lhe correu mal a escola? Não será bem isso. Talvez uma outra coisa. Anda cansado. Coube-lhe um papel tão difícil nesta existência: o de actor. Sim, de facto, é esse o seu papel. Aceitou-o sem reservas, sem questionar, como se tratasse de uma inevitabilidade. Triste fado, o seu, pensava, enquanto pontapeava as pedras que se lhe insurgiam no caminho. É tão complexa esta arte de representar! O público exigia-lhe uma personagem confiante, de certezas inabaláveis, mas só o habitam dúvidas. E ele sofre, porque as questões o soterram, mas o público é inflexível. Ainda há aquela colega, onde se demora o seu olhar, sobretudo na aula de Inglês, porque nessa altura o sol nos seus cabelos, nesse ponto deixa de haver tempo, e ele apenas queria comunicar este sentir. Nada mais. Talvez o público seja uma criação sua. Talvez em casa anseiem por um sinal deste sentir. Mas ele permanece em palco, e, desse modo, soma distância.
Sai ao entardecer para as compras. Leva a lista, elaborada pela mulher, no bolso. Já sente o cansaço do palco, mas, ainda assim, não o abandonou. Sente, no fundo, que jamais o abandonará. O passo decidido e fluente. Mas, em certos aspectos, denota-se uma desilusão de artista. Isto acontece quando a indiferença se sobrepõe aos aplausos. Entra no supermercado, tira um carrinho, e começa a preenchê-lo. Hoje habitam-no dúvidas de outra ordem. Mais de cariz matemático. Não menos lancinantes que as anteriores. Já tem com quem partilhar o sentir, se bem que seja apologista de certos recatos. Uma das queixas frequentes da sua mulher. O tempo é um inclemente devorador, e, na sua memória, cada vez mais raramente, lhe surge a imagem, numa longínqua aula de Inglês, de uns cabelos alumiados: essa memória derrota o tempo. A isso chama-se viver.
Após o jantar, sai para passear o cão. E não só. Também lhe facilita a digestão. Ela permanece diante do televisor (grita-lhe um: Vai com cuidado! Lembra-te da tua bacia!), e ele resmunga, na surdez de lábios fechados, por este desvelo das suas fraquezas. Talvez ainda um pouco de si no palco. Sim, há promessas que cumprimos. Talvez as mais oportunas. O cão na ânsia de rua, a puxá-lo, ele a tentar refrear os ímpetos do animal, uma luta diária e repetitiva, por fim, a porta abre-se, saem ambos para a noite, e, aí chegados, cada um, de certa forma, saboreia aquele resquício de liberdade. Ele, cada vez mais afastado dos palcos, compreende aquele instintivo anseio do cão. É apenas a natureza a cumprir-se: o animal com a lonjura. Se tivesse descido há mais tempo do palco, talvez… Sim, talvez, tivesse derrotado mais vezes o tempo. E tivesse aberto mais portas na vida. Agora é tarde. A compreensão só nos bate à porta, após a partida do ilusório. Já não ostenta no olhar um espanto sincero. Apenas um cansaço acumulado por uma teimosia vinda do desconhecido. Já não se revolta. Apenas encolhe os ombros. Compreende, agora, a condução cautelosa do pai. Àquela hora da manhã, talvez, parte dele, ainda povoasse o travesseiro. O pai sempre preferiu a frescura das sombras à inclemência quente da luz. Talvez, por isso, sorrisse com mais facilidade. É curioso: nunca lhe perguntou o porquê de uma mochila tão cheia.
