Livros do Escritor

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sábado, 3 de maio de 2025

As coisas nunca ficam onde as deixámos…

 



Há um momento, na vida de todos, onde se dá a compreensão se partilhamos os mesmos sonhos que os pais, de uma outra forma, se aquilo que queremos ou chegamos a ser equivale aos seus anseios, este momento aportou cedo na sua vida, ainda na meninice, lá por casa Tens de ser doutor… Tens de ser doutor… Tens de ser doutor…”,  mas que raio é isso de doutor, ele queria é ser um super-herói, agora doutor, para salvar a humanidade, viver uma existência aventureira, de constante perigo, ser ovacionado por todo o mundo, comparar este seu anseio com uma vida comezinha, incógnita, aborrecidíssima, que obriga ao consumo e consumo de livros, exames, mais exames, e exames ainda, anos de faculdade, havia sequer comparação possível? Começou, nesta fase, a olhar os pais com desconfiança, será que era assim tão amado como muito gostavam de propalar? Não era uma questão de somenos, aqui abriu-se-lhe a primeira crise existencial, e uma hipótese começou a tornar-se nítida – ter sido resgatado de um orfanato –, como muitos dos super-heróis que lhe norteavam os sonhos, de facto, tudo se encaixava, daí um abismo de incompreensão, entre eles, face ao amanhã, da sua parte, o amanhecer, no cimo de um arranha-céus, após uma inclemente madrugada no combate ao crime, da parte dos pais, sentado a uma secretária curvado para os livros, pois, coisas bastante distintas, apesar de menino, havia consciência dos limites lá por casa, optou por calar os sonhos e anuir às pretensões paternas, não fosse perder o mapa dos seus sonhos – os relatos desenhados das façanhas dos seus ídolos –, claro que tinha os da sua predilecção e aqueles onde menos se revia, com esses nem tempo perdia, nem um mínimo reflexo de si por ali havia, a ânsia de espelho era muita, lá por casa, ao refrão Tens de ser doutor… Tens de ser doutor… Tens de ser doutor…”, juntava-se o Estuda! Estuda! Estuda para seres doutor…,” por ali o amanhã era de uma manifesta estreiteza, começou a ensurdecer para tais ditames, a sobrevivência impunha-se, bem como a sanidade mental, talvez fosse um dos primeiros super-poderes a adquirir sem se aperceber, dentro dos entediantes e volumosos livros-escolares colocou um dos relatos desenhados das façanhas dos seus ídolos, assim passou a quase não ouvir o “Estuda! Estuda! Estuda para seres doutor…,” quando lhe abriam a porta do quarto, para ver se cumpria com os deveres escolares, viam-no concentradíssimo, debruçado para o manual, a materialização dos seus desejos, nada verbalizavam, recuavam e encostavam a porta, numa respeitosa lentidão, como se interrompessem um momento sacro, a sua geografia estava em Nova-Iorque, a química na substância das teias do super-herói que, naquele instante, lhe ocupava simultaneamente pensamento e sonhar, a matemática andava à volta do número de criminosos a derrotar, a física no permanente desafio das alturas a cada salto executado ou no balançar de teia em teia, a moral era demasiado evidente: o bem prevalecer face ao mal; aqui chegados, levanta-se uma questão: já encontraram manual-escolar mais completo? Resposta óbvia: claro que NÃO! No entanto, os pais sempre aquém desta verdade, a direccioná-lo para livros massudos, povoados de imagens desbotadas, onde somente procuravam, e mal, ensinar uma matéria, quanto tinha, ao seu alcance, uma janela com um horizonte onde simultaneamente aprendia todas as temáticas, e a principal – que os manuais desbotados jamais lhe responderiam, muito cedo esta certeza se lhe levantou –, acompanhava-o ao percorrer cada página: Quem sou eu? A questão maior que cada um deve colocar a si mesmo! Quantos já se puseram esta interrogação? Antes de se colocar a pergunta, como sempre, foi-lhe apresentada a resposta, aceitou-a sem reservas, era um facto, no âmago de si não havia quaisquer reticências, teria de construir um papel-social que se encaixasse na apatetada sociedade para lhe permitir ocultar o seu verdadeiro “Eu,” o que está para além da limitada compreensão dos simples humanos, aquele que brilha em demasia, o que desafia a lógica e convenção das coisas, o que amanhece, no cimo de um arranha-céus, após uma inclemente madrugada no combate ao crime, o que desafia as alturas a cada salto executado ou no balançar de teia em teia, certa tarde, num assomo de esperança, abriu o guarda-fatos do pai para ver se, por ali, nalgum canto, estivesse pousada alguma máscara, um fato-colorido, não se surpreendeu com o carácter efémero da busca, fatos havia, mas com a inclemente gravata, até as sombras do armário eram rígidas, quase lhes ouvia gritar “Este não é o teu lugar! Vai-te embora! Tens de ser doutor… Tens de ser doutor… Tens de ser doutor… Estuda! Estuda! Estuda para seres doutor…,” fechou a porta com alívio, voltou para o seu quarto, foi até à janela, pensou no que encontraria um filho seu, dali a muitos anos, se, uma bela tarde, lhe abrisse o armário da roupa, jurou que gravatas jamais, um indizível prenúncio de derrota, onde há espaço durante o amanhecer, no cimo de um arranha-céus, após uma inclemente madrugada no combate ao crime, para uma gravata?

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