Há uns anos, relatei a
ascensão dos medíocres, hoje deparamo-nos
com os seus podres frutos, a figura que hoje vou descrever é um paradigma da
mediocridade, tinha múltiplas formas de iniciar esta narrativa, estou, de
facto, indeciso, bom, tenho de escolher, trata-se de uma sujeita a caminhar, em
largos passos, para o ocaso da vida, de uma certa distância parece um oito, por
algum motivo apelidam este o país das rotundas, pois estão manifestamente em
todo o lado, mais uma com o cabelo pintado de amarelo, uma larguíssima
percentagem das entradotas, não sei porquê, opta pelo amarelo para maquilhar os
brancos, ignoram que o problema não está nos cabelos, mas no oito avistado à légua
do corpo, por algum motivo apelidam este o país das rotundas, pois estão
manifestamente em todo o lado, enfim, há lugares onde o bom-senso nem ousa
bater à porta, esta é daquelas criaturas que, logo à primeira vista, de uma
inteligência mínima, causa repulsa, uma pose de “dona do pedaço,” sedenta de toda e qualquer atenção, um
sentar-se de lado com a perna cruzada, como se houvesse algum holofote a si
dirigido, nem uma lâmpada fluorescente se acendia para iluminar tal degradação,
ignoro a causa, também não pretendo conhecê-la, lá surge um rafeirito ou dois a
bajulá-la, ela em regozijo, haja um lugar onde, sentada, de lado, com a
perna-cruzada, seja atenção para alguém, nem que seja para rafeiritos, quem
sabe rareie atenção noutros contextos, a carência é tramada, um discurso
superficial, deveras atamancado, frase sim, frase não, debita o sofrível “pronto”, meu Deus, que escassez vocabular, a
primeira vez que a ouvi debitar “pronto,” confesso ter olhado para ver se provinha, de facto, daquele enchido, de
perna cruzada, com pose de “dona do pedaço,” os óculos no cocuruto, talvez tenha visto numa novela ou em alguma dessas
múltiplas revistas para acéfalos, sim, possivelmente, lá concluiu que lhe
assentava bem, ora é vê-la, no quotidiano, de painéis-solares sobre a cabeça
com laivos de modernaça, simplesmente risível, o problema está um pouco abaixo,
no oito avistado à légua do corpo, por algum motivo apelidam este o país das
rotundas, pois estão manifestamente em todo o lado, ao segundo “pronto,” num espaço de dois minutos, a personagem
estava inteiramente apresentada, só um ou dois rafeiritos fielmente a ouviam,
como há uns anos relatei, os medíocres ascenderam, e os invertebrados curvam-se
perante estas aberrações em busca de toda e qualquer migalha, mais um minuto e…,
outro “pronto,” já me ria de mim para
mim, ainda olhei os painéis-solares, sobre o cocuruto, para ver se aguentavam a
enxurrada de “prontos,” lá
permaneciam, imperturbáveis, talvez colados às toneladas de laca, questionei-me
que livros lera para tão exíguo vocabulário, se é que lera algum, embora, de
forma evidente, se lançasse para fora de pé a citar nomes de ouvido, como se
familiares próximos, nem dois minutos volvidos e outro “pronto,” a ouvi-la, agora, só se mantinha fielmente
um rafeirito em anuências, aquelas vulgaridades como se de revelações divinas
se tratassem, uma ou duas migalhitas a quanto obrigam, não obstante a escassez
de auditório, o oito sob os painéis solares lá continuava a debitar “prontos”
circunscritos a um discurso de
pré-escolar, noutra ocasião, assisti eu, foi confrontada com uma questão, desta
vez, os painéis solares abanaram, nitidamente este oito não estava habituado a
tal, foi vê-la reerguer-se naquela pose de “dona do pedaço,” sem jamais olhar a génese da questão, por
norma, os medíocres não olham de frente, construir um discurso redondo de duas
ou três frases, mais não lhe era exigível, os “prontos” já lhe eram demasiado plurais, para se escudar,
e não se demovia, finalizava sempre com “Isso é um não assunto,” qualquer investida do seu interlocutor “Isso
é um não assunto,” nem a cabeça abanava,
não fossem os painéis solares se precipitarem, dizem que fala alto dos outros
quando estão ausentes, previsível, todo o cão ou cadela ladra atrás de um portão, é bom que ganhe juízo, muito juizinho, afinal, trata-se
de uma sujeita a caminhar, em largas passadas, para o ocaso da vida, e, nesta
caminhada, há quem tenha o dom de colocar os medíocres no seu lugar muito
rapidamente, com mais ou menos “pronto,” com ou sem óculos no cocuruto, talvez, isso sim, se providencie um
rafeiro para ouvir as suas boçalidades como se revelações divinas, e a cada “pronto”
ou “isso é um não assunto,” o rafeirito
proclamar um sentido Ámen.