terça-feira, 27 de outubro de 2020
sábado, 24 de outubro de 2020
Ecos de vozes idas
Neste momento, ia em viagem algures debaixo do céu do mundo. Sem pressa. No fundo, a melhor forma de se viajar. Gostava de viajar só. Sinal que gostava da sua companhia. Estes são os que reclinam a cabeça com facilidade. Aos outros, resta-lhes experimentar a contínua aspereza de cada travesseiro. Não há outra forma: nunca se encontra no mundo aquilo que não trazemos para ele. Mas ele, neste exacto momento, guiava na gratidão de um silêncio compassado. Fruía cada instante do percurso. Diante de si, abriu-se uma longa recta. Àquela hora matinal, ainda pouco trânsito. A visibilidade era boa, apesar dos resquícios de uma noite ida. Reparou, um pouco à frente, na berma da estrada, numa mão suplicante. Desacelerou espontaneamente, fruto de uma vontade de génese incógnita. Porquê? (Questionar-se-ia ele, mais tarde. Como resposta, apenas a memória de um gesto irreflexo, nada mais. Mas, ainda assim, tinha como resposta a memória de um gesto. Quantas vezes nem isso? Apenas os amargos frutos colhidos a jusante, por uma vontade obscura emergida do aparente nada.) Desse modo, imobilizou a viatura diante de uma mão estendida. Após três ou quatro frases de contextualização, a porta direita do carro abriu e fechou-se, e as preces de um gesto foram atendidas. Ele reiniciou a marcha. Iam para o mesmo destino. Só mais à frente, o diálogo foi retomado. Como se, de certa forma, houvesse a necessidade de um preâmbulo. É compreensível, neste caso, esta carência. Ninguém está de mão estendida, para um horizonte amanhecido, e, ainda a familiarizar-se com o interior da viatura, com a serenidade que ele ostentava no rosto (habitual naqueles que gostam de ir ao cinema sós), com aquela condução sem amanhãs, enceta um diálogo de naufrágio anunciado. Por sua vez, ele deixou que as coisas fluíssem, de mãos no volante e com o pensar no destino. Começou-se, como sempre acontece entre estranhos, ou para se retomar uma familiaridade algures perdida, por falar do tempo. Porque será? É um tema recorrente, como aquelas moedas que interessam sempre quando se trata de trocos, porque afecta a todos. Afinal, todos vivemos debaixo do mesmo céu, sim, é verdade, mas nem todos olhamos para cima… O diálogo foi-se instalando de forma natural, um pouco como aquelas melodias que, numa primeira fase, se anunciam, para, depois, nos enlevarem na sua corrente rumo a um jusante de reencontros. Ele, quando se apercebeu, falava de si. Tão raro, isto suceder. Nem com os rostos dos seus dias. Era comum censurarem-lhe a escassez de verbo. Ele retorquia apenas com um sorriso. E, interiormente, reencontrava a falibilidade da palavra. Sempre preferiu o gesto. Não sabe porquê, mas sempre achou que dura mais. Ocupa mais espaço de memória. Mas, hoje, no espaço interior do seu carro, redescobre o enlevo encadeado das palavras, como se saísse de si para as seguir, tal o seu encantamento. A viagem prosseguia num espaço e tempo balizados por emoções. Houve, ainda, tempo para um café. Um desses estabelecimentos, à beira da estrada, em que tudo assume um cariz transitório: como se fizesse, também, parte da viagem. No fundo, é parte integrante, quem ali pára é que procura esquecê-lo. Após o café, ouviram-se menos frases no interior amanhecido do carro. Algo se terá perdido. E ninguém o reencontrou. Talvez o ar matinal tenha arrefecido as emoções e despertado a razão (e as suas defesas naturais). Talvez, no café, o temor do contacto frontal dos rostos. Talvez a proximidade do fim. Deixou a outrora mão suplicante no seu destino. Despediu-se com um obrigado mecânico, como se saído de uma gravação, e afastou-se sem olhar para trás. Ele permaneceu, no interior da viatura, num espanto mudo. Ainda olhou para trás, mas nem um sinal de súplica, no vai e vem de vultos que, àquela hora, já preenchiam os passeios. A mão diluíra-se do seu horizonte. Já lhe povoava a memória. Ele ainda no espanto do sucedido nos instantes pretéritos. Havia frases que ainda povoavam o carro. Frases não, desculpem, sentires. Há quanto tempo ele não dizia quem era? Certamente, alguém espera, nalgum lugar, que ele o diga. Alguém sem gestos fugidios, sem entoações mecânicas, e que se sente diante dele. Talvez aí não sucumba à primeira súplica ilusória do destino.
quarta-feira, 21 de outubro de 2020
terça-feira, 20 de outubro de 2020
sábado, 17 de outubro de 2020
sábado, 10 de outubro de 2020
O silêncio contido da alma no adeus ao corpo
Acordou numa sala demasiado branca,
àquela hora iluminada apenas pela passividade indolente das frestas do estore,
que horas seriam? Pelo alaranjado da luz, pensou em despedidas… Mas as auroras
também se pintam pela timidez indecisa de uma cor intermédia. E ele deitado,
num estar além-tempo, uma voz de si na entoação de um conselho: Não te levantes, não te levantes… De
alguma forma, compreendia, sem sentir, o saber das palavras. Não se levantou.
