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domingo, 13 de setembro de 2020

Quando o Sentir não se traduz em Verbo



Hoje vi-o a descer a rua. Há muito que o não via. Está mais magro. Mantém aquele recente ar absorto, próprio de quem se sabe em palco. Sim, cada saída é sempre um levantar de cortina. E ele sabe-o. A vida, por vezes, impõe-nos isso. Não há como lhe fugir: um palco! Há quem defenda que a vida é, em si mesma, uma representação. Discordo. A vida é uma totalidade, por conseguinte requer palcos e camarins. Observei-o, no longe da discrição. Estava arranjado, claro, a cortina subira, devia ir às compras, mas o passo, sim, o passo, denotava uma qualquer hesitação, que talvez estivesse com o meu olhar, ou, de facto, naquela recente magreza. Lá ia, rua abaixo. Nada via, apenas interior de si. O que significa absorto? Apenas olhar-se… Quando me apercebi, a cortina descera. Não fui a tempo dos aplausos. Já tinha passado. E eu, preguiçoso, ainda sentado na plateia. Levanto-me. Resolvo descer aos camarins. Talvez ele esteja por lá. Procuro-o. Não o encontro, apenas rostos desconhecidos. Um constante acotovelar, talvez da exiguidade do espaço, talvez da pressa de uma aparência… Para quê? Neste teatro, nunca se ouviu falar em regressos. Sim, só há uma porta, em todo o edifício. Só se entra uma vez… E quem sai, deixa um inominável atrás de si. Um rosto, uma voz, um gesto, um sorriso, que habitam o espaço de uma memória, e entre o subir e o descer do pano, tudo se turva, e a memória cede lugar à dúvida, e a questão brota num lugar de nome: demografia das ausências. Era neste espaço que ele se movia. O lugar dos absortos, dos que receiam a dúvida.

Neste caso, não havia espaço para o duvidar. Eu também a conhecera. Era uma actriz de fortes convicções. Sempre que estivéramos em palco, trazia uma questão à mesa. Sempre actual e polémica. Assim, assegurava a atenção da extasiada plateia. E longos e obstinados debates se desenrolavam sob luzes e olhares. Mas, logo que a cortina descia, e recolhíamos aos camarins, a obstinada actriz cedia lugar a uma mulher de espontâneas generosidades. O equívoco de muita gente, nos seus julgamentos liminares, deve-se à luz do palco. A luz cega. Não só o artista, mas sobretudo o espectador. É preciso, muitas vezes, a luz mortiça dos bastidores para compreender egos idos e humildades chegadas. E, nesta incessante caminhada, no interior deste velho teatro, balizada entre palco e camarins, raras vezes na plateia, perdemos rostos. Saem, quase sempre, na discrição de um ocaso estival...

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