Livros do Escritor

Livros do Escritor

sábado, 29 de novembro de 2025

Um não assunto




Há uns anos, relatei a ascensão dos medíocres, hoje deparamo-nos com os seus podres frutos, a figura que hoje vou descrever é um paradigma da mediocridade, tinha múltiplas formas de iniciar esta narrativa, estou, de facto, indeciso, bom, tenho de escolher, trata-se de uma sujeita a caminhar, em largos passos, para o ocaso da vida, de uma certa distância parece um oito, por algum motivo apelidam este o país das rotundas, pois estão manifestamente em todo o lado, mais uma com o cabelo pintado de amarelo, uma larguíssima percentagem das entradotas, não sei porquê, opta pelo amarelo para maquilhar os brancos, ignoram que o problema não está nos cabelos, mas no oito avistado à légua do corpo, por algum motivo apelidam este o país das rotundas, pois estão manifestamente em todo o lado, enfim, há lugares onde o bom-senso nem ousa bater à porta, esta é daquelas criaturas que, logo à primeira vista, de uma inteligência mínima, causa repulsa, uma pose de “dona do pedaço,” sedenta de toda e qualquer atenção, um sentar-se de lado com a perna cruzada, como se houvesse algum holofote a si dirigido, nem uma lâmpada fluorescente se acendia para iluminar tal degradação, ignoro a causa, também não pretendo conhecê-la, lá surge um rafeirito ou dois a bajulá-la, ela em regozijo, haja um lugar onde, sentada, de lado, com a perna-cruzada, seja atenção para alguém, nem que seja para rafeiritos, quem sabe rareie atenção noutros contextos, a carência é tramada, um discurso superficial, deveras atamancado, frase sim, frase não, debita o sofrível “pronto”, meu Deus, que escassez vocabular, a primeira vez que a ouvi debitar “pronto,” confesso ter olhado para ver se provinha, de facto, daquele enchido, de perna cruzada, com pose de “dona do pedaço,” os óculos no cocuruto, talvez tenha visto numa novela ou em alguma dessas múltiplas revistas para acéfalos, sim, possivelmente, lá concluiu que lhe assentava bem, ora é vê-la, no quotidiano, de painéis-solares sobre a cabeça com laivos de modernaça, simplesmente risível, o problema está um pouco abaixo, no oito avistado à légua do corpo, por algum motivo apelidam este o país das rotundas, pois estão manifestamente em todo o lado, ao segundo “pronto,” num espaço de dois minutos, a personagem estava inteiramente apresentada, só um ou dois rafeiritos fielmente a ouviam, como há uns anos relatei, os medíocres ascenderam, e os invertebrados curvam-se perante estas aberrações em busca de toda e qualquer migalha, mais um minuto e…, outro “pronto,” já me ria de mim para mim, ainda olhei os painéis-solares, sobre o cocuruto, para ver se aguentavam a enxurrada de “prontos,” lá permaneciam, imperturbáveis, talvez colados às toneladas de laca, questionei-me que livros lera para tão exíguo vocabulário, se é que lera algum, embora, de forma evidente, se lançasse para fora de pé a citar nomes de ouvido, como se familiares próximos, nem dois minutos volvidos e outro “pronto,” a ouvi-la, agora, só se mantinha fielmente um rafeirito em anuências, aquelas vulgaridades como se de revelações divinas se tratassem, uma ou duas migalhitas a quanto obrigam, não obstante a escassez de auditório, o oito sob os painéis solares lá continuava a debitar “prontos” circunscritos a um discurso de pré-escolar, noutra ocasião, assisti eu, foi confrontada com uma questão, desta vez, os painéis solares abanaram, nitidamente este oito não estava habituado a tal, foi vê-la reerguer-se naquela pose de “dona do pedaço,” sem jamais olhar a génese da questão, por norma, os medíocres não olham de frente, construir um discurso redondo de duas ou três frases, mais não lhe era exigível, os “prontos” já lhe eram demasiado plurais, para se escudar, e não se demovia, finalizava sempre com “Isso é um não assunto,” qualquer investida do seu interlocutor “Isso é um não assunto,” nem a cabeça abanava, não fossem os painéis solares se precipitarem, dizem que fala alto dos outros quando estão ausentes, previsível, todo o cão ou cadela ladra atrás de um portão, é bom que ganhe juízo, muito juizinho, afinal, trata-se de uma sujeita a caminhar, em largas passadas, para o ocaso da vida, e, nesta caminhada, há quem tenha o dom de colocar os medíocres no seu lugar muito rapidamente, com mais ou menos “pronto,” com ou sem óculos no cocuruto, talvez, isso sim, se providencie um rafeiro para ouvir as suas boçalidades como se revelações divinas, e a cada “pronto” ou “isso é um não assunto,” o rafeirito proclamar um sentido Ámen.