Assim permaneceu, naquele estar do desconhecido, apenas com a tepidez familiar
da luz. Mas o rosto submerso na sombria alvura da divisão. Se ao menos um pouco
de calor em si… Por uns momentos, sim, até à leveza reconfortante de um sonho
sem corpo, deteve-se naqueles pregões iluminados de alvorecer. Se porventura um
lhe passeasse pelo rosto… Por fim, cedeu a uma lei gravítica que nos impele a
um regresso, sistemático, a algures de nós. No fundo, trata-se de uma queda.
Sim, um pouco isso. Cedemos a um peso de outra ordem, e abandonamo-nos ao
desamparo de uma viagem sem bússola nem mapa. Sim, a queda é o início de um
trajecto. E, no regresso, quantas vezes, não trazemos, nos alforges, dores e
mágoas adormecidas nos caminhos do mundo? Talvez no seu lugar tenhamos
depositado tempo: o único crédito da existência.
domingo, 4 de outubro de 2020
Cansaço
domingo, 27 de setembro de 2020
sábado, 26 de setembro de 2020
segunda-feira, 21 de setembro de 2020
Almoinhas Velhas
sábado, 19 de setembro de 2020
terça-feira, 15 de setembro de 2020
domingo, 13 de setembro de 2020
Quando o Sentir não se traduz em Verbo
Hoje vi-o a descer a rua. Há muito que o não via. Está mais magro. Mantém aquele recente ar absorto, próprio de quem se sabe em palco. Sim, cada saída é sempre um levantar de cortina. E ele sabe-o. A vida, por vezes, impõe-nos isso. Não há como lhe fugir: um palco! Há quem defenda que a vida é, em si mesma, uma representação. Discordo. A vida é uma totalidade, por conseguinte requer palcos e camarins. Observei-o, no longe da discrição. Estava arranjado, claro, a cortina subira, devia ir às compras, mas o passo, sim, o passo, denotava uma qualquer hesitação, que talvez estivesse com o meu olhar, ou, de facto, naquela recente magreza. Lá ia, rua abaixo. Nada via, apenas interior de si. O que significa absorto? Apenas olhar-se… Quando me apercebi, a cortina descera. Não fui a tempo dos aplausos. Já tinha passado. E eu, preguiçoso, ainda sentado na plateia. Levanto-me. Resolvo descer aos camarins. Talvez ele esteja por lá. Procuro-o. Não o encontro, apenas rostos desconhecidos. Um constante acotovelar, talvez da exiguidade do espaço, talvez da pressa de uma aparência… Para quê? Neste teatro, nunca se ouviu falar em regressos. Sim, só há uma porta, em todo o edifício. Só se entra uma vez… E quem sai, deixa um inominável atrás de si. Um rosto, uma voz, um gesto, um sorriso, que habitam o espaço de uma memória, e entre o subir e o descer do pano, tudo se turva, e a memória cede lugar à dúvida, e a questão brota num lugar de nome: demografia das ausências. Era neste espaço que ele se movia. O lugar dos absortos, dos que receiam a dúvida.
Neste caso, não havia espaço para o duvidar. Eu também a conhecera. Era uma actriz de fortes convicções. Sempre que estivéramos em palco, trazia uma questão à mesa. Sempre actual e polémica. Assim, assegurava a atenção da extasiada plateia. E longos e obstinados debates se desenrolavam sob luzes e olhares. Mas, logo que a cortina descia, e recolhíamos aos camarins, a obstinada actriz cedia lugar a uma mulher de espontâneas generosidades. O equívoco de muita gente, nos seus julgamentos liminares, deve-se à luz do palco. A luz cega. Não só o artista, mas sobretudo o espectador. É preciso, muitas vezes, a luz mortiça dos bastidores para compreender egos idos e humildades chegadas. E, nesta incessante caminhada, no interior deste velho teatro, balizada entre palco e camarins, raras vezes na plateia, perdemos rostos. Saem, quase sempre, na discrição de um ocaso estival...