Livros do Escritor
sábado, 29 de novembro de 2025
Um não assunto
quarta-feira, 26 de novembro de 2025
A Porcachona e o Tintim
Uma questão que recorrentemente me colocam
é: “Quando
começou a escrever?” Só concebo uma
resposta: “Desde que aprendi a olhar o mundo,” curiosamente nunca perguntaram a razão que me levou a preencher centenas
e centenas de páginas em branco, pois bem, hoje revelá-la-ei, foi há mais de
década e meia, um projecto para uma curta-metragem, o guião entregue a um boneco
que ambicionava ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal
dádiva, apesar disso, abnegou-se em cumprir com a narrativa da curta, até que,
certa tarde, sou interpelado por uma das protagonistas “Peço desculpa, mas
não vou dizer esta fala! É demasiado ridícula! Não lembra a ninguém! Assim, não
vamos a lado nenhum! Por favor, escreva você…,” esta última frase ecoou-me na alma, “Por favor, escreva você…,” como se, desde que caminho por este lado, a
aguardasse, “Por favor, escreva você…”, um
chamamento de ordem-superior, diante da obscenidade de uma página em branco,
não recuei, as palavras saíram com a naturalidade de quem há muito aguarda pela
sua hora de luz, assim foi, mas uma questão subsiste: Qual foi a fala, demasiado
ridícula, que a protagonista se recusou a verbalizar? Pois bem, “Vê lá se
queres levar um tabefe…,” riso e
consternação povoaram-me ao ler tal deixa, de facto, o boneco bem ambicionava
ter o dom da escrita, destino vilão que não lhe conferiu tal dádiva, é vê-lo
andar diariamente com um livrito debaixo do braço, sempre confere um ar
erudito, a melhor definição deste boneco proveio de um “dito seu amigo”: “É
como a cortiça, está sempre à superfície;” confesso,
ainda hoje, não ter ouvido melhor definição para esta figura, lá consegue, em
todo o ambiente, passar incólume, senta-se e dialoga animadamente com Deus, o
Diabo, arcanjos, demónios, e o que demais houver, embora distribua informação apenas
com quem lhe permita estar, como a cortiça, à superfície das coisas, um
autêntico dançarino, ora em reuniões, pelos cantos, com menopausas ambulantes, ora
em estéreis conversas, sobre bola, política ou trivialidades, onde a sua
opinião nunca o compromete, “É como a cortiça, está sempre à superfície;” como nunca se deu bem com volantes e pedais,
é vê-lo sempre à cata de uma salvífica boleia, uma omnipresente e colorida camisa
fora das calças, sempre disfarça as mais que notórias rotundas formas, um andar
bamboleante que, para as más-línguas, levanta certas questões, deve ser só
maledicência, afinal, pode simplesmente ir em busca de uma salvífica boleia,
sinceramente era caso para questionar essas más-línguas: “Vejam lá se
querem levar um tabefe?” O incessante
enlear do destino levou esta personagem a cruzar-se e, claro, a ficar íntimo da
Porcachona, uma obesa, com o cabelo pintado de amarelo, que arranha castelhano,
divorciada, mais que previsível, quem aguentaria, por muito tempo, a
Porcachona? Laivos de autoridade para quem o permite, como é óbvio, afinal de
contas quem no seu perfeito juízo aceitaria um conselho, quanto mais uma ordem,
da Porcachona? Há uns tempos, um familiar-directo alertou-me para quem, de
facto, era a Porcachona, achei exagerado, hoje tiro-lhe o chapéu, mais uma menopausa
ambulante, em conversas de canto com o boneco que tanto se bamboleia ao andar, a
cansada história de falar dos outros para não serem falados, temos de
compreender que alguém precisa de boleia e a Porcachona de um ouvinte, e ambos
de maquilhar a frustração das suas existências, um aspecto intrigante da vida,
que me tem feito reflectir, é como as mediocridades se atraem, parece haver uma
ordem invisível das coisas que, de forma irreversível, acaba por juntá-las, a
compreensão advém da distância, dei por mim, há uns dias, a observar estas duas
tétricas figuras de uma salutar dezenas de metros: o boneco, com o omnipresente
livrito debaixo do braço, sempre confere um ar erudito, o sorrisito lodoso, a
Porcachona, com o cabelo pintado de amarelo, à sua frente, não percebi se
grunhia em castelhano, umas calças, não obstante o XXL, apertadas, de onde
sobressaíam as marcas do pára-quedas a que devia chamar de cuecas, desculpem,
pela dimensão acreditem era, sem dúvida, um pára-quedas, e para ali ficaram, o
suficiente para expelir o seu veneno, pouco mais têm para dar ao mundo, por
fim, a Porcachona entrou, da distância até comiseração senti, que homem, no seu
perfeito juízo, se podia interessar por uma Porcachona, com o cabelo pintado de
amarelo, que usa um pára-quedas no lugar de cuecas? O boneco lá seguiu o seu
caminho, cabisbaixo, hoje não arranjou a salvífica boleia, pode não perceber de
volantes e pedais, mas ao menos bamboleia-se como poucos, e se alguma má-língua
insinuar algo, resta questionar: “Vejam lá se querem levar um tabefe?”