quarta-feira, 26 de novembro de 2025

A Porcachona e o Tintim


 

Uma questão que recorrentemente me colocam é: “Quando começou a escrever?” Só concebo uma resposta: “Desde que aprendi a olhar o mundo,” curiosamente nunca perguntaram a razão que me levou a preencher centenas e centenas de páginas em branco, pois bem, hoje revelá-la-ei, foi há mais de década e meia, um projecto para uma curta-metragem, o guião entregue a um boneco que ambicionava ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal dádiva, apesar disso, abnegou-se em cumprir com a narrativa da curta, até que, certa tarde, sou interpelado por uma das protagonistas “Peço desculpa, mas não vou dizer esta fala! É demasiado ridícula! Não lembra a ninguém! Assim, não vamos a lado nenhum! Por favor, escreva você…,” esta última frase ecoou-me na alma, “Por favor, escreva você…,” como se, desde que caminho por este lado, a aguardasse, “Por favor, escreva você…”, um chamamento de ordem-superior, diante da obscenidade de uma página em branco, não recuei, as palavras saíram com a naturalidade de quem há muito aguarda pela sua hora de luz, assim foi, mas uma questão subsiste: Qual foi a fala, demasiado ridícula, que a protagonista se recusou a verbalizar? Pois bem, “Vê lá se queres levar um tabefe…,” riso e consternação povoaram-me ao ler tal deixa, de facto, o boneco bem ambicionava ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal dádiva, é vê-lo andar diariamente com um livrito debaixo do braço, sempre confere um ar erudito, a melhor definição deste boneco proveio de um “dito seu amigo”: “É como a cortiça, está sempre à superfície;” confesso, ainda hoje, não ter ouvido melhor definição para esta figura, lá consegue, em todo o ambiente, passar incólume, senta-se e dialoga animadamente com Deus, o Diabo, arcanjos, demónios, e o que demais houver, embora distribua informação apenas com quem lhe permita estar, como a cortiça, à superfície das coisas, um autêntico dançarino, ora em reuniões, pelos cantos, com menopausas ambulantes, ora em estéreis conversas, sobre bola, política ou trivialidades, onde a sua opinião nunca o compromete, “É como a cortiça, está sempre à superfície;” como nunca se deu bem com volantes e pedais, é vê-lo sempre à cata de uma salvífica boleia, uma omnipresente e colorida camisa fora das calças, sempre disfarça as mais que notórias rotundas formas, um andar bamboleante que, para as más-línguas, levanta certas questões, deve ser só maledicência, afinal, pode simplesmente ir em busca de uma salvífica boleia, sinceramente era caso para questionar essas más-línguas: “Vejam lá se querem levar um tabefe?” O incessante enlear do destino levou esta personagem a cruzar-se e, claro, a ficar íntimo da Porcachona, uma obesa, com o cabelo pintado de amarelo, que arranha castelhano, divorciada, mais que previsível, quem aguentaria, por muito tempo, a Porcachona? Laivos de autoridade para quem o permite, como é óbvio, afinal de contas quem no seu perfeito juízo aceitaria um conselho, quanto mais uma ordem, da Porcachona? Há uns tempos, um familiar-directo alertou-me para quem, de facto, era a Porcachona, achei exagerado, hoje tiro-lhe o chapéu, mais uma menopausa ambulante, em conversas de canto com o boneco que tanto se bamboleia ao andar, a cansada história de falar dos outros para não serem falados, temos de compreender que alguém precisa de boleia e a Porcachona de um ouvinte, e ambos de maquilhar a frustração das suas existências, um aspecto intrigante da vida, que me tem feito reflectir, é como as mediocridades se atraem, parece haver uma ordem invisível das coisas que, de forma irreversível, acaba por juntá-las, a compreensão advém da distância, dei por mim, há uns dias, a observar estas duas tétricas figuras de uma salutar dezenas de metros: o boneco, com o omnipresente livrito debaixo do braço, sempre confere um ar erudito, o sorrisito lodoso, a Porcachona, com o cabelo pintado de amarelo, à sua frente, não percebi se grunhia em castelhano, umas calças, não obstante o XXL, apertadas, de onde sobressaíam as marcas do pára-quedas a que devia chamar de cuecas, desculpem, pela dimensão acreditem era, sem dúvida, um pára-quedas, e para ali ficaram, o suficiente para expelir o seu veneno, pouco mais têm para dar ao mundo, por fim, a Porcachona entrou, da distância até comiseração senti, que homem, no seu perfeito juízo, se podia interessar por uma Porcachona, com o cabelo pintado de amarelo, que usa um pára-quedas no lugar de cuecas? O boneco lá seguiu o seu caminho, cabisbaixo, hoje não arranjou a salvífica boleia, pode não perceber de volantes e pedais, mas ao menos bamboleia-se como poucos, e se alguma má-língua insinuar algo, resta questionar: “Vejam lá se querem levar um tabefe?”

