Livros do Escritor

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quinta-feira, 19 de junho de 2025

Histórias sem história III


 

Assim que desligou o carro, já estacionado em frente ao prédio, sentiu um enormíssimo alívio, se lhe perguntassem a razão, por muito que tentasse, não traduzia o sentir, desde que saíram do super-mercado, entre arrumar as compras na bagageira e o percurso até casa, ambos em silêncio, ainda, por ali, vestígios da sujeita, cuja ruralidade se lhe gritava em cada detalhe, histérica, mal-educada, muito limitada intelectualmente, a vomitar lugares-comuns sobre a única temática que lhe era possível, mesmo aí, tudo muito superficial, nenhuma frase ali debitada transparecia a mais singela reflexão, a repulsa ainda não o abandonara por completo, do lado dela algum azedume pelo facto de ser uma conhecida sua e de não lhe denotar o mínimo esforço em ser polido, saíram e foram até à bagageira para retirar a dezena de sacos, com o tempo as coisas tendem a tornar-se mais pesadas, não fosse viver a aprendizagem do regresso à terra, foram interrompidos por uma vizinha, passeava o cão, logo se virou para ela, é natural, era por ali que as frases mais se demoravam, tacteava os setenta, divorciada há mais de três décadas, uma filha, padecia de surdez, usava um aparelho invisível para a maioria, cigarro omnipresente na boca, o penteado parecia obra do veterinário, talvez ela e cão numa tosquia simultânea,  do mais ridículo que se podia avistar no horizonte humano, e o pior era o seu indesmentível orgulho naquilo, para entendimento do leitor parecia ostentar uma cápsula, bem cimentada, sobre a cabeça, também neste caso era visível a simpatia dela para com tão excêntrica figura, a paixão, de ambas, pelos quadrúpedes de cauda esvoaçante e língua de fora, agilizava e de que maneira o verbo, ele percebeu, de imediato, que o transporte da dezena de sacos ficaria a seu cargo, de certa forma sentiu-se apaziguado por tragar sozinho esse cálice, as últimas radiografias, à coluna  dela, não prenunciavam manhãs luminosas, enquanto ia e vinha, ouvia frases esparsas, sobre o cão, as férias da filha, os saldos de uma loja de roupa que ambas apreciavam, ela ficou nervosa e desagradada ao vê-lo carregar os dez sacos sozinho, não ousou interromper o diálogo, sabia há muito do seu desígnio em protegê-la adicionado ao inato orgulho masculino, força, bravura e cavalheirismo, felizmente ainda era dos que bebeu dignos valores, embora o último electrocardiograma indiciasse alguma preocupação, a médica peremptória:  “Deve evitar todo e qualquer esforço! Não se pode esquecer disto! Jamais! Olhe que, na sua idade, pode ser fatal… Lembre-se: sofre de insuficiência cardíaca! Muita atenção ao que põe no prato e aos esforços… Nesta fase da vida, com uma cardiomiopatia dilatada, não pode, de todo, correr quaisquer riscos…”; como se sentia culpada por ali estar, na conversa, a vê-lo maquilhar, no rosto, o esforço de carregar saco atrás de saco, a certa altura, limitou-se a anuir, as frases sobre o cão, as férias da filha, os saldos de uma loja de roupa que ambas apreciavam, deixaram-lhe de chegar, por fim, ele só se aproximou para fechar a bagageira, os olhares deles tudo disseram: amor e orgulho: há mais?

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