Livros do Escritor
domingo, 29 de junho de 2025
domingo, 22 de junho de 2025
Uma jóia nada valiosa
A
personagem que hoje vou abordar, fisicamente, está a
meio-caminho entre o Shrek e o Panda do Kung Fu, acresce a esta volumetria
um pormenor que sempre me fascinou, como se o esplendor máximo dos paradoxos,
sobre a cintura escapular uma cabecita, de
pombo-coscuvilheiro, a
olhar avidamente o mundo em volta, com
receio de perder qualquer significativo episódio, conheci-o num contexto muito específico, onde os favores contam bem mais que a
competência, mais
uma dádiva deste regime com cinquenta e um funestos anos, à primeira vista, uma
personagem que fisicamente está a meio-caminho
entre o Shrek e o Panda do Kung Fu parece um bonacheirão, no
entanto, a primeira nota dissonante, de facto, era a sua cabecita, de pombo-coscuvilheiro,
a olhar avidamente o mundo em volta, com receio de
perder qualquer significativo episódio, tinha a seu cargo dois formandos, o
que muito lhe convinha para subtrair drasticamente o horário-laboral, ambicionavam
trabalhar nesse contexto muito específico, onde os
favores contam bem mais que a competência, a segunda nota dissonante adveio
das expressões desencantadas e sofridas de ambos, não raras vezes dei por
mim a matutar na razão daqueles semblantes, como nunca tive muita paciência
para jogos de máscaras, opto por demonstrar ao que venho, assim que denoto
dissimulação por perto, logo inverto o jogo, e de mim passam a ter somente
distância, e muita, como já salientei, este contexto muito específico, onde os
favores contam bem mais que a competência, estava sob as patas de uma alternadeira,
em volumetria não ficava aquém desta personagem, a meio-caminho
entre o Shrek e o Panda do Kung Fu,
o cabelo, se assim se pode designar aqueles fios sebosos, que ignoravam o objecto
escova, sobre o cocuruto, claro que, com tanta volumetria à mistura, eram
amigos, favor daqui, favor de acolá, e as muito proeminentes barrigas lá iam
empurrando o acontecer de acordo com os seus interesses, em certa
ocasião, a cabecita, de pombo-coscuvilheiro, virou-se
para mim e “É
que eu não me posso enervar… Sofro do coração! Até tenho um
atestado-de-incapacidade…,” só com muito esforço reprimi
as lágrimas, um quase herói, guindado a grandes feitos, a
meio-caminho entre o Shrek e o Panda do Kung Fu,
afinal sofria do coração, isso, em verdade, só o engrandecia, embora, com o
decorrer dos dias, as expressões desencantadas e sofridas, dos seus formandos,
se acentuassem, nos bastidores a coisa seria bem distinta, talvez de
bonacheirão só manifestamente o ar, esta ideia começou a germinar em mim, surgiu
a oportunidade, numa determinada circunstância, de trazer, como convidados,
amigos meus a esse contexto muito específico, onde os favores contam bem mais
que a competência, pedi à cabecita, de pombo-coscuvilheiro, que fizesse o favor
de preencher um dos infinitos papéis do hoje, prontamente anuiu, meses depois descubro
que se apossou da actividade, do meu nome, nem uma sílaba; idealizo, convido amigos, e nem uma
sílaba no papelucho, pena que só meses depois descubra tal facto, mas se, porventura,
hoje o encontrasse, não conseguiria reprimir as lágrimas ao ouvir “É que eu não me posso enervar… Sofro do coração! Até
tenho um atestado-de-incapacidade…,” atenção: não duvido que sofra do
coração, com uma cintura, algures entre o Shrek e o Panda do Kung Fu, qualquer
coração está destinado ao sofrimento; quando, por acaso, alguém maldizia a
alternadeira, a cabecita rodava prontamente para escutar, creio, ainda hoje,
que a sua escassez de trabalho se deve ao generoso coração da alternadeira, que
se emocionou perante “É que eu não me posso enervar… Sofro do coração! Até
tenho um atestado-de-incapacidade…,” só alguém com gelo a correr nas veias
não se emocionaria com tal clamor, logo uma alternadeira, com tão fartas