domingo, 23 de novembro de 2025

O Sinédrio

 


Nunca, como no hoje, o Sinédrio esteve tão presente, apenas as vestes divergem em formas e colorações, as personagens tétricas subsistem, a essência prevalece: aterrorizar quem ouse a diferença; tal como há dois mil anos, as sombras edificadoras do Sinédrio são as mesmas: não fosse este o seu reino, afinal, o Inferno não é um lugar assim tão longe do aqui; há uns dias, um conhecido viu-se perante esta realidade, presidia ao Sinédrio, no lugar de Caifás, algumas coisas lá se alteraram, embora as personagens tétricas subsistam, uma cinquentona, sem qualquer dívida com a beleza, a indumentária, nem as carnes flácidas e descaídas conseguia maquilhar, algures entre um catálogo do Lidl e os saldos do Continente, a cabeleira grisalha mal disfarçada pela pasta alcatroada que amiúde jorrava cabeça abaixo, o efeito final simplesmente anedótico, parecia uma palmeira andante, o olhar servil tão aquém de um vislumbre de inteligência, daquelas sujeitas a quem um cumprimento já se afigura um esforço demasiado, pela ansiosa procura por adequadas palavras, mediante o interlocutor, para a escassa massa cinzenta, se estava empossada de Caifás era porque interessava às sombras do hoje, a seu lado uma sujeita aquém de pastas alcatroadas para ocultar a grisalha cabeleira, uma omnipresente expressão de enjoo, indício da latente falta de diversão num determinado contexto, o avolumar dos anos só lhe adensa a enjoada face (Quando terá tacteado o céu pela última vez? Se é que alguma vez o vislumbrou…), perante aquele enjoado focinho, estas questões emergem com naturalidade, havia um sujeito, de sotaque hispânico, que nitidamente se gostava de ouvir, por norma, dali só saem esterilidades, no entanto, pouco se pode fazer, assim que lhe é dada a palavra, frases ocas, redondas e inférteis, embora o seu olhar cintile ao ouvir-se, acaba por enternecer, sobretudo pelo sotaque hispânico, de que nitidamente se orgulha, não obstante as décadas longe de tal berço (Como ainda o mantém? Talvez fosse uma marca autoral… A inquestionável demanda por um original carácter…), frases balizadas entre o seu escasso conhecimento das coisas, mas quem o ouvisse, sempre em espanto, o sotaque hispânico somado ao regozijo de se ouvir era demasiado para o comum dos mortais, por estes dias, o Sinédrio convoca dois elementos exteriores prontinhos a apontar o dedo aos que devem ser decretados réus, assim foi com o meu conhecido, um dedo em riste por… Pois, por…? Não conseguiu especificar, todavia o olhar do Sinédrio sobre si, era onde incidia o acusatório dedo, todavia, ele sem a menor vocação para Jesus Cristo, prontamente virou a mesa, percepcionou, de imediato, a génese do acusatório dedo, das aberrações do hoje, cabelos-pintados, desvios comportamentais, inversão de valores, não querem fazer parte do mundo, pelo contrário, pretendem que o mundo se curve às suas nebulosas perturbações, quem nasce com coluna-vertebral dificilmente vacila perante qualquer aberração, o dedo viu-se confrontado, começou a ficar titubeante, desculpas por não encontrar sílabas para sustentar a mínima acusação, os restantes membros do Sinédrio em silêncio, nem vestígios do sotaque hispânico, a omnipresente expressão de enjoo curvada para o tampo da mesa, ao menos, por uns segundos, a realidade mais luminosa, somente a cinquentona, sem qualquer dívida com a beleza, a indumentária, nem as carnes flácidas e descaídas conseguia maquilhar, algures entre um catálogo do Lidl e os saldos do Continente, em esforços para reverter a capitulação do acusatório dedo que, no fim, lá acabou por correr atrás do meu conhecido em esforços para se desculpar, ao saber deste episódio, questionei-me quantos soçobram face ao Sinédrio do hoje, demasiados, sem dúvida, demasiados, tal como há dois mil anos, as sombras edificadoras do Sinédrio são as mesmas, tudo estruturado para triturar quem ouse a diferença, felizmente ainda os há, com a dignidade e o peito de se levantarem, relembrar ao acusatório dedo a sua insignificância e que jamais o mundo se deve curvar a nebulosas perturbações.

