Livros do Escritor

Livros do Escritor

sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Eu

 



Uma questão que jamais me colocaram, e sem dúvida a mais essencial, foi: “Quem és tu?” Em verdade, quantos já se confrontaram com esta pergunta? Raros, calculo, raros, perante tal pergunta (“Quem és tu?”), logo se me iluminam possíveis respostas, meu Deus, fui e sou tantos, o que rosna um cumprimento ao vizinho com que antipatiza, sorridente para a septuagenária, do terceiro-andar, com que engraça, facilmente irascível com azémolas ao volante, melancólico ao entardecer, sonhador com melodias do ontem, agressivo com os velhacos do hoje, obstinado, enfim, tantas possibilidades para uma singela questão: “Quem és tu?” O que nos caracteriza mais: os amores ou os ódios? Os amores espelham-nos, os ódios repulsam-nos, algures numa indistinta zona, entre estes dois aparentes sentires antagónicos, esteja a nossa essência, creio que, num certo ponto da caminhada, perdi o meu Eu, sei onde ficou, embora, se lá voltasse, a certeza de não o encontrar, as coisas nunca ficam onde as deixámos, considero no hoje estar mais preparado para responder à questão “Quem és tu?”, talvez pelo cansaço da caminhada, em certa medida, a fadiga obriga-nos a desacelerar, a gerir forças, a reavaliar a circunstância, à impossibilidade de nos fugirmos, e é esse o derradeiro combate: o “Eu” diante de si mesmo; quase todos levam manifestamente a existência a fugir de si mesmos, compreendi esse facto muito cedo, no fracturante abismo que se me abrira ao olhar, por excessivos segundos, a um espelho, que estranho ali estava, diante de mim, a olhar-me, não o reconhecia de todo, apesar de só o poder ser, mas a estranheza, omnipresente, a corroer-me cada canto da alma, não o compreendia como “Eu”, não obstante a inevitabilidade do facto, após os excessivos segundos, receei, confesso, perder-me de vez, ser tragado naquela estranha superfície que ora nos ilumina ora nos obscurece a Alma, as certezas do hoje transportava-as há muito, o tempo só as iluminou, esta é a verdade, quando olhamos um velho, por norma, o que esperamos? Um sábio, pois está no final da caminhada, mas como é raro, na realidade, encontrar estes dois conceitos num corpo, com a vida, os defeitos tendem a se agudizar, o que leva ao recuo das virtudes, desde si já escassas, ou tudo será resultado da subtracção do futuro? Alguém pode falar da vida sem ter passado uma noite de hospital? Pois não sei, por aqui a imagem de um velho, passada hesitante, um saquito-de-plástico na mão, a caminho de um raríssimo e exíguo pedaço de verde, no meio de sombras ameaçadoras de desumanização, ali chegado senta-se num dos bancos livres, nos outros uma velha com os dois netos e um casal de namorados, reparou na intensidade do olhar destes últimos, há quanto partira do seu olhar aquele fulgor? Há demasiado, há demasiado, tanto que nem vestígios de tal intensidade o habitar, como horizonte de tudo em nós apenas o outro, entre eles só o presente, futuro e passado longínquas realidades, em verdade, os velhos não invejam a juventude, invejam a intensidade do olhar, só o presente, futuro e passado longínquas realidades, a certa altura da sua caminhada pelo aqui, começou a contabilizar as vezes em que a vida se rira alto e desdenhosamente na sua cara, tão plurais, ainda há pouco a frase levantou-se-lhe na memória “Qualquer dia estás a dar de comer aos pombos...”, não lhe chegou o contexto, apenas o puro gozo com que a emitira, e agora, diante de si, os inquietos bicos e as hesitantes passadas das aves, sapientes do conteúdo do saquito-de-plástico, “Qualquer dia estás a dar de comer aos pombos...”, não suportou, por muito mais tempo, a pressão alada à sua volta, mergulhou a mão e logo grãos de milho pelos ares, as aves em estrépito, numa crescente ânsia pelo regresso dos grãos dourados à terra, pelo menos, ali, a ilusão de um controle sobre as coisas, no restante apenas o riso alto e desdenhoso da vida na sua cara, tudo lhe foi cobrado, até à sílaba, ao contrário de outras, talvez a sua existência obedecesse a outros imperativos, o tempo ensina-nos que há caminhos vedados a uns e a outros não, tudo tão estranho, não há nada mais irónico que o tempo: a estranheza de, afinal, nos sabermos no mesmo lugar, pois a questão persiste “Quem és tu?” Não tenho como a silenciar, também não delegaria nos outros para lhe responder, apenas lhes seria possível oferecer perspectivas, se eu não tenho como a silenciar, quanto mais os outros! Quem sabe se serei um estranho labirinto onde, a dada altura, me perdi, e, dia após dia, continue em busca desse “Eu” por entre a desordem pela passagem da vida, o velho persiste no esforço de trazer as aves à terra, quem sabe se por uma impronunciada esperança de, quando levantarem vôo, um desejo seu ser levado para as alturas.