carnes, que, antes do meio-dia, não conseguia largar a cama, talvez aguardasse
pelo guindaste que a conseguisse dali erguer; a
cabecita, de pombo-coscuvilheiro, apesar de tão sensível coração e do
respectivo atestado-de-incapacidade, aproveitava o demasiado tempo sobrante
para actividades que lhe enchessem os bolsos, ainda hoje me questiono como é
possível uma figura, que fisicamente está a meio-caminho entre o Shrek e o
Panda do Kung Fu, ser crível para guiar alguém ao olimpo dos seus sonhos,
enfim, talvez seja eu e as minhas exigências, foi num final de tarde, na minha
rua, vinha eu a chegar, meses depois de já não me cruzar diariamente, no mesmo
espaço, com a cabecita, de pombo-coscuvilheiro, e encontro um dos seus
formandos, parei o carro, uma breve troca de palavras, que desaguou “Se lhe
contasse tudo… Se lhe contasse tudo… Certo é que ambos desistimos!,” as
expressões desencantadas e sofridas de ambos não eram um acaso, se somar a este
episódio o ter-se apropriado de uma actividade minha, o quadro já fica bem mais
elucidativo, até deixo de lado a amizade com uma alternadeira, em volumetria
não ficava aquém desta personagem, a meio-caminho entre
o Shrek e o Panda do Kung Fu, o cabelo, se assim se pode designar aqueles
fios sebosos, que ignoravam o objecto escova, sobre o cocuruto, claro que, com
tanta volumetria à mistura, eram amigos, favor daqui, favor de acolá, e as
muito proeminentes barrigas lá iam empurrando o acontecer de acordo com os seus
interesses, deixo a aviso a quem, por acidente, num dos caminhos da vida, se
cruzar com uma cabecita, de pombo-coscuvilheiro, a olhar avidamente o mundo em
volta, com receio de perder qualquer significativo episódio, fisicamente a
meio-caminho entre o Shrek e o Panda do Kung Fu, se o ouvir “É que eu não
me posso enervar… Sofro do coração! Até tenho um atestado-de-incapacidade…,” prepare
um lenço, nem todos têm a capacidade de refrear as lágrimas.
quinta-feira, 19 de junho de 2025
Histórias sem história III
Assim
que desligou o carro, já estacionado em frente ao prédio, sentiu um enormíssimo
alívio, se lhe perguntassem a razão, por muito que tentasse, não traduzia o
sentir, desde que saíram do super-mercado, entre arrumar as compras na
bagageira e o percurso até casa, ambos em silêncio, ainda, por ali, vestígios
da sujeita, cuja ruralidade se lhe gritava em cada detalhe, histérica,
mal-educada, muito limitada intelectualmente, a vomitar lugares-comuns sobre a
única temática que lhe era possível, mesmo aí, tudo muito superficial, nenhuma
frase ali debitada transparecia a mais singela reflexão, a repulsa ainda não o
abandonara por completo, do lado dela algum azedume pelo facto de ser uma
conhecida sua e de não lhe denotar o mínimo esforço em ser polido, saíram e
foram até à bagageira para retirar a dezena de sacos, com o tempo as coisas
tendem a tornar-se mais pesadas, não fosse viver a aprendizagem do regresso à
terra, foram interrompidos por uma vizinha, passeava o cão, logo se virou para
ela, é natural, era por ali que as frases mais se demoravam, tacteava os
setenta, divorciada há mais de três décadas, uma filha, padecia de surdez,
usava um aparelho invisível para a maioria, cigarro omnipresente na boca, o
penteado parecia obra do veterinário, talvez ela e cão numa tosquia simultânea,
do mais ridículo que se podia avistar no
horizonte humano, e o pior era o seu indesmentível orgulho naquilo, para entendimento
do leitor parecia ostentar uma cápsula, bem cimentada, sobre a cabeça, também
neste caso era visível a simpatia dela para com tão excêntrica figura, a
paixão, de ambas, pelos quadrúpedes de cauda esvoaçante e língua de fora,
agilizava e de que maneira o verbo, ele percebeu, de imediato, que o transporte
da dezena de sacos ficaria a seu cargo, de certa forma sentiu-se apaziguado por