sábado, 22 de novembro de 2025

Entropia

 


Só quis dali sair, assim que se viu na rua, expirou longamente, o pensar incessante, sentia-se, por fim, a uma distância segura das coisas, horas antes, ali entrar com a filha, de três anos, ao colo, a testa em chamas, ainda lhe ligou, a alertar para o estado da criança, mas nada, era sexta-feira, há dois ou três meses que, com a desculpa de reuniões mais reuniões, sempre ausente, ela sabia dos jantares e sobremesas com a estagiária do escritório, o aparelho do hoje apenas uma biografia andante, bastou-lhe menos de uma dezena de minutos de distracção da parte dele, ao contrário do expectável, não sentiu raiva, dor, desilusão, apenas uma distância segura das coisas, desconhece o momento, sabia, no entanto, que o deixara de amar, simplesmente, por ele apenas ternura, pelo que foi, nada mais, deixou as coisas seguirem o seu rumo por múltiplas razões, algumas, convenhamos, pouco dignas (comodismo, preguiça, conveniência, vergonha…), parte de si acreditava que ele se apercebera, daí, ao contrário do expectável, raiva, dor, desilusão, apenas uma distância segura das coisas, começou a sentir um aperto no peito quando se cruzava com o colega, recém-divorciado, havia nele um desamparo que lhe despertava emoções há muito adormecidas, tão distintas de correr, com a filha nos braços, devido à testa em chamas, por acaso, numa dessas entediantes tardes de trabalho, encontraram-se junto à máquina de café, ele prontificou-se a encher ambos os copos, agradeceu-lhe com um sorriso algures entre a gratidão e um convite ao diálogo, havia nele um desamparo que lhe despertava emoções há muito adormecidas, como ela desejava saltar a imperativa e sempre incómoda conversa de circunstância sobre a qualidade do café, a temperatura lá fora, o volume de expediente, o seu olhar doloroso e perdido encantaram-na, percebeu-lhe a latente necessidade de diálogo, de um porto de segurança para o encapelado mar da existência, gostou da sonoridade da voz, da desajeitada timidez dos gestos, no entanto, teria de ser ele a entreabrir uma porta, um princípio de que jamais abdicaria, com a desculpa do carro na oficina, aguardou que lhe oferecesse boleia, não tardou, “Não é nenhum incómodo! Tenho muito gosto…,” percebeu-lhe zelo no carro, sempre ajudava a disfarçar os anos, o interior, ao contrário do seu, impecavelmente limpo, talvez o olhar doloroso e perdido fosse uma construção sua, assim que a marcha se iniciou, um incómodo silêncio entre eles, ouviam-se a procurar ansiosamente palavras para construir uma frase que permitisse romper aquele opressivo silêncio, foi ela que “Não queres pôr música?”, “Sim, pode ser…,” de repente, uns acordes melosos, o olhar dele ainda mais doloroso e perdido, ela “Estás bem?,” a questão já pairava e a resposta a nascer-lhe, a canção iluminava-lhe outro rosto, da mulher que o deixara, parece ter regressado a um amor de juventude, segundo se dizia, de bolsos abastados pela herança dos pais, para prolongar o delírio nada como eximir cálculos matemáticos, ele agora sozinho no apartamentozito, de um quarto, no primeiro-andar, com vista para um candeeiro de rua, foi como se parte de si lhe fosse arrancada, para superar a dor convenceu-se de que ela regressaria,  ninguém o demovia, não retirou uma única foto dela do apartamentozito, de um quarto, no primeiro-andar, com vista para um candeeiro de rua, nem tudo lhe podia ser abruptamente extirpado, a verdade é que ela se sentiu uma intrusa, aqueles melosos acordes não eram para si, acabou por ser ele a colocar na primeira rádio com música, mais impessoal e despachado seria difícil, ela exprimiu a sua repulsa olhando para o relógio, se há pouco desejava saltar a imperativa e sempre incómoda conversa de circunstância sobre a qualidade do café, a temperatura lá fora, o volume de expediente, agora só lhe queria virar as costas, ser servida com o debitar musical de uma qualquer rádio constituiu um enormíssimo insulto, como se ela fosse uma vulgaridade, um pechisbeque de trazer por casa, “Estás atrasada para alguma coisa?”, a sua repulsa, afinal, não lhe passou despercebida, “A minha filha está quase a sair da escola…,” filhos, compromissos para a vida, assim lhe dizia um rotundo adeus, não que ele se importasse, já saudoso das fotografias, do candeeiro de rua avistado da janela e do desesperado regresso de uma ideia, que insistia em não abandonar, nos dias seguintes, ambos evitaram a máquina de café, semanas depois, já nem se cumprimentavam, ninguém cumprimenta equívocos, foi até ao café em frente, sentou-se a uma mesa, enquanto aguardava pelo empregado, olhou o incessante trânsito de vultos pelo passeio, reflectiu se, na realidade, há equívocos ou sublimados desejos de tudo uma outra coisa, uma voz ensonada fê-la regressar, “Ora, o que vai ser?”, uma saída de tudo isto, pensou, uma saída de tudo isto, pediu um café, ao contrário da filha, precisava de algo quente para despertar, a verdade é que sentiu inveja de nem uma canção ser para alguém, quanto mais fotos suas, espalhadas por uma casa, a aguardar pelo seu regresso, nem que das janelas se avistasse um candeeiro de rua, a chávena de café lá veio, “É mais alguma coisa?”, “Ser uma canção para alguém… Acha que demora muito?”

