Há qualquer coisa, numa manhã de céu encoberto, estranha, como se a noite ainda por ali, a adiar a sua partida, subiu a extensa escadaria para o trabalho, não diria conformado, mas abnegado consigo mesmo em cumprir um imperativo muito seu, sempre os mais relevantes, parou para um café, surge-lhe aquela colega, mais velha, que o tempo ensinara a respeitar, ela “Faleceu a minha mãe,” ele prontamente “Os meus sentimentos,” não sem antes a punhalada de um despovoar de palavras, afinal “Faleceu a minha mãe,” a morte de um estranho apenas uma informação, tão distinta da morte de um conhecido, quanto mais de alguém que tem lugar reservado no nosso coração, ele a reflectir nas dores que nos estão vedadas, “Faleceu a minha mãe,” sempre por uma dor tão maior que se esvaziou, e a morte, ao contrário do que se julga, sabe-a quente, harmoniosa, pacífica, somente a ouviu, os quilos perdidos, as viagens para a aldeia, limitava-se a anuir e a um ou outro lugar-comum, pouco mais, há dores que nos estão vedadas, sempre por uma dor tão maior que se esvaziou, sem qualquer vocação para carpideira, volta e meia, o seu olhar pela porta na ânsia de outro colega, para dividir os pesares, reflectiu na sempre dolorosa incompreensão da dor, por fim, começaram a chegar os restantes e o espaço a povoar-se, não mais partilhou “Faleceu a minha mãe,” o seu olhar apenas desceu ao chão e o verbo encerrou-se-lhe, tal não lhe passou despercebido, quanta dor conseguimos carregar?
A morte parece apreciar a companhia dos
velhos, mas é falso, perdeu a conta aos novos que resolveram acompanhá-la na
viagem sem regresso, demasiados, pois, demasiados, é tão distinto saber de uma
morte ou senti-la: a notícia ou a punhalada; a informação ou o espaço
irreversivelmente vazio pela ausência; desde que se recorda, a palavra morte sempre com uma aura de obscenidade, proibida,
imoral, pestilenta, não chegara a completar uma dezena de anos quando teve o
primeiro contacto com a outra face da vida, ocorreu na casa de uns vizinhos dos
avós, ainda hoje aquém das razões, no entanto, ali foi velado o corpo, uma luz
difusa naquela divisão, umas figuras de negro, num uníssono queixume, à volta
do caixão, aberto, onde estava o corpo, admirou-se pela brancura de rosto e
mãos, contudo, houve um aspecto que lhe ressaltou desde logo: havia um
irreversível carácter de imobilidade nele; a vida, de facto, partira dali, não
chegara a completar uma dezena de anos, mas naquele instante aprendera a
essência do existir, não lhe passou despercebida a ausência de lágrimas da viúva,
pelo rosto apenas serenidade, dizia-se, amiúde, que ele gostava de esvaziar
múltiplos copos, a agressividade só despertava em casa, elucidativo sobre o seu
carácter e dos demais similares, ali estava ela sentada sobre um banquito, a
cumprir o imperativo-social do último adeus, quase lhe ouvia os terrores a
abandoná-la, daí a serenidade visível, naquele instante aprendera a essência do
existir: nesta vida tão pouca coisa é o que parece, esperava encontrar dor,
apenas compreendeu hipocrisia, não que fosse censurável, então para quê as
figuras de negro, num uníssono queixume, à volta do caixão? O miúdo saiu dali
com um curso intensivo de geografia da alma-humana, não se recorda de quanto
tempo permaneceu naquele velório, guardou para a vida que saudade não entrara
no sentir de qualquer um dos presentes, em verdade, nunca assistimos ao funeral
do outro, vislumbramos sempre o nosso, o miúdo saiu dali com a certeza de que os
desenhos-animados talvez não fossem assim tão coloridos, para continuar a meninice,
atirou para um longínquo canto da sua alma este curso intensivo de geografia da
alma-humana, hoje, quando ela “Faleceu a minha mãe,” ele prontamente “Os meus sentimentos,” tropeçou nesta sombria memória que, apesar de tudo, lhe garantira um
diploma em natureza-humana, nem tudo é mau, quem menos sorri menos se engana,
apesar da luz difusa daquela divisão, das figuras de negro, num uníssono
queixume, à volta do caixão, aberto, onde estava o corpo, havia uma luz
emergente na serenidade do rosto da viúva, resignação e esperança simultâneas,
tão raro sentires paradoxais se fundirem, foi a isso que o miúdo, com menos de
dez anos, assistiu, na altura atirou para um longínquo canto da sua alma,
talvez aguardasse pelas palavras certas para o recordar.

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