tragar sozinho esse cálice, as últimas radiografias, à coluna dela, não prenunciavam manhãs luminosas,
enquanto ia e vinha, ouvia frases esparsas, sobre o
cão, as férias da filha, os saldos de uma loja de roupa que ambas apreciavam, ela
ficou nervosa e desagradada ao vê-lo carregar os dez sacos sozinho, não ousou
interromper o diálogo, sabia há muito do seu desígnio em protegê-la adicionado
ao inato orgulho masculino, força, bravura e cavalheirismo, felizmente ainda
era dos que bebeu dignos valores, embora o último electrocardiograma indiciasse
alguma preocupação, a médica peremptória: “Deve evitar todo e qualquer
esforço! Não se pode esquecer disto! Jamais! Olhe que, na sua idade, pode ser
fatal… Lembre-se: sofre de insuficiência cardíaca! Muita atenção ao que põe no
prato e aos esforços… Nesta fase da vida, com uma cardiomiopatia dilatada, não
pode, de todo, correr quaisquer riscos…”; como se sentia culpada por ali
estar, na conversa, a vê-lo maquilhar, no rosto, o esforço de carregar saco
atrás de saco, a certa altura, limitou-se a anuir, as frases sobre o cão, as
férias da filha, os saldos de uma loja de roupa que ambas apreciavam, deixaram-lhe
de chegar, por fim, ele só se aproximou para fechar a bagageira, os olhares
deles tudo disseram: amor e orgulho: há mais?
quarta-feira, 18 de junho de 2025
segunda-feira, 16 de junho de 2025
domingo, 15 de junho de 2025
Histórias sem história II
Já ele vislumbrava a meta, onde se lhe subtraía impreterivelmente uma bela maquia, o carrinho-das-compras avançava com dificuldade devido ao peso, quando, numa das infindáveis esquinas da vida, quase embate noutro vindo em sentido contrário, dirigido por uma mulher, aproximava-se do ocaso da vida, lia-se-lhe, à distância, sofrimento na expressão, não derrota, mas muito sofrimento, era conhecida dele, prontamente a evitou cumprimentar, ela obviamente também o reconheceu, optou por secundá-lo e o seu olhar noutra direcção, ele, na juventude, fora vizinho da actual idosa de expressão sofrida, embora, na altura ela ostentasse um semblante muito distante de dores e sofrimentos, casada, com dois filhos, ignorava, na totalidade, os conceitos de trabalho e de cumprir qualquer horário, era o marido que sustentava a casa, ambos os filhos em colégios particulares, de facto, só assim cumpriam os mínimos para progredir na escolaridade, não tinham manifestamente quaisquer dívidas com a inteligência, dois calhaus que se mobilizavam ao sabor dos ditames da época, nada mais, por ali nenhuma luz sombrearia algo, ele de cigarro omnipresente na boca, sempre lhe dava um ar reflexivo, mal emitia uma sílaba logo se dissipavam quaisquer vestígios de reflexões, a irmã era o resultado da soma do terror de qualquer mulher: fealdade e gordura; com tanto complexo, a alma não poderia ser muito luminosa, bem pelo contrário, o reservatório de todas as vezes em que se olhava ao espelho do olhar dos outros derramados sobre si, mais nebuloso é difícil, por fim, o marido, uma criatura a meio-caminho entre um mangas-de-alpacas e um trolha, em verdade, era um peixeiro, é possível que pelas docas outras mercadorias desaguassem, pois, é possível, por ali tudo que era novidade ostentavam, do carro à roupa, da televisão aos móveis, da mota ao relógio, enfim, vidas de superfície, o tempo lá providenciou que viessem à tona as verdadeiras pescarias, é possível que pelas docas outras mercadorias desaguassem, a queda foi grande, décadas depois de terem sido vizinhos, ele foi apanhá-la, como vendedora, numa loja de um centro-comercial do subúrbio, assim que o viu, tratou logo de assegurar “Estou aqui apenas a fazer um favor a uma amiga,” até foi enternecedor, em tempos de uma galopante desumanização, alguém peremptoriamente afirmar “Estou aqui apenas a fazer um favor a uma amiga,” respondeu-lhe com um sorriso irónico, nunca