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

Dos sonhos por realizar

 


Nunca partilhou a sua maior ambição, nem com a mulher, volta e meia, nos entediantes passeios de fim-de-semana, a lugares tão cansados que até as pedras quase cumprimentavam, uma palavra a nascer-lhe “Sabes…”, ela pronta “Sei o quê? Então, desembucha!”, ele logo a fechar-se, a olhar um indefinível ponto na distância, onde de facto desejaria estar, “Emudeceste?”, sabia-a persistente, “Não é nada, estava a apetecer-me um gelado… Queres?”, “Estás a querer enganar quem?! Assististe ao embranquecer de cada fio dos meus cabelos, mesmo assim, após mais de quatro décadas sob o mesmo tecto, julgas que não conheço, pela melodia da voz, por onde te caminha o pensar?”, estava encurralado, ela não desistiria, “Não é nada, só me está a apetecer um gelado…,” a verdade longe de cones e sabores, foi numa longínqua noite de infância, talvez fosse Verão, folheava um álbum de banda-desenhada, e uma ideia a nascer-lhe “Um dia, hei-de escrever um livro,” assim, de aparente fonte incógnita, “Um dia, hei-de escrever um livro,” a imagem de o seu nome numa capa, uma história por si narrada, seduziram-no, logicamente, na altura, atirou esse objectivo para o futuro, de uma outra forma, para a imaginação, quando o entardecer da vida lhe espreitasse pela janela, no entanto, o objectivo manteve-se iniludível, palpitante, o curso da vida indiferente a sonhos, objectivos, capas ou histórias, o trabalho possível para tecto sobre a cabeça e pão na mesa, o casamento com a filha dos compadres dos pais, em verdade, nunca questionou os seus sentimentos por ela, o inverso também seria facto, seduzido pela imposição familiar, deixou-se conduzir, a timidez dela cativou-o, uns anitos de namoro até a maioridade, o casamento, a vinda para a cidade, ele para uma estação-de-correios, ela numa sapataria, ambos a olhar para baixo, envelopes e sapatos, a timidez dela um adereço que, após o casamento, logo foi dispensado, de firmes convicções a contrastar com as profundas incertezas dele, dúvidas se teria o dom da paternidade, ela a anunciar-lhe, em júbilo, a gravidez, nesse momento, sentiu que a vida o ultrapassava, viviam num segundo-andar, sem elevador, pelo menos tinham dois quartos, os vencimentos davam para os gastos, ele sonhava com um automóvel, teria de esperar, “Esquece essa história do carro! Em breve, teremos mais uma boca para alimentar! Já não tens idade para sonhos! Desce à realidade…,” as frases saíam-lhe assim, imperativas, “Já não tens idade para sonhos!”, questionou se, alguma vez, teve tempo para sonhar, foi, mais ou menos, por esta altura, que se iniciou a sua compreensão de que sempre fora ultrapassado pela vida, certa noite, gritos de choro mesmo ao seu lado, acordou algures entre o sobressalto e um desespero resignado, ela