Livros do Escritor

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sexta-feira, 6 de junho de 2025

Histórias sem história


 

Concluíra recentemente que a surdez pode ser uma bênção, virou-se, lá em casa, para ela e “Se não queremos ver, fechamos os olhos, por que raio, se não queremos ouvir, não conseguimos fechar os ouvidos?,” como resposta, apenas um sorriso misericordioso dela, esta questão resultou da última ida às compras, ele sempre com pressa, sabia que, inevitavelmente, dali viria bem mais subtraído, ela perdida a olhar as prateleiras, por fim, lá lhe rosnava “Isso, continua, pareces mesmo uma burra a olhar para um palácio,” a resposta era pronta, “Queixas-te da conta, mas nem te preocupas em ver os preços,” “Não preciso é de passar a tarde a olhá-los…”, o habitual de uma ida às compras deste casal, para cúmulo, sobretudo da parte dele, tinham o azar de, forma recorrente, encontrar gente conhecida, sobretudo da parte dela, cumprimentos, frases de circunstância para reavivar a familiaridade, quando os carrinhos-das-compras se encostavam para desimpedir o corredor, ele em pânico, a conversa estaria para durar, colocava um sorriso plástico, como se estivesse atento, a verdade é que nada ouvia, olhava em volta, na ânsia de uma porta salvífica, desde muito cedo, quando a coisa se tornava aborrecida, este hábito de olhar em volta, na ânsia de uma porta salvífica, encontraram, desta vez, uma colega dela, aproximava-se dos setenta, detinha aquela irritante característica de, na aparência, compreender a mensagem, só que o olhar esgazeado tudo desmentia, inclinava o diálogo, quase uma fatalidade, para enaltecer as origens e posses da sua família, daquelas coisas que, da primeira vez, suscitam curiosidade, da segunda, irritação, a partir da terceira, só risos entreolhados, por acaso, não passou despercebido o conteúdo do seu carrinho-de-compras, múltiplas latas de cerveja, a bater à porta dos setenta, ter-se-ia convertido ao álcool? Facto era o seu olhar esgazeado, a impossibilidade de trocar ideias – um fado crescente por estes dias, a maioria só procura um receptor para debitar as suas inquietudes –, e o nervosismo evidente dos seus gestos, sabia que a mulher lhe tinha respeito e consideração, não por acaso encostar o carrinho-das-compras para desimpedir o corredor, apesar do desagrado com a paisagem de múltiplas latas de cerveja, após cerca de duas dezenas de minutos, as latas de cerveja seguiram numa direcção, eles na oposta, nada comentaram, as suas expressões dispensaram o verbo, uns corredores adiante cruzaram-se com uma conhecida dele, uma vez mais carrinhos-das-compras encostados para desimpedir o corredor, desta vez, ela em pânico, a conversa estaria para durar, não colocava um sorriso plástico, mas benevolente, e estava atenta a cada frase, também tacteava as sete décadas, gestos mais contidos que a personagem anterior, embora a repetição de frases, em determinados contextos, transparecesse o levantar do esquecimento, foi ela a denotar, há uns meses, este facto, por respeito e consideração ele fingiu não ter reparado, cumprimentos, frases de circunstância para reavivar a familiaridade, e, em verdade, a troca de ideias não fluía muito mais do que com as múltiplas latas de cerveja, tudo muito à superfície do acontecer, ele conhecia o “antes” desta personagem, muitas vezes, quando nos cruzamos com alguém, parece que nos obstinamos em ignorar o seu “antes,” tantos equívocos brotam desta teimosia, uma mulher que, certo dia, se viu confrontada com uma traição conjugal, reuniu o seu dolorido orgulho, pegou na única filha de ambos, na altura uma adolescente, e mudou-se para uma cidade trezentos quilómetros a Sul, este gesto do seu “antes” garantiu, junto dele, um inestimável respeito, era pequenita, cerca de metro e meio, no entanto, uma gigante de sentimentos, ao se confrontar com a vileza da traição, do homem com quem trocara juras de amor, diante de um altar, pai da sua filha, reuniu o seu dolorido orgulho e viajou trezentos quilómetros para Sul, aí recomeçou tudo, tão longe da familiaridade reconfortante deixada para trás, da segurança próxima da casa paterna, ficava a dois quarteirões de distância, da familiaridade, construída desde a infância, de ruas, praças, cafés, lugares do dia-a-dia que nos espelham quem somos, não podia suportar a ignomínia de se saber falada, a traída, a que não o soube agarrar, além de que se podia com ele cruzar a qualquer momento, frequentavam praticamente os mesmos espaços, não, era demais, a filha, na altura uma adolescente, “O que for melhor para ti, será o melhor para mim,” não foi a tempo de segurar o traço salgado que lhe descaiu pela face, ao ouvir esta frase, num tom pausado, doce, sem possibilidades de réplica, e a contemplar a doçura da sua expressão, “Quero que continues a falar com teu pai…,” a filha anuiu, foi num quente Agosto que ambas se mudaram, nenhum homem voltou a caminhar a seu lado, o coração de uma mulher só conhece uma Primavera, a Dor foi muita, buscou consolo na religião, naquele porto de águas calmas harmonizou o seu sentir, a filha acabou por também ali se abrigar, foi onde conheceu o futuro marido, por estes dias, a sua casa é um entra e sai de netos, já perfazem meia dúzia, no entanto, o dia não termina sem visitar uma certa gaveta, onde guarda vestígios da outra que foi, a que era erguida às alturas por uma voz que lhe murmurava, com doçura, palavras de amor…

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