domingo, 23 de novembro de 2025
O Sinédrio
Nunca, como no hoje, o Sinédrio esteve tão
presente, apenas as vestes divergem em formas e colorações, as personagens
tétricas subsistem, a essência prevalece: aterrorizar quem ouse a diferença;
tal como há dois mil anos, as sombras edificadoras do Sinédrio são as mesmas:
não fosse este o seu reino, afinal, o Inferno não é um lugar assim tão longe do
aqui; há uns dias, um conhecido viu-se perante esta realidade, presidia ao
Sinédrio, no lugar de Caifás, algumas coisas lá se alteraram, embora as
personagens tétricas subsistam, uma cinquentona, sem qualquer dívida com a
beleza, a indumentária, nem as carnes flácidas e descaídas conseguia maquilhar,
algures entre um catálogo do Lidl e os saldos do Continente, a cabeleira
grisalha mal disfarçada pela pasta alcatroada que amiúde jorrava cabeça abaixo,
o efeito final simplesmente anedótico, parecia uma palmeira andante, o olhar
servil tão aquém de um vislumbre de inteligência, daquelas sujeitas a quem um
cumprimento já se afigura um esforço demasiado, pela ansiosa procura por adequadas
palavras, mediante o interlocutor, para a escassa massa cinzenta, se estava
empossada de Caifás era porque interessava às sombras do hoje, a seu lado uma
sujeita aquém de pastas alcatroadas para ocultar a grisalha cabeleira, uma
omnipresente expressão de enjoo, indício da latente falta de diversão num
determinado contexto, o avolumar dos anos só lhe adensa a enjoada face (Quando
terá tacteado o céu pela última vez? Se é que alguma vez o vislumbrou…),
perante aquele enjoado focinho, estas questões emergem com naturalidade, havia
um sujeito, de sotaque hispânico, que nitidamente se gostava de ouvir, por
norma, dali só saem esterilidades, no entanto, pouco se pode fazer, assim que
lhe é dada a palavra, frases ocas, redondas e inférteis, embora o seu olhar
cintile ao ouvir-se, acaba por enternecer, sobretudo pelo sotaque hispânico, de
que nitidamente se orgulha, não obstante as décadas longe de tal berço (Como
ainda o mantém? Talvez fosse uma marca autoral… A inquestionável demanda por um
original carácter…), frases balizadas entre o seu escasso conhecimento das
coisas, mas quem o ouvisse, sempre em espanto, o sotaque hispânico somado ao
regozijo de se ouvir era demasiado para o comum dos mortais, por estes dias, o
Sinédrio convoca dois elementos exteriores prontinhos a apontar o dedo aos que
devem ser decretados réus, assim foi com o meu conhecido, um dedo em riste por…
Pois, por…? Não conseguiu especificar, todavia o olhar do Sinédrio sobre si,
era onde incidia o acusatório dedo, todavia, ele sem a menor vocação para Jesus
Cristo, prontamente virou a mesa, percepcionou, de imediato, a génese do
acusatório dedo, das aberrações do hoje, cabelos-pintados, desvios
comportamentais, inversão de valores, não querem fazer parte do mundo, pelo
contrário, pretendem que o mundo se curve às suas nebulosas perturbações, quem
nasce com coluna-vertebral dificilmente vacila perante qualquer aberração, o
dedo viu-se confrontado, começou a ficar titubeante, desculpas por não
encontrar sílabas para sustentar a mínima acusação, os restantes membros do
Sinédrio em silêncio, nem vestígios do sotaque hispânico, a omnipresente
expressão de enjoo curvada para o tampo da mesa, ao menos, por uns segundos, a
realidade mais luminosa, somente a cinquentona, sem qualquer dívida com a
beleza, a indumentária, nem as carnes flácidas e descaídas conseguia maquilhar,
algures entre um catálogo do Lidl e os saldos do Continente, em esforços para
reverter a capitulação do acusatório dedo que, no fim, lá acabou por correr
atrás do meu conhecido em esforços para se desculpar, ao saber deste episódio,
questionei-me quantos soçobram face ao Sinédrio do hoje, demasiados, sem
dúvida, demasiados, tal como há dois mil anos, as sombras edificadoras do
Sinédrio são as mesmas, tudo estruturado para triturar quem ouse a diferença,
felizmente ainda os há, com a dignidade e o peito de se levantarem, relembrar
ao acusatório dedo a sua insignificância e que jamais o mundo se deve curvar a
nebulosas perturbações.