em sono profundo, tirou o bebé do berço para o acalmar, viu a cena de uma distância segura, todos os seus actos obedeciam a uma mecânica que o ultrapassava e muito desconhecia, de onde estava não se reconhecia naquele sujeito, com uma criança nos braços, de madrugada, tantos sonhos por despertar, tal o atropelo da vida, passados dois anos, ela, de novo, em júbilo, a anunciar-lhe nova gravidez, percepcionou, de imediato, que as esmeradas poupanças, para o carro, seriam canalizadas noutra direcção, em mais uma boca para alimentar, nem uma sílaba ousou, a verdade é que no estoicismo há nobreza, na resignação apenas fraqueza, ele quedava-se por esta última, houve complicações no parto, ela teve de secar a fonte muito a contragosto, ele, com o filho mais velho pela mão, acompanhou de perto as incidências, e o tempo, talvez a maior ironia da vida, por sempre nos iludir a cada instante, pensamos no seu vagar, num ápice, lá se foi uma década, até que, ao olharmos para trás, tudo se cinge a, quem sabe, um minuto, e será demasiado, ainda hoje continuam no mesmo segundo-andar, sem elevador, pelo menos tinham dois quartos, um deles livre, os filhos seguiram os passos do destino, um casado, também com dois filhos, o outro já divorciado, só com uma filha, as reformas davam para os gastos, não, ele nunca conseguiu o almejado carro, em tempos ainda equacionou comprar um em segunda-mão, ela prontamente interveio “És doido ou quê? Sabes lá se já teve algum acidente! E devias saber que subtraem quilómetros! Deixa-te de aventuras, homem, deixa-te de aventuras… As nossas poupanças servem para uma fatalidade com uma doença! E querias o carro para quê? Temos tudo, graças a Deus, perto de casa…,” vezes houve em que, da janela, ele em sonhos com o fim da rua onde moravam, nunca chegou a saber onde termina essa estrada, só por duas ocasiões, no Verão, foram passar as férias no litoral, ventoso e bravio, próximo da sua cidade, os filhos ainda crianças, de resto, poupar com o intuito de antecipar o pagamento da casa, poupar para a faculdade dos filhos, “Dizem que os livros e as propinas são uma fortuna!”, nem uma sílaba ousou, a verdade é que no estoicismo há nobreza, na resignação apenas fraqueza, ele quedava-se por esta última, nos tempos recentes, poupar para qualquer emergência de saúde, e a nascer-lhe a certeza de ter sido poupado à vida, restava-lhe algo, a imagem de o seu nome numa capa, uma história por si narrada, e um desejo “Um dia, hei-de escrever um livro,” a dúvida se talento para “Um dia, hei-de escrever um livro,” abriu a janela, o segundo-andar não lhe permitia largos horizontes, questionou-se “Onde terminaria aquela estrada?”, voltou para dentro, sentou-se à mesa, fechou os olhos, ao volante do seu carro percorreu aquela estrada na esperança de reencontrar sonhos caídos num lugar do ontem.