quinta-feira, 10 de setembro de 2020
Os Invisíveis
Ouviram um barulho pela casa, passos e simultaneamente algo a ser arrastado, entreolharam-se, mas podia ser numa casa vizinha, gradualmente os passos a aumentar, a aumentar, os arrastares também, agora vozes, eles (em que parte da casa estariam?) já em espanto, a sair do quarto, do cimo das escadas viam um entra e sai constante, sujeitos a levar móveis, sofás, quadros, objectos, tudo a ser-lhes retirado sem um aviso, uma palavra, nada, a incredulidade inicial deu lugar à indignação, desceram as escadas, entretanto, para aí a meio, um sujeito cruza-se com eles, subia em direcção ao quarto, parecia nem vê-los, como se não existissem, tal o foco do seu olhar no cimo das escadas, estranharam a ausência, pelo menos, de um cumprimento, a mais elementar prova de educação, foram perpassados por um frio profundo quando se cruzaram com o sujeito na escada, no piso térreo havia perto de uma dezena de desconhecidos a retirar tudo o que vissem da casa, estavam incrédulos (Mas o que é isto? O que se passa? Estamos a ser alvos de um assalto?) com os acontecimentos, tentaram articular frases, porém, a voz sumira-se, de novo, entreolharam-se, apenas gestos a exprimir a impossibilidade do verbo, ele sossegou-a e indicou-lhe para não sair de onde estava, avançou ao encontro daquele ininterrupto entra e sai da sua casa, todavia, ou ignoravam-no ou não o viam, ninguém parecia dar pela sua presença como há pouco sucedera na escada...
terça-feira, 8 de setembro de 2020
domingo, 6 de setembro de 2020
quinta-feira, 3 de setembro de 2020
Janela para a noite
As viagens que mais perduram em nós são as que não realizámos, há uma que não pára de ganhar espaço em mim, como se uma condenação, uma viagem rumo a Norte, creio que nenhuma outra terá a mesma relevância na minha biografia, até pelas linhas que já lhe dediquei, uma viagem por realizar, de facto, a mais duradoura, talvez o título mais apropriado para esta crónica fosse “Uma viagem por realizar”, sem dúvida, porém, optei por outro, e não por acaso, a melhor fase da minha vida foi quando senti o sabor da noite, há algo de transcendente nas coisas sob o manto nocturno, tudo surge sob uma outra claridade, que o dia ofusca pela inclemência da luz, basta reflectir que impossível é um dos vocábulos mais inusuais ao luar, afinal é quando se levantam os sonhos...
quarta-feira, 2 de setembro de 2020
domingo, 30 de agosto de 2020
Ele era diferente! Havia nele, simultaneamente, uma alegria contagiante e uma tristeza melancólica, tão estranho… Por vezes, dava-lhe, subitamente, para revisitar lugares do passado, como se vivesse em vários tempos, não sei se me faço entender… Talvez fosse o contrário, e quisesse apenas trazer o ontem ao hoje.
in Harmonia
sábado, 29 de agosto de 2020
A desencantada procura por “um não sei o quê”
Desde que me lembro, sempre que chegava a um lugar novo, fosse para férias ou de visita, uma frase nascia-me (“Afinal, é só isto…”), a minha atenção com o além logo transformado num aquém assim que lá chegasse (“Afinal, é só isto…”), uma urgência de partir, mas não de regressar, afinal só se regressa a casa, talvez seja esse o meu problema, ainda não encontrei o lar, para aqui ando de dia em dia num crescente enjoo de tudo isto, o pior, creio, seja a consciência deste enjoo (o além logo transformado num aquém), nada me ater ao aqui, quantas vezes a inveja dos que partem, por se cumprirem, realizarem, talvez por se libertarem do enjoo de tudo isto, e que fardo, há uns tempos alguém me disse que as maiores tragédias e guerras que travei na vida serviram-me unicamente de distracção, a evidência de uma verdade leva o seu tempo, porém, esta foi quase imediata, não podia estar mais certo, de facto há tanto que me fujo, e desconheço o motivo...