Livros do Escritor

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terça-feira, 13 de maio de 2025

Uma janela onde nunca anoitece

 


É inegável que ele mudou desde que… Sempre achei que as evidências existem por alguma coisa, daí que não valha a pena virar costas ao óbvio, nunca apreciei particularmente aqueles rostos invernosos que se procuram esconder com artifícios primaveris, como se fosse possível sublimar cada traço de uma existência, mas, como dizia, é inegável que ele mudou desde que, pois, de facto, quando agora saio de manhã, ainda fica a dormir, agarro, em cada gesto, o possível de silêncio para que perdure aquele sono, foi há pouco mais de um ano, chegava sempre perto da hora de jantar, as miúdas já na mesa, assim que ouviam a chave, os bancos a ressoar pela casa, as duas numa corrida ao seu encontro, um rito diário que cessou naquele fim de tarde, esperou que terminássemos o jantar, as miúdas na cama, contudo, pela demorada nervoseira ao abrir hoje a porta, percebi-lhe a dificuldade de um fardo imprevisto, após dois cigarros inquietos na varanda, veio para dentro, olhou-me, eu sentada, à espera daqueles momentos que me fazem esquecer de mim, se há coisa que me irrita, é aquela gente que fala mal das novelas, regra geral são uns pseudo-intelectuais que não percebem nada disto, que mal há nuns momentos que me fazem esquecer de mim, com toda a certeza, na vida desses pseudo-intelectuais também haverá momentos em que precisam de se esquecer de si mesmos… Acho que toda a gente precisa, mas, como dizia, após dois cigarros inquietos na varanda, veio para dentro, olhou-me, eu sentada, lancei a questão como um convite para se apear do fardo (Não achas melhor contar, de uma vez, o que se passa?), não se mostrou surpreendido, confesso que já noutras ocasiões revelara os meus dotes mediúnicos, percebi, pela longa expiração antes do verbo se iniciar, a dimensão do fardo, sentou-se e olhou a carpete, antes, tirou um cigarro, que não chegou a acender, e manteve-o nervosamente, entre indicador e médio, tal como criança que carece de um objecto familiar quando pisa terrenos distantes do olhar maternal, nessa noite, antes daqueles momentos que me fazem esquecer de mim, se há coisa que me irrita, é aquela gente que fala mal das novelas, regra geral são uns pseudo-intelectuais que não percebem nada disto, fiquei a saber que a firma, onde ele trabalhava há dezoito anos, se ia mudar para um qualquer país, nem me lembro do nome, li, com uma avidez receosa, na folha, que, num indisfarçável gesto de tristeza, ele me estendeu, por mais que uma vez, a palavra deslocalização, deslocalização de meios, deslocalização de recursos, deslocalização com o objectivo de exponenciar resultados, curioso, para mim, bastava terem escrito que se iam mudar, para quê um vocábulo tão arreigado? E, se não tivessem, algures pelo caminho, olvidado o conceito de honestidade, aproveitavam para informar que iam reduzir significativamente os custos com a mão-de-obra, levantei-me e fui sentar-me a seu lado, aproveitei para lhe serenar aquele cigarro oscilante entre indicador e médio, procurei direccionar-lhe o olhar para o amanhã, dei por mim a debitar frases cansadas onde esperança e vida se repetem numa cadência obstinada, a certa altura, ele levanta-se, não sei porquê, mas pareceu-me magro e amarelecido, como se, naquele entretanto, tivessem decorrido anos, entristeceu-me vê-lo assim, um flagrante contraste com a imagem que em mim perdura, dirigiu-se para o quarto e deitou-se, tempos depois, quando obteve a declaração da empresa, dirigiu-se àquele suplício, com a irónica designação de centro de emprego, para reclamar o subsídio a que tinha direito, sempre me questionei quantas pessoas efectivamente terão, por ali, conseguido um real emprego, não digo ocupação, mas sim, emprego, estas e outras questões inquietavam-me nessa manhã, de repente ele Nunca pensei ter de passar por isto… Acabar assim… Já viste? Dediquei grande parte da minha vida àquela casa, e agora… Nem um mísero telefonema, para saber se preciso de alguma coisa. Antes de sair, liguei para o Fernandes, sabias? Atendeu-me a mulher e disse que ele ainda estava a dormir… Vê lá tu, o Fernandes… Um tipo que era sempre o primeiro a chegar ao posto de trabalho! Sinceramente, isto dá vontade de dar um tiro na testa. Essa é que é a realidade… Se não fossem as miúdas, não sei… Neste ponto, olhei-o para que se calasse, achei que o solilóquio caminhava para a pieguice de gosto duvidoso, apesar de ali termos entrado com a irrepetível frescura de uma manhã, quando saímos, entorpecidos, é certo, já a tarde ia em saudações de despedida, senti-me tão bem quando, sob os meus pés, senti a calçada, e uma brisa entardecida se demorou pelo meu rosto, discretamente, olhei para trás, o edifício lá continuava, imperturbável, agora a umas dezenas de metros, como se padecesse de uma forma de autismo, tal a dor que albergava, mulheres de todas as idades, algumas com os filhos, sonolentos de fome, nos braços, quando mais novas, a aspiração a algo que sempre se distancia mais um passo, se de meia-idade, como ele, o terror súbito de se deparar com um abismo, a meio de um percurso de nome vida, como uma ferramenta que se afigura gasta para certas actividades, mas que, ao mesmo tempo, não devia ser irremediavelmente votada a uma gaveta esconsa, por fim, as mais velhas, ainda uns tempos de sentença, ainda uma soma de humilhações, até à certeza do rendimento porque labutaram todos aqueles anos, em ocupações estrangeiras das que exerciam, por terem abandonado o percurso tão perto do fim, não obstante ser um abandono involuntário, como se deu com ele, não sei porquê, mas, naquele edifício, imperturbável, agora a umas dezenas de metros, que padecia de uma forma de autismo, o desespero masculino afigurava-se mais alto, não pelos filhos, sonolentos de fome, nos braços, não pela aspiração a algo que sempre se distancia mais um passo, não pelo terror súbito de se deparar com um abismo, mas pelo simples facto de se ver retirado de um papel ancestral, como se lhe fosse negada uma dimensão de ser, desde há pouco mais de um ano, que ele sente essa exclusão, para sobreviver tem somado lamelas e lamelas, e tardes de balcão a uns passos de casa, também já houve algumas humilhações em ocupações estrangeiras das que exercia, cansei-me de lhe direccionar o olhar para o amanhã, se dali apenas vem mais uma tarde de balcão a uns passos de casa, também deixei de debitar frases cansadas onde esperança e vida se repetem numa cadência obstinada, resta-me insistir para que se sente a meu lado, quando aguardo aqueles momentos que me fazem esquecer de mim, se há coisa que me irrita, é aquela gente que fala mal das novelas, regra geral são uns pseudo-intelectuais que não percebem nada disto, que mal há nuns momentos que me fazem esquecer de mim, pode ser que ele também se esqueça do hoje e se lembre do que é ser feliz…

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