Livros do Escritor

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domingo, 4 de maio de 2025

Uma expressão a resvalar para o beicinho



Teve de estacionar longe, compreensível pela hora tardia, com os anos as prioridades também mudam (quem diria que um lugar-vago, para arrumar o carro, assumiria contornos quiméricos?), desceu a rua, de mãos nos bolsos, olhar na calçada, em verdade, arrastou-se passeio abaixo, as solas dos sapatos não se chegavam a descolar do chão, por fim chegou ao destino, olhou pela montra para verificar se ainda por lá clientes, pareceu-lhe não haver muitos, resolveu entrar, o amigo apercebeu-se da sua presença e saudou-o, sem retirar as mãos dos bolsos retribuiu o cumprimento com uma anuência do rosto, embora a sua expressão apenas traduzisse um irreprimível desejo de partilha de uma dor demasiada, sentou-se, mais concretamente deixou-se cair, numa, das duas cadeiras, da entrada, a mão, em incessantes passagens pelo rosto, revelava a sua angústia, na mesita, bem à sua frente, duas ou três revistas com o prazo de validade expirado há anos, o amigo olhou-o com apreensão, a perspectiva de um  jantar a horas esfumara-se com a sua entrada, de mãos nos bolsos, com uma expressão que transparecia um irreprimível desejo de partilha de uma dor demasiada, a conversa seria longa, apesar de saber há muito que seria um longo e entediante monólogo, como sempre sucedia quando ostentava aquela peculiar expressão de rafeiro acossado e incompreendido, os clientes abandonavam o espaço numa evidente contrariedade de regresso a casa, por aquele ser, de facto, o seu lar, parecia que só ali eram ouvidos, assim que o último transpôs a porta, prontamente foi sentar-se ao lado do infortunado, que ainda olhava as duas ou três revistas com o prazo de validade expirado há anos, perguntou-lhe, como é evidente, a razão do seu desamparado ar, nada a que não estivesse habituado, de repente, não obstante a expressão de rafeiro acossado e incompreendido, levanta-se, a indignação que consigo transportava impediu-o de permanecer sentado por mais tempo, de pé, virou-se para o amigo, com uma expressão a resvalar para o beicinho, de bebé a quem acabaram abruptamente de retirar a chucha, “Sabes o que ela me acabou de dizer? Sabes o que ela me acabou de dizer? Consegues imaginar?!,” o amigo, sentado, via o jantar como uma miragem, teve de suster o rosto na mão, acometido que estava pelo desespero, não havia outra possibilidade, entre si e a salvífica porta aquela peculiar expressão de rafeiro acossado e incompreendido, respondeu com o tradicional encolher de ombros, Que eu já não lhe digo nada! Que eu já não lhe digo nada! Imagina: eu já não lhe digo nada! Depois de tudo que fiz por ela…,” os passos nervosos avolumaram-se à volta da mesita, o amigo permanecia sentado, respondia com lugares-comuns “Pois… Não se faz… Realmente… Não merecias… Logo tu, que tanto investiste na relação… Ela vai arrepender-se e pedir-te desculpas…”, “Sabes quantas vezes lá dormi? Uma! Imagina: só uma!,” nesta altura, definitivamente já se despedira do jantar, o serão estava só a começar, após casamento, dois filhos, não resistiu ao encanto de uma aventura, a adrenalina, muitas vezes, torna-se o sentido, foi, no entanto, descoberto, nunca primou pela sageza, o que precipitou o divórcio, as suas malas acabaram por tocar à campainha da aventura, divorciada e também com dois filhos, o irónico enlear da existência, ambos com percursos similares que se acabaram por cruzar, quando se preparava para uma noite de arfares e corações descompassados, eis que os dois filhos, pequenitos, já ocupavam a cama, ela, à laia de explicação, “Sabes, após a partida do pai, ficaram com medo de dormir sozinhos… Compreendes, não é? Coitadinhos, ainda são muito pequeninos…,” de um lado, via um quase com nove anos, que o olhava com uma expressão de autêntico homicida, o outro teria menos dois anos, uma face enrugada que trazia à memória, sabe lá porquê, um demónio que, em tempos, vira num filme, não vivesse a doçura da paixão, e teria dali fugido tão rápido quanto lhe fosse possível, acabou no sofá, desconfortável, as suas costas ainda o testemunham, na noite seguinte, o mesmo suplício, até se tornar um hábito, como última imagem de cada dia, ela, deitada, de um lado, via um quase com nove anos, que o olhava com uma expressão de autêntico homicida, o outro teria menos dois anos, uma face enrugada que trazia à memória, sabe lá porquê, um demónio que, em tempos, vira num filme, não é propriamente o melhor incentivo ao sono, se ainda somarmos o notório desconforto do sofá, enfim, dormir tornou-se um horizonte de inquietude, só houve arfares e corações descompassados, de noite, quando as criancinhas foram num passeio escolar, foi tão marcante para ele que registou de forma indelével - “Sabes quantas vezes lá dormi? Uma! Imagina: só uma!” –, assim que soube da ausência nocturna dos filhos, no seu pensar apenas os lençóis dela livres para si, do beicinho acabaram por nascer lágrimas, o amigo afundava-se na cadeira, subitamente, do seu bolso um som insistente, ajudou-o a despertar, era a sua mulher a perguntar se tudo estava bem, há mais de três horas que o jantar o esperava, o outro nem se apercebeu do telefonema, nem que o amigo, entretanto, abrira a porta para saírem, continuava na sua incessante e nervosa passada à volta da mesa, com os olhos em água, a repetir “Que eu já não lhe digo nada! Que eu já não lhe digo nada! Imagina: eu já não lhe digo nada! Depois de tudo que fiz por ela…”


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