Hoje
saiu-lhe uma frase que ouvira repetidamente da mãe, sentiu-se incomodada, um
travo de derrota em si, até a entoação foi similar, tarde ou cedo começamos a
emitir frases ouvidas repetidamente de nossos pais, trata-se de uma inevitabilidade,
desde há três meses, após receber um convite para ser madrinha de casamento da
sua melhor amiga, a filha andava em alvoroço, o motivo maior não se prendia com
o vestido a usar, poucas coisas estão à superfície do acontecer, o seu tumulto
prendia-se com o facto de a sua melhor amiga se casar e ela nem um namorado no
horizonte, aquele casamento era manifestamente um espelho da sua infelicidade, terminou
o último namoro ao descobrir que há meses era traída, no hoje tudo parece estar
interligado em certos contextos apesar de, na realidade, sermos cada vez mais
insulares, foi num desses contextos, de aparente ligação, que ela viu uma
fotografia dele com um rosto feminino pousado no ombro, a incredulidade inicial
deu lugar ao seu lado detectivesco, ampliou a fotografia e logo percebeu mãos
dadas e expressões sonhadoras a contemplar o alaranjado horizonte, estavam numa
concorrida esplanada, nem lhe deu oportunidade de explicações, após verificar o
relógio que ele envergava, sua prenda de aniversário há cinco meses, limitou-se
a reencaminhar-lhe a foto com a frase “Sê muito feliz!,” lacónica,
de imediato, ele em tentativas de contacto, antes ela em cuidados de o
bloquear, tarde ou cedo tocaria lá em casa, antecipou, junto dos pais, que não
haveria mais conversa, não suportou a humilhação, ao se deparar com a foto, uma
frase da melhor amiga, a que se vai casar, regressou-lhe,
iam ou vinham de qualquer lado, e “Está tudo bem entre vocês?,” assim,
do nada, pensou que fosse alimento de diálogo, apenas isso, nem ousou responder
“Por que não haveria de estar?,” limitou-se a um sonhador “Claro que
sim,” mais à frente a melhor amiga, a que se vai casar, insiste “Está
mesmo tudo bem entre vocês?,” se um pouco mais de atenção à insistência, ao
silabar, por fim, à expressão angustiada
da melhor amiga, a que se vai casar, compreenderia o aviso que lhe estava a ser
transmitido, nem ousa imaginar a malícia das conversas à sua volta, os olhares
de comiseração, no fim, reste-lhe a dignidade, saiu mais subtraída, nem que seja
nos sonhos, essa é a verdade, menos de uma semana depois, ele conseguiu
abordá-la na rua, sabia os seus trajectos diários, ouvia-o, embora olhasse um
estranho, foi uma experiência inquietante, há umas semanas partilhavam
intimidades, de repente, em pleno passeio, sob a luz da manhã, olhava um
desconhecido, nem a voz lhe era familiar, advinha de uma demasiada lonjura, ele
falou tanto quanto gesticulou, ela “Sê feliz…,” ainda
ele ousou segurar-lhe no braço, como se lhe apelasse à razão e simultaneamente ao
reencontrar da química da pele, enfrentou-lhe o olhar com a devida indiferença “Sê
feliz…,” apenas, percebeu-lhe um indisfarçável espanto pela sua obstinação,
virou-lhe costas e seguiu, algo em si a alertava que voltaria a encontrar fotos
dele, em algum lugar concorrido, de mãos dadas e com o rosto de uma estranha
pousado no ombro, ele ficou desamparado no passeio, não mais a procurou, soube,
pela melhor amiga, a que vai casar, que ela, semanas depois, foi procurar outro
ombro onde depositar o rosto, que ele sofreu bastante, esteve semanas sem sair
de casa, houve quem temesse por uma tragédia, mas há uma indubitável dignidade
no suicídio, muito para além das capacidades de tão patética criatura, só teceu
um comentário “A vida é muito irónica…,” sabia o quanto de si a filha legara
a esta relação, não gostava do sujeito, havia nele um indisfarçável traço de
baixeza, nunca o partilhou, sentiu não ter esse direito, era a vida da filha,
foi com respeito que encarou o alvoroço da filha no papel de madrinha de
casamento da sua melhor amiga, assumiu o compromisso e procura cumpri-lo
escrupulosamente, apesar de tão grande dor lhe
escurecer os dias, há umas semanas, num Sábado, resolveu oferecer um chá às
amigas da paróquia, chegou, para o efeito, a comprar um novo serviço de chá,
uma nova toalha-de-mesa, tudo meticulosamente delineado, biscoitos-de-manteiga,
doces de vários sabores, pães de diferentes tipos, agendou para as dezasseis e
trinta, a filha incansável no auxílio para que nada faltasse, o facto de estar
ocupada mitigava a tão grande dor que lhe escurecia os dias, dezasseis e
trinta, em ponto, desse Sábado, mãe e filha tinham tudo preparado ao ínfimo
pormenor, a chaleira ao lume, os doces abertos (morango, amora, tomate, pêssego…),
pacotinhos de manteiga espalhados ao longo da mesa, broa de milho, pão de
centeio, pãezinhos de leite, em fatias, sobre múltiplos pratos, fiambre, presunto,
paio, dezasseis e quarenta, dezasseis e quarenta e cinco, nem um ecoar da
campainha, desligou o fogão, a filha viu o rosto da mãe gradualmente a
turvar-se, perdeu a conta às vezes que ela foi até à janela ver se…, dezassete
e cinco, dezassete e quinze, o chá arrefecido, sobre o fogão, começou a
levantar a mesa, a filha prontamente a secundou sem emitir qualquer comentário,
às dezoito horas, após tudo arrumado, a mãe “Sabes o que me espanta? Nem
oferecerem uma justificação para a sua ausência… Que bom a tua avó não assistir
a esta decadência… Que bom…,” desde essa tarde, a mãe mudou de paróquia, compreendeu
que não podia estar na Casa do Senhor ladeada de gente que desconhece o valor
da Palavra, um convite só requer dois monossílabos Sim ou Não, ao
convite do chá, na tarde de Sábado, todas optaram pelo primeiro, embora ignorassem
o materializar do mesmo, ou tê-lo-iam perdido da memória no decorrer dessa
semana ou, à última da hora, não lhes apetecesse, a mãe lá percebeu que o
cumprir da Palavra equivale à consideração que temos pela pessoa, simplesmente
isso, daí o seu crescente respeito pela filha ao verificar os seus esforços
para cumprir um Sim emitido em tempos onde não havia tão grande dor a lhe
escurecer os dias.

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