Teve
de estacionar longe, compreensível pela hora tardia, com os anos as prioridades
também mudam (quem diria que um lugar-vago, para arrumar o carro, assumiria
contornos quiméricos?), desceu a rua, de mãos nos bolsos, olhar na calçada, em
verdade, arrastou-se passeio abaixo, as solas dos sapatos não se chegavam a
descolar do chão, por fim chegou ao destino, olhou pela montra para verificar
se ainda por lá clientes, pareceu-lhe não haver muitos, resolveu entrar, o
amigo apercebeu-se da sua presença e saudou-o, sem retirar as mãos dos bolsos
retribuiu o cumprimento com uma anuência do rosto, embora a sua expressão apenas traduzisse um irreprimível desejo de
partilha de uma dor demasiada, sentou-se, mais concretamente deixou-se
cair, numa, das duas cadeiras, da entrada, a mão, em incessantes passagens pelo
rosto, revelava a sua angústia, na mesita, bem à sua frente, duas ou três revistas com o prazo de validade expirado há
anos, o amigo olhou-o com apreensão, a perspectiva de um jantar a horas esfumara-se com a sua entrada,
de mãos nos bolsos, com uma expressão que transparecia um
irreprimível desejo de partilha de uma dor demasiada, a conversa seria
longa, apesar de saber há muito que seria um longo e entediante monólogo, como
sempre sucedia quando ostentava aquela peculiar expressão de
rafeiro acossado e incompreendido, os clientes abandonavam o espaço
numa evidente contrariedade de regresso a casa, por aquele ser, de facto, o seu
lar, parecia que só ali eram ouvidos, assim que o último transpôs a porta,
prontamente foi sentar-se ao lado do infortunado, que ainda olhava as duas ou
três revistas com o prazo de validade expirado há anos, perguntou-lhe, como é
evidente, a razão do seu desamparado ar, nada a que não estivesse habituado, de
repente, não obstante a expressão de rafeiro acossado e incompreendido,
levanta-se, a indignação que consigo transportava impediu-o de permanecer
sentado por mais tempo, de pé, virou-se para o amigo, com uma expressão a
resvalar para o beicinho, de bebé a quem acabaram abruptamente de retirar a
chucha, “Sabes o que ela me acabou de dizer? Sabes o que ela me
acabou de dizer? Consegues imaginar?!,” o amigo, sentado, via o jantar como
uma miragem, teve de suster o rosto na mão, acometido que estava pelo
desespero, não havia outra possibilidade, entre si e a salvífica porta aquela
peculiar expressão de rafeiro acossado e incompreendido, respondeu com o
tradicional encolher de ombros, “Que eu já não lhe
digo nada! Que eu já não lhe digo nada! Imagina: eu já não lhe digo
nada! Depois de tudo que fiz por ela…,” os passos nervosos
avolumaram-se à volta da mesita, o amigo permanecia sentado, respondia com
lugares-comuns “Pois… Não se faz… Realmente… Não merecias… Logo tu, que
tanto investiste na relação… Ela vai arrepender-se e pedir-te desculpas…”, “Sabes quantas vezes lá dormi? Uma! Imagina: só uma!,”
nesta altura, definitivamente já se despedira do jantar, o serão estava só a
começar, após casamento, dois filhos, não resistiu ao encanto de uma aventura, a
adrenalina, muitas vezes, torna-se o sentido, foi, no entanto, descoberto,
nunca primou pela sageza, o que precipitou o divórcio, as suas malas acabaram
por tocar à campainha da aventura, divorciada e também com dois filhos, o
irónico enlear da existência, ambos com percursos similares que se acabaram por
cruzar, quando se preparava para uma noite de arfares e
corações descompassados, eis que os dois filhos, pequenitos, já ocupavam a
cama, ela, à laia de explicação, “Sabes, após a partida do pai, ficaram com
medo de dormir sozinhos… Compreendes, não é? Coitadinhos, ainda são muito
pequeninos…,” de um lado, via um quase com nove
anos, que o olhava com uma expressão de autêntico homicida, o outro teria menos
dois anos, uma face enrugada que trazia à memória, sabe lá porquê, um demónio
que, em tempos, vira num filme, não vivesse a doçura da paixão, e
teria dali fugido tão rápido quanto lhe fosse possível, acabou no sofá,
desconfortável, as suas costas ainda o testemunham, na noite seguinte, o mesmo
suplício, até se tornar um hábito, como última imagem de cada dia, ela,
deitada, de um lado, via um quase com nove anos, que o olhava com uma expressão
de autêntico homicida, o outro teria menos dois anos, uma face enrugada que
trazia à memória, sabe lá porquê, um demónio que, em tempos, vira num filme,
não é propriamente o melhor incentivo ao sono, se ainda somarmos o notório
desconforto do sofá, enfim, dormir tornou-se um horizonte de inquietude, só
houve arfares e corações descompassados, de noite, quando as criancinhas foram
num passeio escolar, foi tão marcante para ele que registou de forma indelével
- “Sabes quantas vezes lá dormi? Uma! Imagina: só uma!” –, assim que
soube da ausência nocturna dos filhos, no seu pensar apenas os lençóis dela
livres para si, do beicinho acabaram por nascer lágrimas, o amigo afundava-se na
cadeira, subitamente, do seu bolso um som insistente, ajudou-o a despertar, era
a sua mulher a perguntar se tudo estava bem, há mais de três horas que o jantar
o esperava, o outro nem se apercebeu do telefonema, nem que o amigo,
entretanto, abrira a porta para saírem, continuava na sua incessante e nervosa passada
à volta da mesa, com os olhos em água, a repetir “Que eu já não lhe digo
nada! Que eu já não lhe digo nada! Imagina: eu já não lhe digo nada! Depois de
tudo que fiz por ela…”
Livros do Escritor
domingo, 4 de maio de 2025
Uma expressão a resvalar para o beicinho
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