Saía com o cão, todas as noites, à mesma hora, no passeio, logo à entrada do prédio, um casal de namorados, ela sua vizinha, abraçados, em juras de amor eterno, olhou-os com indulgência, sabia que, à maioria, um casal de namorados apenas suscita azedume e inveja, pelo sentir jamais reencontrado, ao contrário, ele em compaixão pela magia que iriam inevitavelmente perder, tarde ou cedo a vida encarregar-se-ia de lhes subtrair aquelas juras de amor eterno, a insaciável vontade de permanecerem abraçados, o perder-se no olhar do outro, como se uma inevitabilidade o esboroar daquele encantamento, de imediato, ambos cumprimentaram-no, retribuiu, a vizinha não resistia a umas festas no cão, o rapaz mais contido, em verdade, nunca olhamos para um casal de namorados, mas sim para a nossa história de então, a indulgência dele era fruto da saudade daquele sentir, apenas isso, como a tentou reencontrar, tudo em vão, demorou tanto a compreender este facto, e como sofreu, ainda a tempo resolveu olhar, de frente, para esse vazio na alma, e sorrir-lhe desdenhosamente, era o que lhe restava, encolheu os ombros e pôs-se ao caminho, assim que a rapariga parou com as festas, ele e o cão prosseguiram o seu lento percurso nocturno, não que os diurnos obedecessem a outros ritmos, ele a completar setenta sob o céu e sobre a terra, o cão já somava doze, em idade canídea também um idoso, daí realizarem passos pensados, uma queda anteciparia o fim, olhou, de onde estava, a iluminada janela de sua casa no segundo-andar, sorriu, ela lá estaria, de robe, encaixada no sofá, a assistir à segunda-parte do episódio vespertino da telenovela, aquando da saída, do segundo filho de casa, ela começou a queixar-se do excessivo silêncio, que não aguentava, esta questão de esporádica passou a recorrente, a preocupação começou a avolumar-se nele, numa conversa de escada, o vizinho de cima esclareceu-o sobre os benefícios de um cachorro para quem se queixa dos excessivos silêncios do lar, “Veja se percebe: é como ter uma criança novamente! E sem crises de adolescência, encargos fiscais, escolares, exigências de marcas, enfim, e os desgostos… Pois, olhe, eu que o diga! Os filhos só me deram desgostos! Ao menos, com os meus patinhas só tenho alegrias… Logo de manhã, a cauda não pára, os dois à nossa volta, como se não nos vissem há um mês… Olham-nos com uma ternura singular, como se fôssemos divinos… Jamais encontrei tal olhar num humano… Nem os meus pais alguma vez assim me olharam… Apenas têm três exigências: comida na tigela, a ida à rua e, volta e meia, uma festa nossa, há coisa melhor?,” cada um tem, pelo menos, uma temática que lhe aligeira o verbo e, ao mesmo tempo, ilumina o olhar, percebeu, de imediato, que o vizinho de cima era da tribo dos patinhas, manifestamente hoje há tribos de e para tudo, foi buscá-lo com meses, nunca revelou onde, se comprou ou adoptara, teria entre dois ou três mesitos, ela não resistiu, assim que o marido o depositou no seu então desolado colo, alegria em regresso ao seu rosto, despediu-se de dez ou quinze anos, tal as energia e vivacidade reencontradas, quando, dias depois, o apresentou ao vizinho de cima, à porta do prédio, quase foi sujeito a um rito iniciático, cumpria-se as boas-vindas à tribo dos patinhas, a conversa foi bem para lá de uma hora, segue os passos, direccionados pelo farejar, do cão, ora para um lado, ora para outro, à porta do prédio ao lado, um sujeito fuma um nervoso cigarro, estava em qualquer lado menos ali, no entanto, cumpriu com a sua educação e “Boa-noite!”, percebeu-lhe surpresa, as coisas caem em desuso e encaramo-lo com uma naturalidade exasperante, ele jamais declinou os seus valores em prol dos inquietantes ventos do hoje, o sujeito interrompe o nervoso cigarro e “Boa-noite… Boa-noite…,” que problemas o cercavam para, àquela hora, descer até ao passeio na companhia de um cigarro nervoso? Agora o encontro é ao nível do passeio, dois focinhos que avidamente se cheiram, o outro cão, bem mais robusto, conduz uma velhota, também morava no prédio do lado, cujo principal chamariz reside na excêntrica boina, a meio-caminho entre o Popeye e o Robin dos bosques, era de verbo fácil, conversas de superfície, oscilavam entre os feitos do canídeo e do neto, lá percebeu que o dono do cão, afinal, era o filho, por falta de paciência para o passear, optou pela solução própria de um irresponsável: deixá-lo em casa dos pais; era confrangedor assistir ao arrastar da velhota impelida pelo corpulento animal, ela nunca se queixou, sublinhava compassadamente o amor ao bicho, talvez para escudar a irresponsabilidade do filho, ele limitou-se a anuir, enquanto percepcionava a assimetria de tamanhos entre o seu e o da velhota, é possível que o seu chegasse a um terço, entretanto, junta-se-lhes a nora, vinha buscar o filho, “Sim, já jantou! Não te preocupes… Deve estar a jogar… Sabes como é… Hoje um dia, estes miúdos nem uma estrada sabem atravessar… Só querem ecrãs… Sobe, ainda tenho de dar a volta ao quarteirão…,” ele, nem por uma vez, viu o olhar da nora descair para o cão que era do marido, como se tratasse de uma inexistência, quanto mais ajuda à frágil sogra para o passear, acenou uma despedida e foi buscar o filho, “Se quiseres, leva o que restou do jantar…”, tanto amparo só pode, de facto, gerar irresponsabilidade, nem olhou para trás, para a velhota que se contorcia a cada puxão do corpulento bicho, quem sabe se, nesse preciso momento, o filho não estivesse estendido no sofá, a assistir ao futebol, e à espera das sobras do jantar dos pais, despediu-se da excêntrica boina e seguiu passeio fora, por fim, chegou ao fundo da rua, por momentos, fechou os olhos para sentir o respirar da noite, a ilusão de os sonhos serem tangíveis, sentiu um puxão na trela em direcção ao lar, o animal parecia sorrir-lhe gratidão, a completar setenta sob o céu e sobre a terra, poucas coisas o faziam sorrir, mas não resistia àquele olhar onde a malícia não tinha porta de entrada.

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