sábado, 22 de novembro de 2025
Entropia
Só quis dali sair, assim que se viu na rua, expirou longamente, o pensar incessante, sentia-se, por fim, a uma distância segura das coisas, horas antes, ali entrar com a filha, de três anos, ao colo, a testa em chamas, ainda lhe ligou, a alertar para o estado da criança, mas nada, era sexta-feira, há dois ou três meses que, com a desculpa de reuniões mais reuniões, sempre ausente, ela sabia dos jantares e sobremesas com a estagiária do escritório, o aparelho do hoje apenas uma biografia andante, bastou-lhe menos de uma dezena de minutos de distracção da parte dele, ao contrário do expectável, não sentiu raiva, dor, desilusão, apenas uma distância segura das coisas, desconhece o momento, sabia, no entanto, que o deixara de amar, simplesmente, por ele apenas ternura, pelo que foi, nada mais, deixou as coisas seguirem o seu rumo por múltiplas razões, algumas, convenhamos, pouco dignas (comodismo, preguiça, conveniência, vergonha…), parte de si acreditava que ele se apercebera, daí, ao contrário do expectável, raiva, dor, desilusão, apenas uma distância segura das coisas, começou a sentir um aperto no peito quando se cruzava com o colega, recém-divorciado, havia nele um desamparo que lhe despertava emoções há muito adormecidas, tão distintas de correr, com a filha nos braços, devido à testa em chamas, por acaso, numa dessas entediantes tardes de trabalho, encontraram-se junto à máquina de café, ele prontificou-se a encher ambos os copos, agradeceu-lhe com um sorriso algures entre a gratidão e um convite ao diálogo, havia nele um desamparo que lhe despertava emoções há muito adormecidas, como ela desejava saltar a imperativa e sempre incómoda conversa de circunstância sobre a qualidade do café, a temperatura lá fora, o volume de expediente, o seu olhar doloroso e perdido encantaram-na, percebeu-lhe a latente necessidade de diálogo, de um porto de segurança para o encapelado mar da existência, gostou da sonoridade da voz, da desajeitada timidez dos gestos, no entanto, teria de ser ele a entreabrir uma porta, um princípio de que jamais abdicaria, com a desculpa do carro na oficina, aguardou que lhe oferecesse boleia, não tardou, “Não é nenhum incómodo! Tenho muito gosto…,” percebeu-lhe zelo no carro, sempre ajudava a disfarçar os anos, o interior, ao contrário do seu, impecavelmente limpo, talvez o olhar doloroso e perdido fosse uma construção sua, assim que a marcha se iniciou, um incómodo silêncio entre eles, ouviam-se a procurar ansiosamente palavras para construir uma frase que permitisse romper aquele opressivo silêncio, foi ela que “Não queres pôr música?”, “Sim, pode ser…,” de repente, uns acordes melosos, o olhar dele ainda mais doloroso e perdido, ela “Estás bem?,” a questão já pairava e a resposta a nascer-lhe, a canção iluminava-lhe outro rosto, da mulher que o deixara, parece ter regressado a um amor de juventude, segundo se dizia, de bolsos abastados pela herança dos pais, para prolongar o delírio nada como eximir cálculos matemáticos, ele agora sozinho no apartamentozito, de um quarto, no primeiro-andar, com vista para um candeeiro de rua, foi como se parte de si lhe fosse arrancada, para superar a dor convenceu-se de que ela regressaria, ninguém o demovia, não retirou uma única foto dela do apartamentozito, de um quarto, no primeiro-andar, com vista para um candeeiro de rua, nem tudo lhe podia ser abruptamente extirpado, a verdade é que ela se sentiu uma intrusa, aqueles melosos acordes não eram para si, acabou por ser ele a colocar na primeira rádio com música, mais impessoal e despachado seria difícil, ela exprimiu a sua repulsa olhando para o relógio, se há pouco desejava saltar a imperativa e sempre incómoda