apreciou aquelas vidas de superfície, sentiu-se reconfortado pelo facto de as verdadeiras pescarias virem à tona, em certa ocasião, chegou a ver, amparado pela mulher, em dificuldades passeio fora, a criatura a meio-caminho entre um mangas-de-alpacas e um trolha, em verdade, era um peixeiro, como as coisas mudam no espaço do viver, após a viuvez, o acumular de envelopes com números a serem liquidados, ela viu-se forçada a conhecer dois conceitos: trabalho e cumprir horário; apesar de ocultar uma dignidade restituída através de idiotices como “Estou aqui apenas a fazer um favor a uma amiga,” os dois calhaus que se mobilizavam ao sabor dos ditames da época, sem quaisquer dívidas com a inteligência, não eram obra do acaso, de alguma procedência veio o facto de por ali nenhuma luz sombrear algo, como sempre acontece nestes contextos, de caixas e carrinhos-de-compras, próximos da meta, o olhar avidamente em busca da caixa menos concorrida, quase uma capacidade inata, assim o fizeram e partiram rumo àquela que só tinha uma mulher com um cesto na mão, por fatalidade tratava-se de uma conhecida dela, sorriram-se, dois, três, quatro segundos depois, já falavam de trabalho, aquando dos cumprimentos, ele limitou-se a um movimento vertical da cabeça e a um ligeiro rosnar, como detestava essa criatura, a razão, neste caso, estava totalmente do seu lado, já tacteava os quarenta, casada, dois filhos, no entanto, de uma total histeria, no desmesurado volume da verborreia, quase audível a um quarteirão, no incessante gesticular, e a temática: somente trabalho, trabalho e trabalho… Ele, por muito que tentasse, já não encontrava, em si, vestígios de compaixão para tais frustradas, uma quarentona, casada, dois filhos, encontra uma colega, com o marido, nas compras, e logo lhe começa a vomitar questões de trabalho, trabalho e trabalho, há muito ele sabia que, nem por um segundo, haveria porta-de-entrada para outra temática, a mulher, como muito simpatizava com a histérica, tendia a desculpá-la (“Coitada, ela é muito ansiosa… Mas, asseguro-te, é boa pessoa! Podes ter a certeza! E isso é o mais importante…), ele, por muito que tentasse, apenas via uma sujeita, cuja ruralidade se lhe gritava em cada detalhe, histérica, mal-educada, muito limitada intelectualmente, a vomitar lugares-comuns sobre a única temática que lhe era possível, mesmo aí, tudo muito superficial, nenhuma frase ali debitada transparecia a mais singela reflexão, a agrura dele, face a estas criaturas limitadas intelectualmente, reside num lugar lá atrás, ainda na sua juventude, ao compreender que os burros são bem mais felizes, daí a sua inveja, a rapariga da caixa já lhe havia passado os dois ou três artigos que trazia no cesto, e a histérica permanecia, de costas, com a sua incessante e audível verborreia acompanhada do largo gesticular, ele interveio com prazer e apontou para a caixa, a histérica conseguiu arrumar, num saco, os dois ou três artigos, pagá-los e jamais cortar o seu monólogo, era disso que se tratava, ela limitava-se maioritariamente a anuir, aqui ou acolá, lá emitia uma frase, deu por si, de repente, a reflectir nas centenas de livros que lera, será que, algum dia, alguém conseguiria traduzir por palavras uma criatura assim? Uma sujeita, cuja ruralidade se lhe gritava em cada detalhe, histérica, mal-educada, muito limitada intelectualmente, a vomitar lugares-comuns sobre a única temática que lhe era possível, mesmo aí, tudo muito superficial, nenhuma frase ali debitada transparecia a mais singela reflexão, a repulsa dominou-o, lamentou o carrinho-de-compras cheio, como um grilhão a vedar-lhe quaisquer possibilidades de horizonte, uma cansada questão regressou-lhe: “Por que teima a vida em nos contemplar com os indesejados enquanto ardilosamente oculta os que nos acompanham em cada expiração…?”
