Concluíra
recentemente que a surdez pode ser uma bênção, virou-se, lá em casa, para ela e
“Se
não queremos ver, fechamos os olhos, por que raio, se não queremos ouvir, não
conseguimos fechar os ouvidos?,” como resposta, apenas um sorriso
misericordioso dela, esta questão resultou da última ida às compras, ele sempre
com pressa, sabia que, inevitavelmente, dali viria bem mais subtraído, ela
perdida a olhar as prateleiras, por fim, lá lhe rosnava “Isso, continua,
pareces mesmo uma burra a olhar para um palácio,” a resposta era pronta, “Queixas-te
da conta, mas nem te preocupas em ver os preços,” “Não preciso é de passar a
tarde a olhá-los…”, o habitual de uma ida às compras deste casal, para
cúmulo, sobretudo da parte dele, tinham o azar de, forma recorrente, encontrar
gente conhecida, sobretudo da parte dela, cumprimentos,
frases de circunstância para reavivar a familiaridade, quando os carrinhos-das-compras se encostavam para desimpedir o
corredor, ele em pânico, a conversa estaria para
durar, colocava um sorriso plástico, como se estivesse atento, a verdade é
que nada ouvia, olhava em volta, na ânsia de uma porta
salvífica, desde muito cedo, quando a coisa se tornava aborrecida, este
hábito de olhar em volta, na ânsia de uma porta salvífica, encontraram, desta
vez, uma colega dela, aproximava-se dos setenta, detinha aquela irritante
característica de, na aparência, compreender a mensagem, só que o olhar
esgazeado tudo desmentia, inclinava o diálogo, quase uma fatalidade, para
enaltecer as origens e posses da sua família, daquelas coisas que, da primeira
vez, suscitam curiosidade, da segunda, irritação, a partir da terceira, só
risos entreolhados, por acaso, não passou despercebido o conteúdo do seu
carrinho-de-compras, múltiplas latas de cerveja, a bater à porta dos setenta,
ter-se-ia convertido ao álcool? Facto era o seu olhar esgazeado, a
impossibilidade de trocar ideias – um fado crescente por estes dias, a maioria
só procura um receptor para debitar as suas inquietudes –, e o nervosismo
evidente dos seus gestos, sabia que a mulher lhe tinha respeito
e consideração, não por acaso encostar o carrinho-das-compras para
desimpedir o corredor, apesar do desagrado com a paisagem de múltiplas latas de
cerveja, após cerca de duas dezenas de minutos, as latas de cerveja seguiram
numa direcção, eles na oposta, nada comentaram, as suas expressões dispensaram
o verbo, uns corredores adiante cruzaram-se com uma conhecida dele, uma vez
mais carrinhos-das-compras encostados para desimpedir o corredor, desta vez,
ela em pânico, a conversa estaria para durar, não colocava um sorriso plástico,
mas benevolente, e estava atenta a cada frase, também tacteava as sete décadas,
gestos mais contidos que a personagem anterior, embora a repetição de frases,
em determinados contextos, transparecesse o levantar do esquecimento, foi ela a
denotar, há uns meses, este facto, por respeito e consideração ele fingiu não
ter reparado, cumprimentos, frases de circunstância para reavivar a
familiaridade, e, em verdade, a troca de ideias não fluía muito mais do que com
as múltiplas latas de cerveja, tudo muito à superfície do acontecer, ele
conhecia o “antes” desta personagem, muitas vezes, quando nos cruzamos
com alguém, parece que nos obstinamos em ignorar o seu “antes,” tantos
equívocos brotam desta teimosia, uma mulher que, certo dia, se viu confrontada
com uma traição conjugal, reuniu o seu dolorido orgulho,
pegou na única filha de ambos, na altura uma
adolescente, e mudou-se para uma cidade trezentos quilómetros a Sul, este
gesto do seu “antes” garantiu, junto dele, um inestimável respeito, era
pequenita, cerca de metro e meio, no entanto, uma gigante de sentimentos, ao se
confrontar com a vileza da traição, do homem com quem trocara juras de amor, diante
de um altar, pai da sua filha, reuniu o seu dolorido orgulho e viajou trezentos
quilómetros para Sul, aí recomeçou tudo, tão longe da familiaridade
reconfortante deixada para trás, da segurança próxima da casa paterna, ficava a
dois quarteirões de distância, da familiaridade, construída desde a infância,
de ruas, praças, cafés, lugares do dia-a-dia que nos espelham quem somos, não
podia suportar a ignomínia de se saber falada, a traída, a que não o soube
agarrar, além de que se podia com ele cruzar a qualquer momento, frequentavam
praticamente os mesmos espaços, não, era demais, a filha, na altura uma
adolescente, “O que for melhor para ti, será o melhor para mim,” não foi
a tempo de segurar o traço salgado que lhe descaiu pela face, ao ouvir esta
frase, num tom pausado, doce, sem possibilidades de réplica, e a contemplar a doçura
da sua expressão, “Quero que continues a falar com teu pai…,” a filha
anuiu, foi num quente Agosto que ambas se mudaram, nenhum homem voltou a
caminhar a seu lado, o coração de uma mulher só conhece uma Primavera, a Dor
foi muita, buscou consolo na religião, naquele porto de águas calmas harmonizou
o seu sentir, a filha acabou por também ali se abrigar, foi onde conheceu o
futuro marido, por estes dias, a sua casa é um entra e sai de netos, já
perfazem meia dúzia, no entanto, o dia não termina sem visitar uma certa
gaveta, onde guarda vestígios da outra que foi, a que era erguida às alturas
por uma voz que lhe murmurava, com doçura, palavras de amor…
Livros do Escritor
sexta-feira, 6 de junho de 2025
Histórias sem história
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