Livros do Escritor

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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Eu

 



Uma questão que jamais me colocaram, e sem dúvida a mais essencial, foi: “Quem és tu?” Em verdade, quantos já se confrontaram com esta pergunta? Raros, calculo, raros, perante tal pergunta (“Quem és tu?”), logo se me iluminam possíveis respostas, meu Deus, fui e sou tantos, o que rosna um cumprimento ao vizinho com que antipatiza, sorridente para a septuagenária, do terceiro-andar, com que engraça, facilmente irascível com azémolas ao volante, melancólico ao entardecer, sonhador com melodias do ontem, agressivo com os velhacos do hoje, obstinado, enfim, tantas possibilidades para uma singela questão: “Quem és tu?” O que nos caracteriza mais: os amores ou os ódios? Os amores espelham-nos, os ódios repulsam-nos, algures numa indistinta zona, entre estes dois aparentes sentires antagónicos, esteja a nossa essência, creio que, num certo ponto da caminhada, perdi o meu Eu, sei onde ficou, embora, se lá voltasse, a certeza de não o encontrar, as coisas nunca ficam onde as deixámos, considero no hoje estar mais preparado para responder à questão “Quem és tu?”, talvez pelo cansaço da caminhada, em certa medida, a fadiga obriga-nos a desacelerar, a gerir forças, a reavaliar a circunstância, à impossibilidade de nos fugirmos, e é esse o derradeiro combate: o “Eu” diante de si mesmo; quase todos levam manifestamente a existência a fugir de si mesmos, compreendi esse facto muito cedo, no fracturante abismo que se me abrira ao olhar, por excessivos segundos, a um espelho, que estranho ali estava, diante de mim, a olhar-me, não o reconhecia de todo, apesar de só o poder ser, mas a estranheza, omnipresente, a corroer-me cada canto da alma, não o compreendia como “Eu”, não obstante a inevitabilidade do facto, após os excessivos segundos, receei, confesso, perder-me de vez, ser tragado naquela estranha superfície que ora nos ilumina ora nos obscurece a Alma, as certezas do hoje transportava-as há muito, o tempo só as iluminou, esta é a verdade, quando olhamos um velho, por norma, o que esperamos? Um sábio, pois está no final da caminhada, mas como é raro, na realidade, encontrar estes dois conceitos num corpo, com a vida, os defeitos tendem a se agudizar, o que leva ao recuo das virtudes, desde si já escassas, ou tudo será resultado da subtracção do futuro? Alguém pode falar da vida sem ter passado uma noite de hospital? Pois não sei, por aqui a imagem de um velho, passada hesitante, um saquito-de-plástico na mão, a caminho de um raríssimo e exíguo pedaço de verde, no meio de sombras ameaçadoras de desumanização, ali chegado senta-se num dos bancos livres, nos outros uma velha com os dois netos e um casal de namorados, reparou na intensidade do olhar destes últimos, há quanto partira do seu olhar aquele fulgor? Há demasiado, há demasiado, tanto que nem vestígios de tal intensidade o habitar, como horizonte de tudo em nós apenas o outro, entre eles só o presente, futuro e passado longínquas realidades, em verdade, os velhos não invejam a juventude, invejam a intensidade do olhar, só o presente, futuro e passado longínquas realidades, a certa altura da sua caminhada pelo aqui, começou a contabilizar as vezes em que a vida se rira alto e desdenhosamente na sua cara, tão plurais, ainda há pouco a frase levantou-se-lhe na memória “Qualquer dia estás a dar de comer aos pombos...”, não lhe chegou o contexto, apenas o puro gozo com que a emitira, e agora, diante de si, os inquietos bicos e as hesitantes passadas das aves, sapientes do conteúdo do saquito-de-plástico, “Qualquer dia estás a dar de comer aos pombos...”, não suportou, por muito mais tempo, a pressão alada à sua volta, mergulhou a mão e logo grãos de milho pelos ares, as aves em estrépito, numa crescente ânsia pelo regresso dos grãos dourados à terra, pelo menos, ali, a ilusão de um controle sobre as coisas, no restante apenas o riso alto e desdenhoso da vida na sua cara, tudo lhe foi cobrado, até à sílaba, ao contrário de outras, talvez a sua existência obedecesse a outros imperativos, o tempo ensina-nos que há caminhos vedados a uns e a outros não, tudo tão estranho, não há nada mais irónico que o tempo: a estranheza de, afinal, nos sabermos no mesmo lugar, pois a questão persiste “Quem és tu?” Não tenho como a silenciar, também não delegaria nos outros para lhe responder, apenas lhes seria possível oferecer perspectivas, se eu não tenho como a silenciar, quanto mais os outros! Quem sabe se serei um estranho labirinto onde, a dada altura, me perdi, e, dia após dia, continue em busca desse “Eu” por entre a desordem pela passagem da vida, o velho persiste no esforço de trazer as aves à terra, quem sabe se por uma impronunciada esperança de, quando levantarem vôo, um desejo seu ser levado para as alturas.

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