sexta-feira, 13 de junho de 2025
terça-feira, 10 de junho de 2025
Ontem
Estava parado num semáforo de fim-de-semana, não sei se Sábado ou Domingo de tarde, olhava passeios, quando me pareceu vê-lo, por ali me demorei, sem dúvida, era ele, mais velho do que o rosto trazido na memória, claro, mas reconhecível, ao contrário de outros, passeava um cão, a diferença maior pelo Inverno dos cabelos, de resto, nem vestígios da típica barriga lusitana, nem da curvatura própria do sedentarismo, ainda se lhe percebia ontem no hoje, não sei porquê, talvez o que de pior por lá havia, aquela arrogância estupidificante da juventude que decreta certezas como se o mundo fosse um velho conhecido, pareceu-me ainda haver traços bem visíveis, na sua expressão, de múltiplas certezas, pois, pareceu-me, continuei a acompanhar-lhe os passos, nisto, uma buzina, há hábitos que não descansam, percebo que o verde já surgira, arranco, mas resolvo estacionar logo que me seja possível, não foi preciso muito, nem quarenta metros andei, quando um carro denuncia o que se me afigurou uma tentativa de marcha-atrás para sair de um lugar, a viatura soluçava a cada centímetro de asfalto, reparei que, no interior, estavam dois casais de idosos, cavalheiros à frente, damas atrás, etiqueta de uma época em que o homem ainda era o senhor e o relógio, o servo, o problema é que o cavalheiro, encarregado da condução, além de não conseguir mobilizar o pescoço, não refreia os tremores das mãos, o que, para segurar um volante, não se afigura o mais indicado, apesar de ser fim-de-semana, não sei se Sábado ou Domingo de tarde, num ápice se formou uma bicha considerável atrás de mim, logo soaram buzinas e vozes grosseiras com o carro que soluçava a cada centímetro de asfalto para sair do lugar, sobretudo com o cavalheiro, encarregado da condução, para além de não conseguir mobilizar o pescoço, não refreava os tremores das mãos, o que, para segurar um volante, não se afigurava o mais indicado, quanto mais se elevava a indignação pela espera, materializada naqueles gritos metálicos e uniformes, mais as mãos tremiam, por três vezes, pelo menos, o carro foi abaixo, eu, que apenas aguardava o lugar, mas era quem, de facto, estava a bloquear a estrada, comecei a exasperar com a situação, com os gritos metálicos e uniformes que se multiplicavam nas minhas costas, numa flagrante dissonância com uma indolente tarde de Sábado ou Domingo, não me passou despercebida a apreensão registada pelos dois casais idosos no interior do veículo, quase me pareceu ouvir uma das velhotas sugerir que adiassem o passeio, pensei que seria uma pena se adiassem tal saída, como eu gostei daquela gratuita lição de etiqueta, e elas tão bem postas, percebia-se que tinham visitado o cabeleireiro, quando muito na sexta-feira, quase me chegava o cheiro a laca, e os fatos que envergavam, percebia-se, lá está, que provinham de uma época em que o homem ainda era o senhor e o relógio, o servo, por ali quase me chegava o odor típico da naftalina, e os pechisbeques ao pescoço enterneceram-me, não sei porquê, mas os pechisbeques têm o sabor dos avós, talvez as costas dos anciãos se ressentissem com os abanões da viatura, pensei, a certa altura, sair e oferecer os meus préstimos para lhes tirar o carro do lugar, mas lembrei-me de que há muitas formas de se insultar o outro, e não quis ir por aí, até porque, pelo menos enquanto aquele velho tentava trazer ontem ao hoje, para mim, o homem voltava a ser senhor e o relógio, o servo, de repente, o vazio do lugar gritava-me e, quase em espanto, olhei a traseira do carro já no fim da rua, afinal, o almejado passeio, não sei se Sábado ou Domingo de tarde, sempre se cumpriria, e a lição de etiqueta, o cabeleireiro, os cheiros a laca e a naftalina, os pechisbeques trazidos para a luz do dia, nada teria sido em vão, por ali, felizmente a vida vencera, estaciono, e saio, passeio fora, atrás daquele rosto trazido na memória, mais velho, claro, mas reconhecível, ao contrário de outros, estugo o passo, ainda atravesso duas ou três perpendiculares, mas nada, nem sinal dele, nem do cão, olho à volta, apenas eu, alguns estranhos que por ali deambulavam, e a tarde, não sei se Sábado ou Domingo, que se cumpria, se o visse, que lhe podia dizer? A amizade é pertença do momento, por muito que se argumente em contrário, apenas há momentos que se repetem mais no nosso ciclo de vida, e outros que se diluem, daí a sua durabilidade, não foi o caso, sucedeu que olhámos, ao mesmo tempo, para a mesma mulher, nesta vida, pouco pode sobreviver a tal desígnio, como o sei, parte de mim revolve-se por não o ter encontrado, se não fossem os velhotes, a viatura soluçante a cada centímetro de asfalto, regresso, de novo, à questão: Que lhe podia dizer? Talvez que, por momentos, o homem foi senhor e o relógio, o servo.
