Já ele vislumbrava a meta, onde se lhe subtraía impreterivelmente uma bela maquia, o carrinho-das-compras avançava com dificuldade devido ao peso, quando, numa das infindáveis esquinas da vida, quase embate noutro vindo em sentido contrário, dirigido por uma mulher, aproximava-se do ocaso da vida, lia-se-lhe, à distância, sofrimento na expressão, não derrota, mas muito sofrimento, era conhecida dele, prontamente a evitou cumprimentar, ela obviamente também o reconheceu, optou por secundá-lo e o seu olhar noutra direcção, ele, na juventude, fora vizinho da actual idosa de expressão sofrida, embora, na altura ela ostentasse um semblante muito distante de dores e sofrimentos, casada, com dois filhos, ignorava, na totalidade, os conceitos de trabalho e de cumprir qualquer horário, era o marido que sustentava a casa, ambos os filhos em colégios particulares, de facto, só assim cumpriam os mínimos para progredir na escolaridade, não tinham manifestamente quaisquer dívidas com a inteligência, dois calhaus que se mobilizavam ao sabor dos ditames da época, nada mais, por ali nenhuma luz sombrearia algo, ele de cigarro omnipresente na boca, sempre lhe dava um ar reflexivo, mal emitia uma sílaba logo se dissipavam quaisquer vestígios de reflexões, a irmã era o resultado da soma do terror de qualquer mulher: fealdade e gordura; com tanto complexo, a alma não poderia ser muito luminosa, bem pelo contrário, o reservatório de todas as vezes em que se olhava ao espelho do olhar dos outros derramados sobre si, mais nebuloso é difícil, por fim, o marido, uma criatura a meio-caminho entre um mangas-de-alpacas e um trolha, em verdade, era um peixeiro, é possível que pelas docas outras mercadorias desaguassem, pois, é possível, por ali tudo que era novidade ostentavam, do carro à roupa, da televisão aos móveis, da mota ao relógio, enfim, vidas de superfície, o tempo lá providenciou que viessem à tona as verdadeiras pescarias, é possível que pelas docas outras mercadorias desaguassem, a queda foi grande, décadas depois de terem sido vizinhos, ele foi apanhá-la, como vendedora, numa loja de um centro-comercial do subúrbio, assim que o viu, tratou logo de assegurar “Estou aqui apenas a fazer um favor a uma amiga,” até foi enternecedor, em tempos de uma galopante desumanização, alguém peremptoriamente afirmar “Estou aqui apenas a fazer um favor a uma amiga,” respondeu-lhe com um sorriso irónico, nunca apreciou aquelas vidas de superfície, sentiu-se reconfortado pelo facto de as verdadeiras pescarias virem à tona, em certa ocasião, chegou a ver, amparado pela mulher, em dificuldades passeio fora, a criatura a meio-caminho entre um mangas-de-alpacas e um trolha, em verdade, era um peixeiro, como as coisas mudam no espaço do viver, após a viuvez, o acumular de envelopes com números a serem liquidados, ela viu-se forçada a conhecer dois conceitos: trabalho e cumprir horário; apesar de ocultar uma dignidade restituída através de idiotices como “Estou aqui apenas a fazer um favor a uma amiga,” os dois calhaus que se mobilizavam ao sabor dos ditames da época, sem quaisquer dívidas com a inteligência, não eram obra do acaso, de alguma procedência veio o facto de por ali nenhuma luz sombrear algo, como sempre acontece nestes contextos, de caixas e carrinhos-de-compras, próximos da meta, o olhar avidamente em busca da caixa menos concorrida, quase uma capacidade inata, assim o fizeram e partiram rumo àquela que só tinha uma mulher com um cesto na mão, por fatalidade tratava-se de uma conhecida dela, sorriram-se, dois, três, quatro segundos depois, já falavam de trabalho, aquando dos cumprimentos, ele limitou-se a um movimento vertical da cabeça e a um ligeiro rosnar, como detestava essa criatura, a razão, neste caso, estava totalmente do seu lado, já tacteava os quarenta, casada, dois filhos, no entanto, de uma total histeria, no desmesurado volume da verborreia, quase audível a um quarteirão, no incessante gesticular, e a temática: somente trabalho, trabalho e trabalho… Ele, por muito que tentasse, já não encontrava, em si, vestígios de compaixão para tais frustradas, uma quarentona, casada, dois filhos, encontra uma colega, com o marido, nas compras, e logo lhe começa a vomitar questões de trabalho, trabalho e trabalho, há muito ele sabia que, nem por um segundo, haveria porta-de-entrada para outra temática, a mulher, como muito simpatizava com a histérica, tendia a desculpá-la (“Coitada, ela é muito ansiosa… Mas, asseguro-te, é boa pessoa! Podes ter a certeza! E isso é o mais importante…), ele, por muito que tentasse, apenas via uma sujeita, cuja ruralidade se lhe gritava em cada detalhe, histérica, mal-educada, muito limitada intelectualmente, a vomitar lugares-comuns sobre a única temática que lhe era possível, mesmo aí, tudo muito superficial, nenhuma frase ali debitada transparecia a mais singela reflexão, a agrura dele, face a estas criaturas limitadas intelectualmente, reside num lugar lá atrás, ainda na sua juventude, ao compreender que os burros são bem mais felizes, daí a sua inveja, a rapariga da caixa já lhe havia passado os dois ou três artigos que trazia no cesto, e a histérica permanecia, de costas, com a sua incessante e audível verborreia acompanhada do largo gesticular, ele interveio com prazer e apontou para a caixa, a histérica conseguiu arrumar, num saco, os dois ou três artigos, pagá-los e jamais cortar o seu monólogo, era disso que se tratava, ela limitava-se maioritariamente a anuir, aqui ou acolá, lá emitia uma frase, deu por si, de repente, a reflectir nas centenas de livros que lera, será que, algum dia, alguém conseguiria traduzir por palavras uma criatura assim? Uma sujeita, cuja ruralidade se lhe gritava em cada detalhe, histérica, mal-educada, muito limitada intelectualmente, a vomitar lugares-comuns sobre a única temática que lhe era possível, mesmo aí, tudo muito superficial, nenhuma frase ali debitada transparecia a mais singela reflexão, a repulsa dominou-o, lamentou o carrinho-de-compras cheio, como um grilhão a vedar-lhe quaisquer possibilidades de horizonte, uma cansada questão regressou-lhe: “Por que teima a vida em nos contemplar com os indesejados enquanto ardilosamente oculta os que nos acompanham em cada expiração…?”

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