terça-feira, 28 de outubro de 2025


 ... desde então, não há semana em que não visite a caixa de sapatos, abro-a e disponho as fotos por cima da colcha: fico a olhá-las e, por vezes, lembro-me, não sei porquê, dos velhos nos jardins da cidade, entre pombos ávidos e sombras indolentes, em conversas do ontem para calar a dor do hoje...

in Da arte de viver

domingo, 19 de outubro de 2025

O carácter transitório das coisas

 



Há qualquer coisa, numa manhã de céu encoberto, estranha, como se a noite ainda por ali, a adiar a sua partida, subiu a extensa escadaria para o trabalho, não diria conformado, mas abnegado consigo mesmo em cumprir um imperativo muito seu, sempre os mais relevantes, parou para um café, surge-lhe aquela colega, mais velha, que o tempo ensinara a respeitar, ela “Faleceu a minha mãe,” ele prontamente “Os meus sentimentos,” não sem antes a punhalada de um despovoar de palavras, afinal “Faleceu a minha mãe,” a morte de um estranho apenas uma informação, tão distinta da morte de um conhecido, quanto mais de alguém que tem lugar reservado no nosso coração, ele a reflectir nas dores que nos estão vedadas, “Faleceu a minha mãe,” sempre por uma dor tão maior que se esvaziou, e a morte, ao contrário do que se julga, sabe-a quente, harmoniosa, pacífica, somente a ouviu, os quilos perdidos, as viagens para a aldeia, limitava-se a anuir e a um ou outro lugar-comum, pouco mais, há dores que nos estão vedadas, sempre por uma dor tão maior que se esvaziou, sem qualquer vocação para carpideira, volta e meia, o seu olhar pela porta na ânsia de outro colega, para dividir os pesares, reflectiu na sempre dolorosa incompreensão da dor, por fim, começaram a chegar os restantes e o espaço a povoar-se, não mais partilhou “Faleceu a minha mãe,” o seu olhar apenas desceu ao chão e o verbo encerrou-se-lhe, tal não lhe passou despercebido, quanta dor conseguimos carregar?