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

O que perdura no fim de tudo?

 



Queria, como se deve, começar por dizer o seu nome, mas, confesso, já não me lembro. Passou algum tempo, é verdade. E o nosso tempo nunca é o tempo dos outros. Sabe, esta história nunca me abandonou, vou tentar relatá-la com a exactidão possível, se bem que a memória, como sabemos, tem mais sombras que luz… Estava naquela altura da vida em que olhamos os adultos algures entre a compaixão e a reverência, depois do almoço, aos fins-de-semana, cumpria-se escrupulosamente o rito do café, os meus pais e um casal vizinho, cada passada parecia obedecer a um minucioso escrutínio, de facto, o nosso tempo nunca é o tempo dos outros, quando os acompanhava, seguia ou mais à frente ou atrás, consoante o universo em que habitava, mas nunca ao lado, acho que, em determinado momento, jurei nunca habitar o universo dos adultos, até hoje julgo ter cumprido na perfeição com este desígnio, não há nada mais aborrecido e enfadonho que um adulto, e há aqueles que nascem adultos, assim, sem direito a réplica, conheci alguns, entre carteiras de escola e brincadeiras na rua, creio que, se sentassem com os meus pais a uma mesa de café, teriam uma daquelas conversas balizadas por bocejos e olhares de náufrago, sobre politiquices ou dinheiro, apesar de terem a minha altura, mas nasceram assim, com aquela idade, se pudessem alterar, acredito que não o fariam, lá está, são adultos, enfadonhos, aborrecidos, sem um rasgo de energia, até as costas denunciam prematuramente a futura curvatura, apesar do meu repúdio, não deixava de me espantar, como dizia, depois do almoço, aos fins-de-semana, cumpria-se escrupulosamente o rito do café, os meus pais e um casal vizinho, certo Sábado, atento na conversa da vizinha para a minha mãe, “Pois, sabe como é, continua a falar como se ele ainda ali estivesse”, dessa vez, desacelerei o passo para que me alcançassem, lembro-me, ia um pouco mais à frente, talvez fosse habitado pelo universo de um super-herói veloz, é possível, mas aquelas palavras, não sei porquê, fascinaram-me (“continua a falar como se ele ainda ali estivesse”), havia por ali qualquer coisa dos universos que eu abraçava a cada instante, diametralmente oposto à rigidez enfadonha, aborrecida, sem um rasgo de energia, dos adultos, apesar de se referirem, como logo percebi, à vizinha do rés-do-chão, uma velhota simpática que enviuvara há uns meses, como simpatizava com ela, tinha sempre um sorriso ou uma palavra simpática na algibeira para me oferecer, daí o meu interesse pela conversa, e aquelas palavras (“continua a falar como se ele ainda ali estivesse”), a conversa prosseguiu, a minha mãe tentou quase justificar a simpática velhota do rés-do-chão “É compreensível… Já viu, décadas e décadas de casamento… Deve ser uma dor imensa… Nem posso imaginar! Meu Deus, coitada da senhora… Vou ver se, ainda hoje, lhe faço uma visita…”, a vizinha persistiu na sua indignação “Repare, eu compreendo tudo isso. E até me compadeço da sua