sexta-feira, 6 de junho de 2025
Histórias sem história
Concluíra
recentemente que a surdez pode ser uma bênção, virou-se, lá em casa, para ela e
“Se
não queremos ver, fechamos os olhos, por que raio, se não queremos ouvir, não
conseguimos fechar os ouvidos?,” como resposta, apenas um sorriso
misericordioso dela, esta questão resultou da última ida às compras, ele sempre
com pressa, sabia que, inevitavelmente, dali viria bem mais subtraído, ela
perdida a olhar as prateleiras, por fim, lá lhe rosnava “Isso, continua,
pareces mesmo uma burra a olhar para um palácio,” a resposta era pronta, “Queixas-te
da conta, mas nem te preocupas em ver os preços,” “Não preciso é de passar a
tarde a olhá-los…”, o habitual de uma ida às compras deste casal, para
cúmulo, sobretudo da parte dele, tinham o azar de, forma recorrente, encontrar
gente conhecida, sobretudo da parte dela, cumprimentos,
frases de circunstância para reavivar a familiaridade, quando os carrinhos-das-compras se encostavam para desimpedir o
corredor, ele em pânico, a conversa estaria para
durar, colocava um sorriso plástico, como se estivesse atento, a verdade é
que nada ouvia, olhava em volta, na ânsia de uma porta
salvífica, desde muito cedo, quando a coisa se tornava aborrecida, este
hábito de olhar em volta, na ânsia de uma porta salvífica, encontraram, desta
vez, uma colega dela, aproximava-se dos setenta, detinha aquela irritante
característica de, na aparência, compreender a mensagem, só que o olhar
esgazeado tudo desmentia, inclinava o diálogo, quase uma fatalidade, para
enaltecer as origens e posses da sua família, daquelas coisas que, da primeira
vez, suscitam curiosidade, da segunda, irritação, a partir da terceira, só
risos entreolhados, por acaso, não passou despercebido o conteúdo do seu
carrinho-de-compras, múltiplas latas de cerveja, a bater à porta dos setenta,
ter-se-ia convertido ao álcool? Facto era o seu olhar esgazeado, a
impossibilidade de trocar ideias – um fado crescente por estes dias, a maioria
só procura um receptor para debitar as suas inquietudes –, e o nervosismo
evidente dos seus gestos, sabia que a mulher lhe tinha respeito
e consideração, não por acaso encostar o carrinho-das-compras para
desimpedir o corredor, apesar do desagrado com a paisagem de múltiplas latas de
cerveja, após cerca de duas dezenas de minutos, as latas de cerveja seguiram
numa direcção, eles na oposta, nada comentaram, as suas expressões dispensaram
o verbo, uns corredores adiante cruzaram-se com uma conhecida dele, uma vez
mais carrinhos-das-compras encostados para desimpedir o corredor, desta vez,
ela em pânico, a conversa estaria para durar, não colocava um sorriso plástico,
mas benevolente, e estava atenta a cada frase, também tacteava as sete décadas,
gestos mais contidos que a personagem anterior, embora a repetição de frases,
em determinados contextos, transparecesse o levantar do esquecimento, foi ela a
denotar, há uns meses, este facto, por respeito e consideração ele fingiu não
ter reparado, cumprimentos, frases de circunstância para reavivar a
familiaridade, e, em verdade, a troca de ideias não fluía muito mais do que com
as múltiplas latas de cerveja, tudo muito à superfície do acontecer, ele
conhecia o “antes” desta personagem, muitas vezes, quando nos cruzamos
com alguém, parece que nos obstinamos em ignorar o seu “antes,” tantos
equívocos brotam desta teimosia, uma mulher que, certo dia, se viu confrontada
com uma traição conjugal, reuniu o seu dolorido orgulho,
pegou na única filha de ambos, na altura uma
adolescente, e mudou-se para uma cidade trezentos quilómetros a Sul, este
gesto do seu “antes” garantiu, junto dele, um inestimável respeito, era
pequenita, cerca de metro e meio, no entanto, uma gigante de sentimentos, ao se