A morte parece apreciar a companhia dos velhos, mas é falso, perdeu a conta aos novos que resolveram acompanhá-la na viagem sem regresso, demasiados, pois, demasiados, é tão distinto saber de uma morte ou senti-la: a notícia ou a punhalada; a informação ou o espaço irreversivelmente vazio pela ausência; desde que se recorda, a palavra morte sempre com uma aura de obscenidade, proibida, imoral, pestilenta, não chegara a completar uma dezena de anos quando teve o primeiro contacto com a outra face da vida, ocorreu na casa de uns vizinhos dos avós, ainda hoje aquém das razões, no entanto, ali foi velado o corpo, uma luz difusa naquela divisão, umas figuras de negro, num uníssono queixume, à volta do caixão, aberto, onde estava o corpo, admirou-se pela brancura de rosto e mãos, contudo, houve um aspecto que lhe ressaltou desde logo: havia um irreversível carácter de imobilidade nele; a vida, de facto, partira dali, não chegara a completar uma dezena de anos, mas naquele instante aprendera a essência do existir, não lhe passou despercebida a ausência de lágrimas da viúva, pelo rosto apenas serenidade, dizia-se, amiúde, que ele gostava de esvaziar múltiplos copos, a agressividade só despertava em casa, elucidativo sobre o seu carácter e dos demais similares, ali estava ela sentada sobre um banquito, a cumprir o imperativo-social do último adeus, quase lhe ouvia os terrores a abandoná-la, daí a serenidade visível, naquele instante aprendera a essência do existir: nesta vida tão pouca coisa é o que parece, esperava encontrar dor, apenas compreendeu hipocrisia, não que fosse censurável, então para quê as figuras de negro, num uníssono queixume, à volta do caixão? O miúdo saiu dali com um curso intensivo de geografia da alma-humana, não se recorda de quanto tempo permaneceu naquele velório, guardou para a vida que saudade não entrara no sentir de qualquer um dos presentes, em verdade, nunca assistimos ao funeral do outro, vislumbramos sempre o nosso, o miúdo saiu dali com a certeza de que os desenhos-animados talvez não fossem assim tão coloridos, para continuar a meninice, atirou para um longínquo canto da sua alma este curso intensivo de geografia da alma-humana, hoje, quando ela “Faleceu a minha mãe,” ele prontamente “Os meus sentimentos,” tropeçou nesta sombria memória que, apesar de tudo, lhe garantira um diploma em natureza-humana, nem tudo é mau, quem menos sorri menos se engana, apesar da luz difusa daquela divisão, das figuras de negro, num uníssono queixume, à volta do caixão, aberto, onde estava o corpo, havia uma luz emergente na serenidade do rosto da viúva, resignação e esperança simultâneas, tão raro sentires paradoxais se fundirem, foi a isso que o miúdo, com menos de dez anos, assistiu, na altura atirou para um longínquo canto da sua alma, talvez aguardasse pelas palavras certas para o recordar.

sexta-feira, 17 de outubro de 2025

Da arte de viver

 


Lembro-me de uma frase, acho que a li em casa dos meus avós (“Um dia, quando eu morrer, não quero choros nem gritos…”), estava numa jarra pendurada na cozinha, sempre pensei, um dia, retirar dali a jarra para ler o resto da frase, ocultado pela parede, nunca o fiz, guardei para um amanhã que nunca amanheceu, o que se seguiria a “Um dia, quando eu morrer, não quero choros nem gritos…”?

Não me lembro do meu pai, nem da voz, sempre o que perdura em nós depois de tudo, dos gestos, da forma de andar, de ser, sobretudo de quem ele afinal era, nada, às vezes, na escola, talvez pela surpresa, talvez por simples crueldade, os colegas “Ao menos, lembras-te do nome? Ou nem isso?” Do nome, sim, e do rosto também, até há pouco, volta e meia, dava por mim a abrir uma caixa de sapatos onde a minha mãe guarda as fotos, há duas lá do meu pai, numa está abraçado à minha mãe, noutra comigo ao colo, e é tudo… Há quem ache pouco, mas, para mim, é tanto… Que fazer? Confesso que não visito a caixa de sapatos há muito, não lhe sinto a falta, estou naquela idade de virar costas a tudo, talvez seja por isso, a minha mãe quase diariamente “Estás insuportável! Entraste mesmo na fase do armário…”, certa tarde, ao regressar a casa, via-a dentro de um carro com um sujeito, ele em gestos lentos, numa artificialidade teatral, ela com uma alegria incontida, percebi que a sua carência se desmoronava, sempre lhe reconheci uma indisfarçável carência da palavra ao acto, quantas vezes, à noite, na companhia da caixa de sapatos, aberta, na cama, cheguei a ouvi-la soluçar, como se pedisse ao passado que corresse para a abraçar, nesses momentos, recolhia-me no meu quarto e por aí ficava, nunca falámos do conteúdo daquela caixa de sapatos, talvez por pudor, talvez pelo receio de uma carência demasiada, talvez por uma competição velada para saber quem primeiro abraçava o passado…