dor. Mas daí a falar com fantasmas, vai uma distância… Isso já é um problema de saúde pública.” Neste ponto, percebi que a voz da minha mãe se metamorfoseara: “Mas quem lhe falou de tal coisa?” A questão saiu-lhe rápida e, pela entoação, percebi aquele tom particular como quando olha o meu quarto da porta num final de tarde, também não passou despercebido à vizinha que se apressou a aligeirar as coisas “Diz-se para aí… Já sabe como é esta gente! Ouvem sempre tudo, e sabem sempre tudo… Não ligue!” E, de facto, a vizinha foi bem-sucedida na sua tentativa de aligeirar as coisas e logo a atenção da minha mãe em algo distinto decorrente da conversa, contudo, a minha ali ficou, para sempre, como um obstinado escolho numa corrente invernosa. Com o tempo, cruzei-me cada vez menos com a simpática velhota do rés-do-chão, não obstante os meus esforços em sentido contrário, nessas escassas vezes, achei-a subtraída, como se uma parte dela tivesse partido para longe, sabe, manteve sempre a educação, mas não deixei de reparar que, pelas suas algibeiras, já não havia um sorriso ou uma palavra simpática para me oferecer, e eu que tanto queria falar com ela, somente um pouco da sua atenção, queria esclarecer se, de facto, tinha poderes para falar com fantasmas, quantos se podem gabar de ter um vizinho assim? Nunca fui esclarecido, como deve calcular, a minha mãe nunca chegou a concretizar a sua visita, quando lhe perguntava se ia hoje a casa da simpática velhota do rés-do-chão, ou me respondia “Vou amanhã, hoje já é tarde”, ou então “Qual é o teu interesse se vou visitar a vizinha?”, neste ponto, calava-me, se falasse, sentia que estava a trair a identidade secreta da minha simpática vizinha. Até que, demasiado tarde, compreendi que a deixara de ver. Ainda hoje não sei quem se lembrou, lá no prédio, que não a via sair há, pelo menos, duas semanas, regressava eu da escola, à porta do prédio, um cenário de luzes e viaturas, por fim, era o cinema que vinha ao meu encontro, assim que me percebo a escassos metros da entrada, surge-me minha mãe, a envolver-me com o seu braço, logo o mundo ficava um lugar longe, apenas umas vozes, esparsas, me chegavam, “Coitada! Dizem que morreu para ali, sentada”, “Sentada?!”, “Sim, foi o cheiro que nos chamou a atenção. Encontrámo-la na cadeira onde dizem que ele se sentava a ler”, “Mas foi…”, “Não, nada disso, acho que partiu de saudade”, “E ninguém deu pela sua falta?”, “Pois, como vê, não tinha ninguém”, “É verdade, pelos vistos, nem vizinhos que a soubessem morta, há uma semana, numa cadeira…”, “Sabe como é esta vida…”, “A vida não sei, mas olhe que a morte aprendi a saber”, “Não censure! Fez melhor?”, no que restou desse dia, não ouvi a voz de ninguém por minha casa, meus pais permaneceram em silêncio, eu, não sei porquê, achei que não devia ir além do meu quarto, pelo ar, toda a noite, apenas um cântico silencioso, sabe, ainda hoje, acho que muitos “partem de saudade”, acredite que, se isso me acontecer, quero que figure na minha lápide: “Partiu de saudade”.