Livros do Escritor

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domingo, 18 de maio de 2025

Consolação II

 


À angústia do último quadrado de chocolate somava-se o iminente confronto de olhares com a mãe, sentada, diante da televisão, no sofá, parecia aguardá-la, como se para lhe relembrar a derrota por, há cerca de quinze anos, afirmar “Só aqui regresso, para vos visitar…”, entretanto o pai tornou-se uma memória, partira, de madrugada, há uns anos, os médicos, quando desconhecem a causa, “Complicações de vária ordem…,” em verdade, muitos partem por cansaço, simplesmente já não lhes apetece vislumbrar a manhã seguinte, fadiga por esperar que tudo uma outra coisa, quando a realidade sempre num estatismo repetitivo e exasperante, em alguns aspectos apenas para pior, ela evitava olhar as diversas fotografias do pai expostas lá por casa, sobre camilhas ou destacadas em prateleiras, curioso o facto de a mãe omnipresente a seu lado em todas – reflectiu neste tema em criança: o pai não teria uma existência própria? Lá compreendeu, com o tempo, que a vida de um casal obedece a um respirar onde nem a imaginação entra… -, não havia um porquê, simplesmente, num canto de si, perturbava-a, como se, afinal, ainda por ali estivesse a tomar conta dela, não adiou mais o confronto, saiu da cozinha a olhar directamente a mãe, sentada, diante da televisão, no sofá, com os habituais riso e olhar desdenhosos, sibilou “Já vi que chegaste e te foste logo esconder atrás de um chocolate…,” nada lhe escapava, sentiu vontade de a insultar, após um dia de trabalho, a derrota de imperativamente ali regressar, precisamente onde, há cerca de quinze anos, afirmou “Só aqui regresso, para vos visitar…”, como lhe doía, não há dor como a da alma, o regresso ao lugar de onde jurou partir, pareceu-lhe, de repente, que essa década e meia, longe dali, pudesse ser fruto da imaginação, um sonho durante o dia, um desejo de evasão, o cheiro da casa inundava-a, via somente os azulejos do chão da cozinha, não tinha, nesse momento, forças para mais, sentiu-se uma prisioneira recapturada, condenada à fatalidade daquela circunstância, alguém que desejou o mundo e, no fim, continua a olhá-lo da sua janela, foi de tal ordem que o verbo lhe soçobrou, “Olha que estás a ficar gorda…,” velou-se atrás de um sorriso e foi para o quarto, embora, por ali, nada sentisse como seu, ela dolorosamente compreendeu, ainda na adolescência, no decorrer de um dia de praia, tudo, foram os três, ela e os pais, ter com um casal amigo, também com uma filha, que alugara uma casa, para passar as férias de Verão, numa vila costeira perto da capital, recorda-se nitidamente de ficar encantada com a beleza da povoação, encimada por um castelo, descia branca, pela colina, até à praia, o mar de um azul oceânico, relembrava simultaneamente o seu carácter antagónico – quietude e tormenta –, saíram cedo, para sua surpresa, a viagem foi curta, habituada que estava a longas odisseias de estrada, pois, a vila costeira ficava perto da capital, até os pais revelaram surpresa pela proximidade e tamanha beleza do lugar, desconhecido até então, foram recebidos com cortesia, mostraram-lhes os encantos do casario branco que descia, pela colina, até ao mar, como se fosse necessário somar, rendidos como estavam, foi de tarde, na praia, ela questionou algo à mãe, a resposta seca e irónica, sublimadamente a apelidá-la de burra, no entanto, foi o desprezo no olhar que sobre si derramou, nem com um estranho conseguiria reunir tanta repulsa, uma voz, em si, murmurou-lhe “Ela inveja-te a beleza e a juventude…,” não, não podia ser, era sua mãe, a voz de novo “Ela inveja-te a beleza e a juventude…,” impossível, é mãe! Como podia invejar a própria filha?! Quase em desespero, a voz reergueu-se com clamor “Ela inveja-te a beleza e a juventude…,” era um facto, como conseguira reunir, num simples olhar, tamanha repulsa? Para continuarmos a respirar, vezes a mais, calamos as evidências que se iluminam nos recantos da alma, assim foi com ela, apesar da frieza, desde esse dia, estabelecida entre mãe e filha, quem sabe se a mãe, ao perceber o desabrochar da filha, perspectivasse o seu iminente ocaso, mas não é a da ordem natural do existir os pais deixarem o palco do acontecer aos filhos? Era comum criticar as mesuras do marido com a filha, intuía-lhe ciúme, queria, de todas as formas, ser o centro, uma inesgotável carência de atenção, não havia semana em que, lá por casa, ela não lamentasse com um grito “Deus: por que não me deste um filho?,” foi após esse dia de praia, onde uma voz, em si, lhe murmurou “Ela inveja-te a beleza e a juventude…,” fechou a porta do quarto e rodou a chave, o facto de, naquele espaço, estar trancada, permitia-lhe a sensação de uma fronteira, ali, pelo menos, a mãe teria de bater à porta, pareceu-lhe, em algumas ocasiões, quando ela gritava, lá por casa, “Deus: por que não me deste um filho?,” o pai responder-lhe “Para quê? Mais um berço a quem voltarias as costas…,” talvez fosse uma impressão sua, no entanto, a voz do pai também lhe chegava, nunca levantou esta questão, os diálogos foram-se subtraindo à medida que as sombras se avolumavam, por ali vestígios da outra que foi há tanto, era o seu quarto de menina, objectos de uma outra existência, quase não os reconhecia, tão anteriores a uma voz, em si, lhe murmurar “Ela inveja-te a beleza e a juventude…,” pegou numa das suas bonecas preferidas, sentada na prateleira de um móvel, reparou no cabelo eriçado, de imediato procurou uma escova, quase em pânico, não admitia que a sua boneca preferida tivesse o cabelo em tão deplorável estado, abriu gaveta atrás de gaveta, não desistiria até encontrar a diminuta escova que restituísse o brilho e a dignidade ao cabelo da boneca, a outra de há tanto, afinal, ainda por ali habitava.

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