Certa tarde, estava a três meses de terminar o liceu, o sujeito do carro dentro de casa com a minha mãe, desta vez, ambos com gestos apressados e espontâneos, estavam de saída, não me escapou os cabelos molhados, pois, a carência sempre se desmoronara, até que a presença dele se tornou uma constante, os meus avós, primeiro, circunspectos, afinal, eram os principais investidores do nosso lar, a minha mãe, digamos, não acertava com a vocação profissional, daí que coleccionasse empregos e alguns investimentos, falhados, é certo, mas ainda assim onerosos, o que mais tenho presente é o café, talvez por ser o último, era relativamente perto de nossa casa, tinha até uma boa esplanada, contudo, não chegou a oito meses, no último momento conseguiu trespassá-lo, mas sem rever grande parte do investimento, a certa altura, fechou-se em casa, falou em depressão, as duas empregadas impacientes, os atrasos nos seus ordenados passaram a norma, numa manhã solarenga de Julho, não apareceram, o café fechado, foi uma vizinha, a caminho do mercado, que deu conta, ao saber disto, vi-a ir até à casa-de-banho, engolir metade de uma lamela (soube, mais tarde, das propriedades dos ansiolíticos e dos antidepressivos), correr o estore do quarto e deitar-se, os meus avós, uma vez mais, acorreram a solucionar ordenados em atraso, metades de lamelas e estores corridos… Mas, desta vez, não sei porquê, percebi-lhes uma singular prostração face ao sujeito do carro, como se aquela paisagem, de cabelos molhados, lhes fosse familiar, daí a súbita imobilidade…

De facto, a presença do sujeito do carro tornou-se demasiado constante, ao ponto de, num domingo à tarde, entrar munido de duas malas, perante aquele quadro, só me ocorreu pensar que a minha mãe desistira definitivamente de abraçar o passado, fiquei para ali, no sofá, distante da tristeza e da alegria, a estranhar-me pela súbita indiferença com que assistia a tudo, nem me levantei para o cumprimentar, limitei-me a sorrir-lhe de onde estava, não podia mais, não queria mais… Desde aquelas duas malas, os meus avós subtraíram-se, não percebi o porquê, teve de me ser apresentado, foi o tempo quem se encarregou de tal, apesar de tudo, os primeiros tempos sem nada a registar, o único facto a caixa de sapatos que permaneceu num abandono de sombras debaixo da cama, sem dúvida, a minha mãe desistira definitivamente (?) de abraçar o passado…

Certo dia, acho que de fim-de-semana, gritos logo de manhã, o almoço silencioso, mais gritos de tarde, não sei porquê lembrei-me de que não os via sair de cabelos molhados há algum tempo, os gritos, lá por casa, passaram a regra, do telefone à caixa-do-correio tudo passava pelo crivo inquisitorial do sujeito do carro, a vida da minha mãe desenrolava-se sob o seu olhar, decidi, neste ponto, ir para casa dos meus avós. Certa tarde, uma vizinha, regressava eu da escola, atravessa-se no meu caminho, insiste para que a acompanhe até casa, eu, primeiro, admirada com aquele súbito interesse por mim, depois, algo no meu sentir a agitar-se e uma trémula questão a brotar-me “Passa-se alguma coisa…? Foi com a minha mãe…?” Ela baixou os olhos, estava tudo dito.