confrontar com a vileza da traição, do homem com quem trocara juras de amor, diante
de um altar, pai da sua filha, reuniu o seu dolorido orgulho e viajou trezentos
quilómetros para Sul, aí recomeçou tudo, tão longe da familiaridade
reconfortante deixada para trás, da segurança próxima da casa paterna, ficava a
dois quarteirões de distância, da familiaridade, construída desde a infância,
de ruas, praças, cafés, lugares do dia-a-dia que nos espelham quem somos, não
podia suportar a ignomínia de se saber falada, a traída, a que não o soube
agarrar, além de que se podia com ele cruzar a qualquer momento, frequentavam
praticamente os mesmos espaços, não, era demais, a filha, na altura uma
adolescente, “O que for melhor para ti, será o melhor para mim,” não foi
a tempo de segurar o traço salgado que lhe descaiu pela face, ao ouvir esta
frase, num tom pausado, doce, sem possibilidades de réplica, e a contemplar a doçura
da sua expressão, “Quero que continues a falar com teu pai…,” a filha
anuiu, foi num quente Agosto que ambas se mudaram, nenhum homem voltou a
caminhar a seu lado, o coração de uma mulher só conhece uma Primavera, a Dor
foi muita, buscou consolo na religião, naquele porto de águas calmas harmonizou
o seu sentir, a filha acabou por também ali se abrigar, foi onde conheceu o
futuro marido, por estes dias, a sua casa é um entra e sai de netos, já
perfazem meia dúzia, no entanto, o dia não termina sem visitar uma certa
gaveta, onde guarda vestígios da outra que foi, a que era erguida às alturas
por uma voz que lhe murmurava, com doçura, palavras de amor…
terça-feira, 3 de junho de 2025
domingo, 1 de junho de 2025
Desconsideração
Hoje
saiu-lhe uma frase que ouvira repetidamente da mãe, sentiu-se incomodada, um
travo de derrota em si, até a entoação foi similar, tarde ou cedo começamos a
emitir frases ouvidas repetidamente de nossos pais, trata-se de uma inevitabilidade,
desde há três meses, após receber um convite para ser madrinha de casamento da
sua melhor amiga, a filha andava em alvoroço, o motivo maior não se prendia com
o vestido a usar, poucas coisas estão à superfície do acontecer, o seu tumulto
prendia-se com o facto de a sua melhor amiga se casar e ela nem um namorado no
horizonte, aquele casamento era manifestamente um espelho da sua infelicidade, terminou
o último namoro ao descobrir que há meses era traída, no hoje tudo parece estar
interligado em certos contextos apesar de, na realidade, sermos cada vez mais
insulares, foi num desses contextos, de aparente ligação, que ela viu uma
fotografia dele com um rosto feminino pousado no ombro, a incredulidade inicial
deu lugar ao seu lado detectivesco, ampliou a fotografia e logo percebeu mãos
dadas e expressões sonhadoras a contemplar o alaranjado horizonte, estavam numa
concorrida esplanada, nem lhe deu oportunidade de explicações, após verificar o
relógio que ele envergava, sua prenda de aniversário há cinco meses, limitou-se
a reencaminhar-lhe a foto com a frase “Sê muito feliz!,” lacónica,
de imediato, ele em tentativas de contacto, antes ela em cuidados de o
bloquear, tarde ou cedo tocaria lá em casa, antecipou, junto dos pais, que não
haveria mais conversa, não suportou a humilhação, ao se deparar com a foto, uma
frase da melhor amiga, a que se vai casar, regressou-lhe,
iam ou vinham de qualquer lado, e “Está tudo bem entre vocês?,” assim,
do nada, pensou que fosse alimento de diálogo, apenas isso, nem ousou responder
“Por que não haveria de estar?,” limitou-se a um sonhador “Claro que
sim,” mais à frente a melhor amiga, a que se vai casar, insiste “Está
mesmo tudo bem entre vocês?,” se um pouco mais de atenção à insistência, ao
silabar, por fim, à expressão angustiada
da melhor amiga, a que se vai casar, compreenderia o aviso que lhe estava a ser
transmitido, nem ousa imaginar a malícia das conversas à sua volta, os olhares
