Livros do Escritor

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sábado, 10 de maio de 2025

A linguagem do olhar


 

“Sabes, ando para aqui com uma ideia de… Sei lá… De virar costas a tudo…,” “Recomeças com as tuas crises! Nada de novo…,” “Não, desta vez é diferente! Sinto-me enfadado de tudo… Olho para as coisas, à minha volta, e só um enorme bocejo…,” “Quantas vezes te ouvi isso… É uma fase, como muitas que atravessaste, verás…,” “Enganas-te! Há uns dias, dei por mim a dar uma volta pelo porto, vê bem onde me levaram os pensamentos: ao porto! Andei por lá, a sentir o apelo da partida, olha que é irresistível, quando vi a oportunidade, não hesitei, subi a um navio-mercante atracado, por acaso ninguém me viu, só para olhar o meu quotidiano de um espaço que, de um momento para o outro, ruma para um lugar que nem a nossa imaginação alcança…,” “Sonhas em partir para um lugar que nem a imaginação alcança, eu sonho em chegar ao final do mês sem me endividar…,” “Sempre foste realista, apreciava essa tua faceta, de certa forma, enternecia-me, talvez por não a possuir, mas também não a desejar,” “Não é uma faceta, apenas o clamor do imperativo-de-sobrevivência! E estes miúdos, a devorar, parecem marabuntas! Cada vez que vamos às compras, a conta não fica aquém dos três algarismos! Por muitas voltas que se dê, não há alternativa, um número permanentemente, composto por três algarismos, é-me subtraído da conta! E não levo coisas caras, ando munida de cupões de desconto, cartão de cada super-mercado, enfim, pareço uma tolinha especializada em poupanças… Se, algum dia, sonhei chegar aqui… Sabias que, há sessenta anos, o poder de compra, neste rectângulo, era dez vezes superior? Pois, é daquelas coisas que não interessa divulgar!.” “Ficam pelos dois filhos?,” “Sim, claro! Se tantas contas faço para os alimentar, vestir, educar, achas que íamos mandar vir outro?,” “Nunca te vi como mãe! Era um dos aspectos que me encantava em ti… Como eu nunca quis ser pai…,” “E não se pode dizer que tenhas falhado…,” “Longe disso! Não sei como suportas essa vida comezinha: trabalho, compras, tarefas domésticas, trabalho, compras, mais tarefas domésticas, fins-de-semana que nem permitem contemplar um horizonte, tal a vertiginosa velocidade a que passam, Domingo à noite, a angústia instala-se pelo recomeçar: trabalho, compras, tarefas domésticas, trabalho, compras, mais tarefas domésticas… E entre vocês, tudo bem?,” “Não se trata de suportar, mas de cumprir com as obrigações… Há facetas, como é natural, que ignoras quando se é pai ou mãe, pensas o futuro de uma outra forma, espera, deixa ver se me compreendes: quando se é pai ou mãe, o futuro deixa de ser singular, passa imediatamente a ser plural,” “Profundo, muito profundo… Sempre tiveste uma boa elasticidade mental. O que me leva, no meio de tudo isto, a colocar-te uma questão: Onde estão os sonhos que confidenciávamos madrugadas adentro?,” “Por outras palavras, estás a perguntar se sou feliz? Pois bem, podia facilmente retribuir-te a questão, agora, quando um homem pergunta a uma mulher pela sua felicidade, de forma sublimada dá a entender que a faria mais feliz…,” “É uma interpretação,” “Eu sei, e é a minha!,” “Continuas sem responder…,” “Não julgues que fujo à questão! Mas terei de te responder com uma pergunta que, volta e meia, me coloco: Seria feliz noutro contexto?,” Encontraste resposta?,” “Não eras tu a afirmar repetidamente que perguntas e respostas nascem irmanadas?,” “Continuas a fugir da questão…,” “Pelo contrário, compreendi, muito a custo, que ou sonhamos, ou vivemos… Optei pela segunda possibilidade,” “Denoto, na tua voz, pesar, uma fatalidade derrotista…,” “É uma leitura possível. Decidi, no devido tempo, arrumar o ontem. Tu, pelos vistos, continuas a trazê-lo contigo, e, a cada paragem, ficas a contemplá-lo, como se daí retirasses algo para o hoje,” “Não me considero saudosista! Bem pelo contrário, apenas reflicto se tudo podia ser uma outra coisa… Onde errei? Onde errámos?,” “Isso só te traz angústia, porque nada podes alterar,” “Não te preocupes, não vivo angustiado, e sei há muito que apenas posso alterar a forma de olhar o que se passou… Quando há pouco disseste compreendi, muito a custo, leva-me a concluir que, afinal, não sou o único a reflectir se tudo podia ser uma outra coisa…,” “Qual a dúvida?! Só os que vivem à superfície das coisas não têm este arrojo! E como nós mergulhámos no caudal do sentir…,” “Responde com sinceridade: Ama-lo?,” “Nunca foste de meias-palavras, como nunca conseguiste guardar o verbo por muito tempo, tens imperativamente de o lançar no mundo… Uma das grandes lições do tempo é a compreensão do nevoeiro da vida, por outras palavras: a paciência de esperar a luz que consigo traga o entendimento das coisas. Percebeste?,” “Ama-lo?,” “És teimoso! Eu não tenho tempo para deambular pelo porto, inspirar partidas, olhar e subir a navios, para vislumbrar a minha circunstância de outra perspectiva… Quando há pouco te falei da compreensão do nevoeiro da vida, era para ver se percebias que nem tudo é: sim ou não, verdade ou mentira, preto ou branco, facto ou ficção, sonho ou realidade; há demasiadas zonas intermédias que aguardam por uma luz para vermos onde, afinal, se posicionam… Que pena seres tão extremado! Bem sei que te ajuda a nortear os passos, mas tinhas tanto a ganhar se aligeirasses essa tua faceta,” “Ama-lo?,” “Ainda não compreendeste? Depois de tudo…,” “Pois, é isso, sou extremado e infantil por deambular pelo porto, inspirar partidas, olhar e subir a navios, para vislumbrar a minha circunstância de outra perspectiva, sabes, ainda guardo os teus sonhos, se quiseres, posso relembrar-te alguns com aroma a partidas, brisas salgadas e a olhar, da distância, a infelicidade deixada para trás.”

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