Cheguei a vê-lo, ainda nesse dia, dentro do carro da polícia. Depois disso, só me interessou a pena, chegou a pouco mais de uma dezena de anos… A minha foi perpétua, desde então, não há semana em que não visite a caixa de sapatos, abro-a e disponho as fotos por cima da colcha: fico a olhá-las e, por vezes, lembro-me, não sei porquê, dos velhos nos jardins da cidade, entre pombos ávidos e sombras indolentes, em conversas do ontem para calar a dor do hoje, de vez em quando, fecham os olhos, numa súplica muito sua, para que o passado os abrace, nem que seja por menos de um minutinho… Há quem ache pouco, mas, para mim, é tanto…

domingo, 12 de outubro de 2025

Hoje não me apetece respirar…

 


Hoje trouxe esta ideia comigo da almofada, acho que me surgiu entre sonos, “Revisitar um lugar onde fui outro”, algures por aí, percebi que os anos não me esqueceram quando, há uns dias, dei por mim a mandar calar todos para ouvir o Telejornal, até me assustei, “Eu queria ouvir o Telejornal”, mas isso só interessa aos velhos, pensava eu em criança, e logo adicionava outra certeza, “Eu nunca hei-de ouvir um Telejornal”, afinal, para quê? Aquilo não tem interesse nenhum, só via uns sujeitos de fato, aborrecidíssimos, que não se calavam… Nem vislumbres de heróis, lutas dramáticas, suspense, tudo pintado com a cor da meninice, e a minha certeza: “Eu nunca hei-de ouvir um Telejornal”. Corri para um espelho, e por ali me quedei, atónito, “Estarei a ficar velho?” ou “Afinal, que idade tenho eu?”, estas e outras questões por mim, estarrecido com os auspícios de uma evidência nascida do acaso (“Eu queria ouvir o Telejornal”), estarei eu a ficar aborrecidíssimo? Será que não me calo? Embora nunca use fato… De repente, a caminhar pela minha memória, a imagem de um vizinho que, volta e meia, entrava no barbeiro do bairro, sentava-se, fechava os olhos, ali ficava, durante o que, para si, seria necessário, o corte de cabelo não se concretizava, apesar disso, pagava e, por fim, saía, houve dias em que ali entrou, pelo menos, duas vezes, quando soube disto, não me contive, questionei o porquê lá em casa, a mão do meu pai pelo meu ombro e, com uma naturalidade desarmante, disse-me: “Porquê esse espanto? Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?” Confesso, neste preciso momento, em que escrevo estas linhas, que o espanto de então ainda não partiu de mim… Aqui permanece com todo o seu fulgor: “Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?” Julgo que não. Meu pai ainda acrescentou uma frase, “Quando tiveres de tomar decisões importantes, quando fores grande, procura sempre um sítio confortável para o fazeres”, porém, aquela pergunta (“Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?”), nesse momento, submergira-me, mais tarde, soube que esse vizinho era juiz, dava longos passeios pelo bairro e arredores, sempre muito direito, de mãos atrás das costas, das nuvens da minha meninice tentava perscrutar-lhe as cores do pensar, tinha uma aura de profeta, não sei se pelas barbas brancas, se pelo ar sofrido de quem olha fontes de lágrimas, prometi a mim mesmo que iria estar mais atento aos passos deste profeta, certa tarde, uma bola rematada para longe, assim que o vejo sair do prédio e a dirigir-se para a barbearia, prontifico-me a ir buscá-la, num repente, corro desalmadamente rua fora, até à porta da barbearia, recolho a bola, presa debaixo de um carro, e fico a vê-lo ali entrar, uma cadeira ocupada, a outra vaga, o barbeiro faz-lhe sinal para se sentar, ele tira o casaco, pendura-o no cabide, e senta-se, sempre muito direito, reparei que fechou, de imediato, os olhos, nisto, gritos por mim, pela bola, faço-lhes sinal que já vou, mas os gritos impacientam-se, atiro-lhes a bola como bálsamo e persisto com o profeta sentado de olhos fechados, entretanto, do fundo da rua, os gritos aligeiram-se, mas ainda insistem por mim, antes de regressar àquele importantíssimo dérbi, assisto ao rito de preparação do corte de cabelo, embora saiba que não se irá concretizar, o profeta, impassível, de olhos fechados, talvez num diálogo que o direccione para uma melhor resolução, quem sabe? Regressei ao jogo, retomei o meu posto, ainda o vi passar, muito direito, mãos atrás das costas, talvez fosse o único a seguir-lhe os passos, os outros a atenção só com a bola, pouco mais, nunca lhes falei de profetas, cadeiras de cabeleireiro, olhos fechados e tomadas de decisão… Para quê? Tenho a certeza de que não me iriam compreender. Há dias em que sou eu a regressar entardecido a casa, tento, por vezes fico-me pela tentativa, um sorriso, sempre é uma brisa que nos relembra outras paragens, talvez lugares onde a cabeça pese menos à almofada, ela frenética com o jantar e os miúdos, ainda o telefone, insaciável, os avós, o jantar das crianças, os nutrientes necessários, o próximo fim-de-semana, a comunhão da mais nova, o vestido, eu a pensar que ainda faltam quatro meses, mas só a pensar, nem uma vírgula ouso articular, ainda tenho um relatório pela frente, que me vai levar, no mínimo, duas horas, e amanhã desperto às seis, nestes momentos, percebo que tudo isto é um absurdo, uma corrida insaciável para um não sei quê, nem nos perguntam se queremos fazer parte deste absurdo, já fazemos antes de sermos, de novo, a caminhar pela minha memória, a imagem de um vizinho que, volta e meia, entrava no barbeiro do bairro, sentava-se, fechava os olhos, ali ficava, durante o que, para si, seria necessário, de novo, a mão do meu pai pelo meu ombro e, com uma naturalidade desarmante, a dizer-me: “Porquê esse espanto? Há lugar no mundo mais confortável que a cadeira de um barbeiro?”