conversa de circunstância sobre a qualidade do café, a temperatura lá fora, o volume de expediente, agora só lhe queria virar as costas, ser servida com o debitar musical de uma qualquer rádio constituiu um enormíssimo insulto, como se ela fosse uma vulgaridade, um pechisbeque de trazer por casa, “Estás atrasada para alguma coisa?”, a sua repulsa, afinal, não lhe passou despercebida, “A minha filha está quase a sair da escola…,” filhos, compromissos para a vida, assim lhe dizia um rotundo adeus, não que ele se importasse, já saudoso das fotografias, do candeeiro de rua avistado da janela e do desesperado regresso de uma ideia, que insistia em não abandonar, nos dias seguintes, ambos evitaram a máquina de café, semanas depois, já nem se cumprimentavam, ninguém cumprimenta equívocos, foi até ao café em frente, sentou-se a uma mesa, enquanto aguardava pelo empregado, olhou o incessante trânsito de vultos pelo passeio, reflectiu se, na realidade, há equívocos ou sublimados desejos de tudo uma outra coisa, uma voz ensonada fê-la regressar, “Ora, o que vai ser?”, uma saída de tudo isto, pensou, uma saída de tudo isto, pediu um café, ao contrário da filha, precisava de algo quente para despertar, a verdade é que sentiu inveja de nem uma canção ser para alguém, quanto mais fotos suas, espalhadas por uma casa, a aguardar pelo seu regresso, nem que das janelas se avistasse um candeeiro de rua, a chávena de café lá veio, “É mais alguma coisa?”, “Ser uma canção para alguém… Acha que demora muito?”
sexta-feira, 21 de novembro de 2025
quarta-feira, 19 de novembro de 2025
domingo, 16 de novembro de 2025
sábado, 15 de novembro de 2025
quinta-feira, 13 de novembro de 2025
Dos sonhos por realizar
Nunca partilhou a sua maior ambição, nem
com a mulher, volta e meia, nos entediantes passeios de fim-de-semana, a
lugares tão cansados que até as pedras quase cumprimentavam, uma palavra a
nascer-lhe “Sabes…”, ela
pronta “Sei o quê? Então, desembucha!”, ele
logo a fechar-se, a olhar um indefinível ponto na distância, onde de facto
desejaria estar, “Emudeceste?”, sabia-a
persistente, “Não é nada, estava a apetecer-me um gelado… Queres?”, “Estás
a querer enganar quem?! Assististe ao embranquecer de cada fio dos meus
cabelos, mesmo assim, após mais de quatro décadas sob o mesmo tecto, julgas que
não conheço, pela melodia da voz, por onde te caminha o pensar?”, estava encurralado, ela não desistiria, “Não
é nada, só me está a apetecer um gelado…,” a
verdade longe de cones e sabores, foi numa longínqua noite de infância, talvez
fosse Verão, folheava um álbum de banda-desenhada, e uma ideia a nascer-lhe “Um
dia, hei-de escrever um livro,” assim, de
aparente fonte incógnita, “Um dia, hei-de escrever um livro,” a imagem de o seu nome numa capa, uma
história por si narrada, seduziram-no, logicamente, na altura, atirou esse
objectivo para o futuro, de uma outra forma, para a imaginação, quando o
entardecer da vida lhe espreitasse pela janela, no entanto, o objectivo manteve-se
iniludível, palpitante, o curso da vida indiferente a sonhos, objectivos, capas
ou histórias, o trabalho possível para tecto sobre a cabeça e pão na mesa, o
casamento com a filha dos compadres dos pais, em verdade, nunca questionou os
seus sentimentos por ela, o inverso também seria facto, seduzido pela imposição
familiar, deixou-se conduzir, a timidez dela cativou-o, uns anitos de namoro
até a maioridade, o casamento, a vinda para a cidade, ele para uma
estação-de-correios, ela numa sapataria, ambos a olhar para baixo, envelopes e
sapatos, a timidez dela um adereço que, após o casamento, logo foi dispensado,
de firmes convicções a contrastar com as profundas incertezas dele, dúvidas se