de comiseração, no fim, reste-lhe a dignidade, saiu mais subtraída, nem que seja
nos sonhos, essa é a verdade, menos de uma semana depois, ele conseguiu
abordá-la na rua, sabia os seus trajectos diários, ouvia-o, embora olhasse um
estranho, foi uma experiência inquietante, há umas semanas partilhavam
intimidades, de repente, em pleno passeio, sob a luz da manhã, olhava um
desconhecido, nem a voz lhe era familiar, advinha de uma demasiada lonjura, ele
falou tanto quanto gesticulou, ela “Sê feliz…,” ainda
ele ousou segurar-lhe no braço, como se lhe apelasse à razão e simultaneamente ao
reencontrar da química da pele, enfrentou-lhe o olhar com a devida indiferença “Sê
feliz…,” apenas, percebeu-lhe um indisfarçável espanto pela sua obstinação,
virou-lhe costas e seguiu, algo em si a alertava que voltaria a encontrar fotos
dele, em algum lugar concorrido, de mãos dadas e com o rosto de uma estranha
pousado no ombro, ele ficou desamparado no passeio, não mais a procurou, soube,
pela melhor amiga, a que vai casar, que ela, semanas depois, foi procurar outro
ombro onde depositar o rosto, que ele sofreu bastante, esteve semanas sem sair
de casa, houve quem temesse por uma tragédia, mas há uma indubitável dignidade
no suicídio, muito para além das capacidades de tão patética criatura, só teceu
um comentário “A vida é muito irónica…,” sabia o quanto de si a filha legara
a esta relação, não gostava do sujeito, havia nele um indisfarçável traço de
baixeza, nunca o partilhou, sentiu não ter esse direito, era a vida da filha,
foi com respeito que encarou o alvoroço da filha no papel de madrinha de
casamento da sua melhor amiga, assumiu o compromisso e procura cumpri-lo
escrupulosamente, apesar de tão grande dor lhe
escurecer os dias, há umas semanas, num Sábado, resolveu oferecer um chá às
amigas da paróquia, chegou, para o efeito, a comprar um novo serviço de chá,
uma nova toalha-de-mesa, tudo meticulosamente delineado, biscoitos-de-manteiga,
doces de vários sabores, pães de diferentes tipos, agendou para as dezasseis e
trinta, a filha incansável no auxílio para que nada faltasse, o facto de estar
ocupada mitigava a tão grande dor que lhe escurecia os dias, dezasseis e
trinta, em ponto, desse Sábado, mãe e filha tinham tudo preparado ao ínfimo
pormenor, a chaleira ao lume, os doces abertos (morango, amora, tomate, pêssego…),
pacotinhos de manteiga espalhados ao longo da mesa, broa de milho, pão de
centeio, pãezinhos de leite, em fatias, sobre múltiplos pratos, fiambre, presunto,
paio, dezasseis e quarenta, dezasseis e quarenta e cinco, nem um ecoar da
campainha, desligou o fogão, a filha viu o rosto da mãe gradualmente a
turvar-se, perdeu a conta às vezes que ela foi até à janela ver se…, dezassete
e cinco, dezassete e quinze, o chá arrefecido, sobre o fogão, começou a
levantar a mesa, a filha prontamente a secundou sem emitir qualquer comentário,
às dezoito horas, após tudo arrumado, a mãe “Sabes o que me espanta? Nem
oferecerem uma justificação para a sua ausência… Que bom a tua avó não assistir
a esta decadência… Que bom…,” desde essa tarde, a mãe mudou de paróquia, compreendeu
que não podia estar na Casa do Senhor ladeada de gente que desconhece o valor
da Palavra, um convite só requer dois monossílabos Sim ou Não, ao
convite do chá, na tarde de Sábado, todas optaram pelo primeiro, embora ignorassem
o materializar do mesmo, ou tê-lo-iam perdido da memória no decorrer dessa
semana ou, à última da hora, não lhes apetecesse, a mãe lá percebeu que o
cumprir da Palavra equivale à consideração que temos pela pessoa, simplesmente
isso, daí o seu crescente respeito pela filha ao verificar os seus esforços
para cumprir um Sim emitido em tempos onde não havia tão grande dor a lhe
escurecer os dias.