sábado, 4 de outubro de 2025


 

 A vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós. 

in Parece que foi ontem

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Parece que foi ontem

 


E é assim… Pois, sabe como é? A vida é isto mesmo! Um dia estamos lá em cima, e, de repente, caímos. Não há nada a fazer, temos é de nos levantar de novo e caminhar, custa, bem sei, mas não temos outra opção. Você, hoje, olha para mim e não imagina quanta gente tive à minha responsabilidade. É que não imagina mesmo! Eu era o responsável pelo sector do pessoal! Quase duas centenas de pessoas, isto só no distrito de Lisboa. Agora pense a nível nacional quantas seriam, pois é… Sabe, sinto falta daquilo, embora não fosse feliz. É curioso, não é? Sentir falta de algo que não nos traz felicidade, não sei como o dizer, hoje só me resta olhar o vazio de frente, naquela altura apenas o sentia andar à minha volta, talvez fosse isso, mas nunca o tinha enfrentado, muito menos olhos nos olhos como agora o faço. E olhe que não é fácil, nada fácil mesmo… Costuma-se dizer para aí que só damos valor às coisas quando as perdemos, eu repito, para quem me quiser ouvir, que sinto falta daquilo, embora não fosse feliz. Pois, como lhe tinha dito, sentia-o andar à minha volta (sim, o vazio), a sucessão de dias, invariável, o despertar sem sequer interromper um sonho (há quanto não me habitam sonhos?), logo olhos no relógio, desde então, senhor e servo estipulados, ela ainda ficava a dormir, nunca soube se ao acordar interrompia sonhos, também não soube encontrar essa questão para lhe colocar, a lentidão demasiada e cinzenta do trânsito, uma repetição obstinada de um ontem feito hoje, por vezes, e foram tantas, socorria-me de um calendário para me saber, por fim, o edifício, de tijolo, que nos engolia durante todo o dia que soava a uma existência, acho, ainda hoje, que uma parte da minha alma por ali ficou, sabe, é estranho, mas aquilo, de facto, engolia-nos, sempre alguma coisa por resolver, a vertigem da produção, olhos que não víamos, mas sabíamos que controlavam cada nosso movimento, apesar de tudo, e pelo que ouvia, o tipo nem era mau de todo, entretanto, o tempo caminhou, deu para nos sustentarmos, para pagar a casa, um carrito em segunda mão, ao Domingo íamos até Cascais comer um gelado, sabia o quanto ela gostava deste ritual, por norma, nessas ocasiões, envergava o seu mais recente vestido, até o passava de véspera, a seguir ao gelado, um passeio pelo paredão, nos últimos meses, é bem verdade, uma história cansada, isto, aquilo, os chineses, não vale a pena, ainda hoje, diante de mim, a cancela para baixo e a sirene calada… Durante mais de trinta anos, quando a sirene nos mandava trabalhar, eu já no meu posto. Sabe, orgulho-me particularmente disto, pensa que alguém deu valor? Acho que nem os tijolos se recordam de tal… A vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós. Quando, lá por casa, o mês passou a durar mais, e eu