teria o dom da paternidade, ela a anunciar-lhe, em júbilo, a gravidez, nesse
momento, sentiu que a vida o ultrapassava, viviam num segundo-andar, sem
elevador, pelo menos tinham dois quartos, os vencimentos davam para os gastos,
ele sonhava com um automóvel, teria de esperar, “Esquece essa história do
carro! Em breve, teremos mais uma boca para alimentar! Já não tens idade para
sonhos! Desce à realidade…,” as frases
saíam-lhe assim, imperativas, “Já não tens idade para sonhos!”, questionou se, alguma vez, teve tempo para
sonhar, foi, mais ou menos, por esta altura, que se iniciou a sua compreensão
de que sempre fora ultrapassado pela vida, certa noite, gritos de choro mesmo
ao seu lado, acordou algures entre o sobressalto e um desespero resignado, ela
em sono profundo, tirou o bebé do berço para o acalmar, viu a cena de uma
distância segura, todos os seus actos obedeciam a uma mecânica que o
ultrapassava e muito desconhecia, de onde estava não se reconhecia naquele
sujeito, com uma criança nos braços, de madrugada, tantos sonhos por despertar,
tal o atropelo da vida, passados dois anos, ela, de novo, em júbilo, a
anunciar-lhe nova gravidez, percepcionou, de imediato, que as esmeradas
poupanças, para o carro, seriam canalizadas noutra direcção, em mais uma boca
para alimentar, nem uma sílaba ousou, a verdade é que no estoicismo há nobreza,
na resignação apenas fraqueza, ele quedava-se por esta última, houve
complicações no parto, ela teve de secar a fonte muito a contragosto, ele, com
o filho mais velho pela mão, acompanhou de perto as incidências, e o tempo,
talvez a maior ironia da vida, por sempre nos iludir a cada instante, pensamos
no seu vagar, num ápice, lá se foi uma década, até que, ao olharmos para trás,
tudo se cinge a, quem sabe, um minuto, e será demasiado, ainda hoje continuam
no mesmo segundo-andar, sem elevador, pelo menos tinham dois quartos, um deles
livre, os filhos seguiram os passos do destino, um casado, também com dois
filhos, o outro já divorciado, só com uma filha, as reformas davam para os
gastos, não, ele nunca conseguiu o almejado carro, em tempos ainda equacionou
comprar um em segunda-mão, ela prontamente interveio “És doido ou quê?
Sabes lá se já teve algum acidente! E devias saber que subtraem quilómetros!
Deixa-te de aventuras, homem, deixa-te de aventuras… As nossas poupanças servem
para uma fatalidade com uma doença! E querias o carro para quê? Temos tudo,
graças a Deus, perto de casa…,” vezes
houve em que, da janela, ele em sonhos com o fim da rua onde moravam, nunca chegou
a saber onde termina essa estrada, só por duas ocasiões, no Verão, foram passar
as férias no litoral, ventoso e bravio, próximo da sua cidade, os
filhos ainda crianças, de resto, poupar com o intuito de antecipar o pagamento
da casa, poupar para a faculdade dos filhos, “Dizem que os livros e as
propinas são uma fortuna!”, nem uma
sílaba ousou, a verdade é que no estoicismo há nobreza, na resignação apenas
fraqueza, ele quedava-se por esta última, nos tempos recentes, poupar para qualquer
emergência de saúde, e a nascer-lhe a certeza de ter sido poupado à vida,
restava-lhe algo, a imagem de o seu nome numa capa, uma história por si
narrada, e um desejo “Um dia, hei-de escrever um livro,” a dúvida se talento para “Um dia, hei-de
escrever um livro,” abriu a janela, o
segundo-andar não lhe permitia largos horizontes, questionou-se “Onde
terminaria aquela estrada?”, voltou para
dentro, sentou-se à mesa, fechou os olhos, ao volante do seu carro percorreu
aquela estrada na esperança de reencontrar sonhos caídos num lugar do ontem.
quarta-feira, 12 de novembro de 2025
quarta-feira, 5 de novembro de 2025
O que perdura no fim de tudo?


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