Estava parado num semáforo de fim-de-semana, não sei se Sábado ou Domingo de tarde, olhava passeios, quando me pareceu vê-lo, por ali me demorei, sem dúvida, era ele, mais velho do que o rosto trazido na memória, claro, mas reconhecível, ao contrário de outros, passeava um cão, a diferença maior pelo Inverno dos cabelos, de resto, nem vestígios da típica barriga lusitana, nem da curvatura própria do sedentarismo, ainda se lhe percebia ontem no hoje, não sei porquê, talvez o que de pior por lá havia, aquela arrogância estupidificante da juventude que decreta certezas como se o mundo fosse um velho conhecido, pareceu-me ainda haver traços bem visíveis, na sua expressão, de múltiplas certezas, pois, pareceu-me, continuei a acompanhar-lhe os passos, nisto, uma buzina, há hábitos que não descansam, percebo que o verde já surgira, arranco, mas resolvo estacionar logo que me seja possível, não foi preciso muito, nem quarenta metros andei, quando um carro denuncia o que se me afigurou uma tentativa de marcha-atrás para sair de um lugar, a viatura soluçava a cada centímetro de asfalto, reparei que, no interior, estavam dois casais de idosos, cavalheiros à frente, damas atrás, etiqueta de uma época em que o homem ainda era o senhor e o relógio, o servo, o problema é que o cavalheiro, encarregado da condução, além de não conseguir mobilizar o pescoço, não refreia os tremores das mãos, o que, para segurar um volante, não se afigura o mais indicado, apesar de ser fim-de-semana, não sei se Sábado ou Domingo de tarde, num ápice se formou uma bicha considerável atrás de mim, logo soaram buzinas e vozes grosseiras com o carro que soluçava a cada centímetro de asfalto para sair do lugar, sobretudo com o cavalheiro, encarregado da condução, para além de não conseguir mobilizar o pescoço, não refreava os tremores das mãos, o que, para segurar um volante, não se afigurava o mais indicado, quanto mais se elevava a indignação pela espera, materializada naqueles gritos metálicos e uniformes, mais as mãos tremiam, por três vezes, pelo menos, o carro foi abaixo, eu, que apenas aguardava o lugar, mas era quem, de facto, estava a bloquear a estrada, comecei a exasperar com a situação, com os gritos metálicos e uniformes que se multiplicavam nas minhas costas, numa flagrante dissonância com uma indolente tarde de Sábado ou Domingo, não me passou despercebida a apreensão registada pelos dois casais idosos no interior do veículo, quase me pareceu ouvir uma das velhotas sugerir que adiassem o passeio, pensei que seria uma pena se adiassem tal saída, como eu gostei daquela gratuita lição de etiqueta, e elas tão bem postas, percebia-se que tinham visitado o cabeleireiro, quando muito na sexta-feira, quase me chegava o cheiro a laca, e os fatos que envergavam, percebia-se, lá está, que provinham de uma época em que o homem ainda era o senhor e o relógio, o servo, por ali quase me chegava o odor típico da naftalina, e os pechisbeques ao pescoço enterneceram-me, não sei porquê, mas os pechisbeques têm o sabor dos avós, talvez as costas dos anciãos se ressentissem com os abanões da viatura, pensei, a certa altura, sair e oferecer os meus préstimos para lhes tirar o carro do lugar, mas lembrei-me de que há muitas formas de se insultar o outro, e não quis ir por aí, até porque, pelo menos enquanto aquele velho tentava trazer ontem ao hoje, para mim, o homem voltava a ser senhor e o relógio, o servo, de repente, o vazio do lugar gritava-me e, quase em espanto, olhei a traseira do carro já no fim da rua, afinal, o almejado passeio, não sei se Sábado ou Domingo de tarde, sempre se cumpriria, e a lição de etiqueta, o cabeleireiro, os cheiros a laca e a naftalina, os pechisbeques trazidos para a luz do dia, nada teria sido em vão, por ali, felizmente a vida vencera, estaciono, e saio, passeio fora, atrás daquele rosto trazido na memória, mais velho, claro, mas reconhecível, ao contrário de outros, estugo o passo, ainda atravesso duas ou três perpendiculares, mas nada, nem sinal dele, nem do cão, olho à volta, apenas eu, alguns estranhos que por ali deambulavam, e a tarde, não sei se Sábado ou Domingo, que se cumpria, se o visse, que lhe podia dizer? A amizade é pertença do momento, por muito que se argumente em contrário, apenas há momentos que se repetem mais no nosso ciclo de vida, e outros que se diluem, daí a sua durabilidade, não foi o caso, sucedeu que olhámos, ao mesmo tempo, para a mesma mulher, nesta vida, pouco pode sobreviver a tal desígnio, como o sei, parte de mim revolve-se por não o ter encontrado, se não fossem os velhotes, a viatura soluçante a cada centímetro de asfalto, regresso, de novo, à questão: Que lhe podia dizer? Talvez que, por momentos, o homem foi senhor e o relógio, o servo.

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