próximo como nunca da Matemática, ela a afastar-se, a criticar a minha apatia, como se algum leme ao meu alcance, enfim, todas as manhãs fazia questão de me acordar, ainda gritava “Se eu vou trabalhar, ao menos acorda e finge que vais fazer alguma coisa”, às vezes, a dor vem de tanto lado que não sabemos o que nos dói mais, é um pouco isto, sem dúvida, durante mais de trinta anos respirámos lado a lado, e hoje, diante de mim, uma estranha… A vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós. Muito subterraneamente, comecei a perceber onde íamos desaguar. Foi num Domingo, de tarde, não sei porquê, mas cada dia tem o seu próprio respirar, e o Domingo tem qualquer coisa de uma eternidade silenciosa, é estranho, bem sei, mas as sombras parecem colar-se ao chão, como se gritassem bem alto, na sua imobilidade, os sonhos que cada um enterrou… E é assim… Pois, sabe como é? A vida é isto mesmo! Um dia estamos lá em cima, e, de repente, caímos. Não há nada a fazer, temos é de nos levantar de novo e caminhar, custa, bem sei, mas não temos outra opção. Você, hoje, olha para mim e não imagina quanta gente tive à minha responsabilidade. Mas, dizia eu, foi num Domingo de tarde, o nosso carrito já partira em busca de uma terceira mão, Cascais agora mais longe, eu sentado à mesa com a Matemática, ela, de repente, da ombreira da porta, “Lamento, mas não posso mais”, virei-me, percebi-lhe uma mala em cada mão, sabe, estava já tão por terra que nem tentei, mesmo que, não conseguia, como se, num recanto de mim, uma voz sussurrasse “deixa-a ir”, como se percebesse a inevitabilidade de tal, o acontecer prévio ao ser, tudo sobreveio com uma lucidez dilacerante, parecia que me sentara no monte mais longínquo que o meu pensamento conseguira alcançar, daí via-me às voltas com a Matemática, não a da sobrevivência, pousada no tampo da mesa, mas a do orgulho que me fazia permanecer sentado, imóvel, a maquilhar a surpresa e a dor imensas por aquelas malas, por “Lamento, mas não posso mais”, por ser Domingo, de tarde, e o Domingo tem qualquer coisa de uma eternidade silenciosa, é estranho, bem sei, contudo, as sombras parecem colar-se ao chão, como se gritassem bem alto, na sua imobilidade, os sonhos que cada um enterrou… E tudo aconteceu sob a ombreira da porta. Se, ao menos, ainda as chaves, do carrito em segunda mão, pelo meu bolso, podia levantar-me, dizer-lhe “Espera! Põe o teu vestido, sim, esse mesmo, o mais recente, está passado desde ontem, e vamos até Cascais, comer um gelado, a seguir, damos um passeio pelo paredão, eu sei o quanto gostas deste ritual…”, ou será que me enganei? Tem razão, o que lá vai, lá vai, mas sabe, o mais importante, a certa altura, é que haja em nós algumas certezas, e o olhar para trás permita que o pensar do hoje repouse em lugares do ontem, uns chamam a isso memórias. Já não seria mau. O que lhe parece? Acha pouco? Para mim, é o suficiente. Sabe, a vida é isto: no fim, nem as pedras se vão lembrar de nós.